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Mais de 50% das crianças do 2º ano do fundamental não conseguem ler

Mais da metade das crianças do segundo ano do Ensino Fundamental da rede pública não aprenderam a ler e escrever no Brasil. A informação é do Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (Unicef), com base nos dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2021.

Segundo o Unicef, os resultados indicam que 56% dessas crianças não foram alfabetizadas na faixa etária esperada e elas se somam a outros milhares de meninas e meninos no Brasil que estão na escola sem saber ler e escrever.

A situação já era preocupante antes da pandemia da covid 19, quando o país registrava quase 40% de crianças não alfabetizadas no segundo ano do ensino fundamental, e se agravou ao longo da emergência mundial.

A oficial de Educação do Unicef, Júlia Ribeiro, afirma que a pandemia teve um grande impacto nesses resultados com a redução dos dias letivos, dificuldade de acesso aos materiais educacionais e a falta de um profissional orientando os alunos de forma próxima.

Segundo a especialista, a alfabetização é uma etapa fundamental da trajetória escolar de crianças e adolescentes e a perda desse momento pode repercutir não só no seu desempenho acadêmico, mas em toda a sua vida.

Júlia avalia que o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada – lançado em 2023 pelo Ministério da Educação – está alinhado às principais estratégias para enfrentar o problema.

O programa – realizado em parceria com estados e municípios – prevê medidas para assegurar que 100% das crianças brasileiras estejam alfabetizadas ao final do segundo ano do Ensino Fundamental, além da recomposição das aprendizagens das crianças do 3º, 4º e 5º ano que foram afetadas pela pandemia.

Acompanhamento

A oficial de Educação do Unicef reforça, no entanto, que é preciso acompanhamento e monitoramento constante da iniciativa para que ela seja implementada corretamente e alcance os resultados esperados.

O Ministério da Educação informou, em nota, que 100% dos estados aderiram ao Compromisso Nacional Criança Alfabetizada e quase a totalidade dos municípios do país. Ainda de acordo com o MEC, mais de R$ 620 milhões de investimentos do programa foram executados no ano passado.

Entre os projetos, estão a designação de mais de seis mil articuladores, com potencial de beneficiar mais de 15 milhões de crianças desde a educação infantil, e a instalação de Cantinho de Leitura nas escolas com turma de educação infantil.

A iniciativa também formalizou junto a cinco universidades – uma em cada região do país – parceria de oferta de formação continuada do Programa de Formação Leitura e Escrita na Educação Infantil para a etapa da pré-escola.

Inflação do aluguel volta a perder força depois de seis meses

O Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M), que serve como base para o reajuste dos contratos de aluguel, voltou a desacelerar depois de seis meses e fechou janeiro em 0,07%. O resultado foi divulgado pela Fundação Getulio Vargas nesta terça-feira (30). No acumulado de 12 meses, a taxa acumula deflação de 3,32%, ou seja, inflação negativa. Em dezembro, esse consolidado era de -3,18%.

O IGP-M de janeiro representa uma inflexão no índice, que vinha ganhando força desde julho de 2023, quando alcançou -1,93%. Desde então, a inflação do aluguel acelerou seguidamente até fechar dezembro do ano passado em 0,74%.

O indicador da FGV é composto por três classes de preços: o Índice de Preços ao Produtor Amplo (IPA), que mede a variação dos custos no atacado; o Índice de Preços ao Consumidor (IPC), que calcula a cesta de consumo das famílias; e o Índice Nacional de Custo da Construção (INCC).

Atacado

Em janeiro, o IPA ficou negativo em 0,09%, ajudando a frear o IGP-M. Os preços das matérias-primas brutas, que arrefeceram de 3,06% para 0,49% entre dezembro e janeiro, foram um dos principais responsáveis por esse resultado.

A desaceleração desse grupo foi influenciada principalmente por itens como a soja em grão, que passou de uma alta de 2,03% para queda de 5,98%; o minério de ferro, que reduziu seu aumento de 4,63% para 2,87%, e o milho em grão, cuja taxa diminuiu de 11,30% para 6,22%.

O IPC registrou variação de 0,59%. No mês anterior, tinha sido de 0,14%. O maior impacto de alta veio do grupo alimentação, cuja taxa de variação passou de 0,55% para 1,62% entre dezembro e janeiro. De acordo com a FGV, “os preços dos alimentos in natura subiram, refletindo problemas de ofertas típicos da estação”.

A taxa de variação do INCC permaneceu estável, passando de 0,26% para 0,23%.

O IGP-M é conhecido como inflação do aluguel pois costuma ser utilizado para reajustar anualmente os contratos de moradia. O indicador também é utilizado como indexador de contratos de empresas de serviço, como energia elétrica, telefonia, educação e planos de saúde.

Proteína artificial surge como alternativa para reduzir o sofrimento animal

Objetivo dessa ação seria imitar a carne in natura para suprir a demanda por proteínas em uma população que está em constante crescimento

30 de janeiro de 2024

 

Nos últimos anos, diferentes pesquisas e debates passaram a ser discutidos a respeito da produção e do consumo de “carnes de laboratório”. Segundo a ONG The Good Food Institute, esse mercado vem crescendo e o agronegócio mundial já investiu quase US$ 2 bilhões em estudos sobre o tema desde 2016.

Atualmente, poucos países apresentam o produto pronto para consumo, sendo importante destacar que o principal objetivo da sua criação seria a redução do sofrimento animal e o incentivo de uma produção mais sustentável. Alisson Machado, professor do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP e mentor do Sustentarea, explica que as carnes de laboratório são um tipo de proteína artificial que é produzida a partir de um animal vivo – como boi, frango, porco ou peixe.

Objetivos e produção

O objetivo dessa criação seria imitar a carne in natura para suprir a demanda por proteínas em uma população que está em constante crescimento. Em conjunto a esse fator, encontra-se a justificativa de que a produção dessas carnes poderia colaborar com a redução do sofrimento animal e com a redução de impactos ambientais. “A carne é o alimento com maior impacto na emissão de gases de efeito estufa. Apesar disso, o desenvolvimento de proteínas artificiais também demanda muitos recursos e possui um impacto ambiental relevante”, considera Machado.

Para a produção dessas carnes, o professor explica que, primeiramente, é realizada a extração das células de um animal vivo por biópsia. Assim, essas células são nutridas e multiplicadas em biorreatores que simulam um organismo vivo. Essa ação costuma durar cerca de duas semanas e, a partir dela, é obtida uma massa de células com pequenas fibras. “Ela não tem formato ou textura de carne e, por isso, pode ser impressa em 3D para ser adicionada de textura. Nesse processo, a carne de laboratório também ganha aditivos, corantes e aromatizantes para ficar semelhante a uma carne in natura e, portanto, é caracterizada como um alimento ultraprocessado”, complementa o especialista.

Desafios

Atualmente, não é possível encontrar esses produtos em mercados, mas há uma expectativa de que cheguem ao mercado nacional em 2024. A Organização das Nações Unidas (ONU) já apoiou a criação de protocolos de fiscalização; assim, as agências reguladoras de cada país são responsáveis por aprovar — ou não — a comercialização dos produtos finais.

No Brasil, a responsável por esse processo é a Anvisa, mas ainda existem alguns desafios associados à produção em larga escala dessas proteínas, sendo provável que as vendas se iniciem com um baixo volume. A partir desse passo, outros acompanhamentos deverão ser feitos para garantir que o produto não gere impactos negativos na saúde.

 

Auditores da Receita fazem operação-padrão em aeroportos nesta terça

Em greve há dois meses, os auditores fiscais da Receita Federal farão operação-padrão nesta terça-feira (29) que prevê inspeções mais rigorosas nas bagagens de passageiros que desembarcarem de voos internacionais. Segundo o Sindifisco dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional), entidade que representa a categoria, a ação está prevista para ocorrer nos dez maiores aeroportos do país.

Os auditores vão intensificar a fiscalização e vão ampliar a amostragem de bagagens revistadas dos passageiros que regressarem de viagens internacionais nesta terça. Os aeroportos a serem afetados são os seguintes: Brasília, Confins (MG), Corumbá (MS), Fortaleza, Galeão (RJ), Guarulhos (SP), João Pessoa, Porto Alegre, Recife e Viracopos (SP).

Na semana passada, os auditores-fiscais fizeram greve nos portos, aeroportos e pontos de fronteira de alfândega com foco nas cargas. Segundo o Sindifisco, a operação-padrão será ampliada para a fiscalização de bagagens, com a expectativa de filas no interior dos aeroportos. Na última terça-feira (23), o ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, declarou que o governo ainda levantava o impacto da mobilização, mas disse que não tinha visto grandes prejuízos no embarque de mercadorias.

Os auditores da Receita Federal cobram o recebimento de um bônus de produtividade previsto pela Lei 13.464. Segundo a categoria, o benefício está previsto há sete anos, com sucessivos governos descumprindo a legislação. Em junho do ano passado, o governo regulamentou o adicional, mas o Ministério da Fazenda alega falta de dinheiro. O Sindifisco Nacional ressalta que a mobilização não afeta a liberação de medicamentos, alimentos perecíveis e cargas vivas.

Na quarta-feira (31), às 10h, os auditores-fiscais protestarão na frente do Ministério da Fazenda, em Brasília.

Governo encerra 2023 com folga de R$ 50,75 bilhões na regra de ouro

A Emenda Constitucional da Transição, no fim de 2022, salvou o governo de descumprir a regra de ouro do ano passado. O Governo Central – Tesouro Nacional, Previdência Social e Banco Central – alcançou, em dezembro de 2023, folga de R$ 50,75 bilhões na regra de ouro, que funciona como espécie de teto para a dívida pública.

Instituída pelo Artigo 167 da Constituição de 1988, a regra de ouro determina que o governo não pode endividar-se para financiar gastos correntes, como a manutenção da máquina pública, apenas para despesas de capital, como investimento e amortização da dívida pública, ou para refinanciar a dívida pública. Nos últimos anos, os sucessivos déficits fiscais têm posto em risco o cumprimento da norma, o que tem levado o Tesouro a buscar fontes de recursos para ter dinheiro em caixa e reduzir a necessidade de emissão de títulos públicos.

No ano passado, o Tesouro usou R$ 94,59 bilhões da dívida pública para pagar gastos correntes. No entanto, a Emenda Constitucional da Transição criou uma exceção de R$ 145 bilhões para o Novo Bolsa Família e para custear políticas de saúde e o aumento do salário mínimo acima da inflação. Ao incluir o impacto da exceção no cálculo, a equipe econômica passa a obter suficiência (folga) de R$ 50,75 bilhões.

A folga, no entanto, será temporária. Isso porque a emenda constitucional valia apenas para 2023. Mesmo com o Orçamento de 2024 prevendo déficit primário zero, o Tesouro projeta insuficiência de R$ 105,4 bilhões para a regra de ouro neste ano. Esse valor precisará ser aprovado pelo Congresso Nacional por maioria absoluta, na forma de créditos suplementares no Orçamento. Segundo o Tesouro Nacional, esse dinheiro financiará principalmente gastos com a Previdência Social neste ano.

Chacina de Unaí revelou Brasil profundo, diz pesquisador

Os assassinatos de três auditores-fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho, em crime que ficou conhecido como “Chacina de Unaí”, completou 20 anos neste domingo (28). Foram assassinados os auditores Eratóstenes de Almeida Gonsalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e o motorista Aílton Pereira de Oliveira.

O episódio, ocorrido na cidade mineira de Unaí em 28 de janeiro de 2004, revelou a dificuldade de coibir o trabalho análogo à escravidão e o Brasil profundo da ação dos privilegiados contra os mais desassistidos. Essa é a avaliação do historiador Gladysson Pereira, pesquisador da Universidade Estadual de Alagoas.

“O crime revela o Brasil de uma desigualdade profunda e mostra inúmeros aspectos históricos. É óbvio que o processo de abolição foi feito de uma forma que não impactava na vida daqueles que eram os ‘donos do Estado’”, afirmou o pesquisador.

A falta de condições adequadas de fiscalizar, mesmo em período democrático, mostra, para o professor, como os privilegiados agem contra os desassistidos. E como esse comportamento mantêm a força mesmo contra servidores públicos federais.

O professor contextualiza que demorou mais de um século, desde a Abolição da Escravatura (1888), para que o Estado brasileiro reconhecesse, em 1994, que havia “trabalho escravo”. “Quando o Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, naquele ano, começa a atuar, mexe numa antiga ferida. Os latifundiários mantiveram os trabalhadores sob condições de vida e de trabalho, semelhantes a escravos, durante muito tempo em larga escala”.

Ferida e convicção

A auditora fiscal aposentada Valderez Monte, hoje com 79 anos, foi integrante e uma das coordenadoras do grupo móvel de fiscalização. Ela atuou em 151 ações fiscais de 1995 a 2003, que resgataram 2.409 trabalhadores de condições subumanas de vida e trabalho.

Ela recorda que a chacina de Unaí deixou a categoria ferida e mais temerosa. “Mas quem trabalha nessa atividade faz por convicção, amor e certeza de que é possível ajudar pessoas de situações muito degradantes”.

Valderez trabalhava principalmente em operações nas regiões Norte e Centro-Oeste. Embora conhecesse os colegas assassinados em Minas Gerais, não tinha trabalhado com eles. “Sabíamos que precisávamos de mais apoio, mas esse crime não fez com que a gente parasse. Brigamos por melhores condições de trabalho, mas temos convicção do que precisa ser feito”.

Atualmente, ela atua como pesquisadora Instituto do Trabalho Digno, uma entidade sem fins lucrativos que elabora pesquisas sobre a atividade laboral no Brasil. “Precisamos de, pelo menos, três mil auditores, e temos cerca de mil. O país é continental e as práticas dos latifundiários não é muito diferente do que naquela época”.

Ela recorda ter testemunhado situações muito degradantes, de lavradores que trabalhavam por uma refeição por dia e sequer conheciam dinheiro. “Muito triste. Isso nos dá força para continuar mesmo com as ameaças que os grandes proprietários fazem contra nós”, afirma.

Resgates

Durante o dia, representantes do governo federal recordaram que, neste domingo, que marca os 20 anos da chacina de Unaí, é o Dia Nacional do Combate ao Trabalho Escravo. O ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta, afirmou que, em 2023, 3.151 pessoas foram resgatadas em condições análogas à escravidão no Brasil. Esse é o maior número registrado desde 2009.

Ele acrescentou que, em comparação a 2022, as denúncias aumentaram 61%. “Seguimos fortalecendo as instituições de fiscalização do trabalho. Temos um longa jornada pela frente, mas estamos o rumo certo”, apontou no microblog X, antigo Twitter.

Disque 100

O ministro Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, também na rede social, lamentou que ainda hoje o trabalho análogo à escravidão seja uma realidade. Ele destacou as ações do governo federal e pediu apoio da população. “Cada um de nós desempenha papel vital na erradicação dessa prática inaceitável e desumana”. Para isso, pediu que denúncias cheguem ao Disque 100.

Brumadinho: corte fragiliza direito de vítimas, avaliam assessorias

Assessorias técnicas que prestam suporte às vítimas da tragédia ocorrida em Brumadinho (MG) afirmam que um corte nos seus orçamentos, comunicado no ano passado, trouxe impactos significativos para a sua atuação. A contratação dessas entidades foi um direito conquistado judicialmente pelas comunidades impactadas e seu custo deve ser arcado pela mineradora Vale. Elas são escolhidas pelos próprios atingidos e contam com profissionais de áreas variadas, como direito, sociologia, psicologia, arquitetura, engenharia e agronomia. A medida busca assegurar que as vítimas da tragédia estejam amparadas e tenham informações técnicas para pleitear seus direitos.

Na quinta-feira (25), a tragédia completou cinco anos. No episódio, o rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, da mineradora Vale, liberou uma avalanche de milhões de metros cúbicos de rejeitos, soterrando 270 vidas e gerando ainda devastação ambiental e poluição em diversos municípios mineiros, localizados na Bacia do Rio Paraopeba. As famílias das vítimas contabilizam 272 mortes, levando em conta que duas mulheres estavam grávidas.

Ao todo, foram contratadas quatro entidades para atuar ao longo da Bacia do Rio Paraopeba. Atingidos das cidades de Brumadinho, Mário Campos, São Joaquim de Bicas, Betim, Igarapé e Juatuba selecionaram a Aedas. Em Esmeraldas, Florestal, Pará de Minas, Fortunas de Minas, São José de Varginha, Pequi, Maravilhas, Papagaios, Caetanópólis e Paraopeba, o Nacab foi o escolhido. Já o Instituto Guaicuy atende os municípios de Três Marias, Felixlândia, Abaeté, Morada Nova de Minas, Paineiras, Biquinhas e São Gonçalo do Abaeté. Por fim, as comunidades indígenas recebem suporte do Insea, entidade que foi contratada em um acordo específico e que não foi afetada por essa redução orçamentária.

O corte de recursos foi anunciado no ano passado com base no acordo judicial firmado em 2021 entre a Vale, o governo mineiro e três instituições: o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública do estado. Foi estabelecido que a mineradora deve arcar com R$ 37,68 bilhões  para reparar os danos morais sociais e coletivos. O acordo prevê uma série de medidas envolvendo investimentos socioeconômicos, ações de recuperação socioambiental, ações para garantir a segurança hídrica, melhorias dos serviços públicos, obras de mobilidade urbana, entre outras. As indenizações individuais não entraram no acordo, sendo discutidas à parte, em negociações judiciais e extrajudiciais que já estavam em curso.

Para as assessoria técnicas, foi anunciado o valor R$ 150 milhões. De acordo com Flávia Gondim, coordenadora da Aedas, o corte foi de praticamente metade do que era previsto e pegou as entidades de surpresa. “Em março do ano passado, a gente foi informando por meio de um ofício das instituições de Justiça. Isso resulta em uma fragilização no direito das pessoas atingidas. Em julho, as instituições de Justiça nos chamaram para firmar um termo de compromisso com algumas disposições que já estavam decididas por elas”, conta.

Flávia Gondim explica que as assessorias técnicas começaram a atuar ainda em 2019, conforme decisão judicial no mesmo processo em que a Vale foi condenada a garantir a reparação integral dos danos. “Quando o acordo de reparação foi firmado e homologado judicialmente em 2021, os danos difusos e coletivos passaram a não ser mais objetos do processo. O acordo criou uma nova fonte de custeio e um novo escopo para a assessoria técnica. Mas, desde que ele foi firmado, há três anos, a gente batalha para aprovar o plano de trabalho, que organiza a atuação das assessorias técnicas.”

Flávia Gondim, coordenadora da Aedas, diz que corte de recursos pegou entidades de surpresa – Tânia Rêgo/Agência Brasil

As assessorias técnicas chegaram a fazer quatro planos de trabalho que não foram aprovados. O quinto, apresentado em fevereiro do ano passado, finalmente recebeu o aval das instituições de Justiça. Mas, já no mês seguinte, as entidades foram comunicadas que o valor previsto seria cortado pela metade. “Informamos que seria impossível executar completamente aquele plano de trabalho aprovado. Mas as instituições de Justiça reafirmaram o corte. Disseram que o valor seria referente ao restante do tempo de execução das assessorias técnicas, que é de três anos, contando a partir do início de 2023. A gente fez uma desmobilização de mais de 100 pessoas da equipe. E isso repercute na nossa atuação em campo e no direito das pessoas. E o tempo de atuação que a gente tem daqui em diante é de dois anos”, acrescenta a coordenadora da Aedas.

Demissões também foram realizadas pelo Instituto Guaicuy. “Precisamos iniciar um processo de redução no quadro de funcionários, desligando 40 pessoas”, anunciou a entidade em abril do ano passado”. Assim como a Aedas, o Nacab também critica o corte. A entidade, no entanto, afirma que poderia ter sido pior. Segundo nota divulgada em seu site, um primeiro anúncio indicava que o volume de recursos seria 48% inferior ao previsto. Por meio do diálogo, o percentual foi reduzido para 30%. “Durante todo esse período, o Nacab prezou por uma solução que atendesse à exigência das instituições de Justiça de uma atuação mais enxuta, mas que, atendesse a necessidade imediata de assessoria técnica das famílias atingidas”, diz o texto.

Com a mudança no orçamento, foi preciso então escrever o sexto plano de trabalho, observando atuações prioritárias listadas no termo de compromisso elaborado pelas instituições de Justiça. As entidades deverão prestar suporte aos atingidos nas seguintes medidas previstas pelo acordo: projetos de demandas das comunidades atingidas e das comunidades tradicionais, projetos para a Bacia do Paraopeba e para Brumadinho. São iniciativas que envolvem diretamente as populações impactadas. e caberá às assessorias técnicas atuar para viabilizar a participação informada dos atingidos.

Em nota, o MPMG anunciou o repasse de R$ 150 milhões para as assessorias técnicas, com prazo de 30 meses para realizar tarefas de apoio às pessoas atingidas e povos e comunidades tradicionais. O montante foi repartido entre todas as entidades que atuam na Bacia do Rio Paraopeba. Foi instituído também um processo de fiscalização das atividades, com monitoramento e avaliação da execução dos planos de trabalho.

“As assessorias técnicas independentes devem prestar contas com a máxima transparência, mediante a apresentação de relatórios trimestrais, finalísticos e financeiros”, informa o MPMG. Ainda de acordo com a nota, o termo de compromisso dá mais densidade regulatória na efetuação do direitos dos atingidos à assessoria técnica, e o ajuste foi necessário para compatibilizar a existência das diversas estruturas que atuam na prestação e fiscalização das atividades reparatórias.

Indenizações individuais

A reparação daqueles danos que não foram abarcados pelo acordo continua sendo tratada no processo judicial. Há discussões, por exemplo, sobre as indenizações individuais e os danos supervenientes, que incluem aqueles que ainda não foram devidamente identificados. O escopo de atuação das assessorias técnicas para estas questões também tem sido tratado no processo. “Sobre esses pontos, nós entregamos um plano de trabalho específico, e as instituições de Justiça levaram ao processo em 9 de março do ano passado”, conta Flávia Gondim. Ainda não houve, no entanto, uma decisão do juiz validando esse plano de trabalho nem definindo tempo de implementação e volume de recursos.

Há cerca de dez dias, o MPMG organizou uma apresentação de balanço da reparação passados cinco anos da tragédia. Junto com as demais instituições de Justiça, foi anunciado que foram selados mais de 23 mil acordos de indenização individual. Esses números se referem a acordos firmados com base em termos de compromisso negociados pela Vale com a Defensoria Pública de Minas Gerais e com o Ministério Público do Trabalho (MPT). Eles fixam parâmetros para os pagamentos.

Em nota, a Vale afirma que, desde 2019, mais de 15,4 mil pessoas fecharam acordos de indenização. “A Vale reafirma seu profundo respeito às famílias impactadas pelo rompimento da barragem e segue comprometida com a reparação de Brumadinho, priorizando as pessoas, as comunidades impactadas e o meio ambiente”, acrescenta o texto. A divergência entre os números apresentados pela Vale e os divulgados pela Defensoria Pública e pelo MPT pode se dar porque alguns atingidos têm direito a mais de um acordo, como no caso daqueles que perderam parentes e sofreram outros impactos.

Para Flávia Gondim, esses balanços não permitem ter uma dimensão correta da reparação. “Eles mostram quantitativos de pessoas indenizadas. Mas a nossa pergunta principal é outra. Não é quantas pessoas foram indenizadas. É quantas pessoas foram atingidas e quais são os danos que devem ser reconhecidos. E aí a gente consegue saber a proporção de pessoas que foram indenizadas frente ao total de atingidos. A gente tem uma bacia inteira”, diz ela.

Engenheira civil Josiane Melo perdeu irmã na tragédia de Brumadinho e critica processo indenizatório – Divulgação/TV Brasil

A Associação dos Familiares das Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem em Brumadinho (Avabrum) avalia que esse processo indenizatório foi atropelado. A entidade considera que não houve negociação. Era aceitar a oferta ou recusar. “Até teve uma escuta, mas não havia espaço para argumentos. E foi tudo muito em cima do acontecido. A gente ainda estava com 197 pessoas não encontradas, em meio ao caos, e as reuniões sobre as indenizações já tinham começado”, diz a engenheira civil Josiane Melo, que integra a diretoria da Avabrum e faz duras críticas ao acordo. Ela perdeu sua irmã Eliane Melo, que estava grávida de cinco meses.

Liquidação coletiva

No mês passado, uma decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) estabeleceu um novo ingrediente para o processo indenizatório. O juiz Murilo Silvio de Abreu acolheu pedido do MPMG e concordou com a possibilidade de liquidação coletiva. Dessa forma, os atingidos, caso quisessem, poderiam pleitear suas indenizações de forma conjunta. A Vale contesta a decisão e argumenta que a fase de liquidação não pode ser iniciada porque há estudos periciais ainda em curso, os quais serão suficientes para identificar todos os danos individuais e valorá-los. Também defendeu a liquidação de forma individual como meio mais adequado.

As assessorias técnicas consideram que a decisão é um avanço. “É fundamental que as pessoas tenham acesso à indenização justa e também ao reconhecimento. Isto é, as pessoas serem reconhecidas como atingidas. Em um processo coletivo, o juiz define quais são os parâmetros de indenização, quais são os parâmetros de reconhecimento e como vai se dar a execução. E a Vale vai ser obrigada a seguir as determinações. Então seria um avanço muito grande, porque, sem esse processo coletivo, as pessoas atingidas ficam discutindo e disputando ali com a Vale individualmente. E, tendo em vista todo o poderio da Vale, a disputa é bastante desigual. Ela tem estrutura, tem muitos advogados”, diz Flávia Gondim.

Na sua decisão, o juiz Murilo nomeou como perita a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Caberá à instituição prestar auxílio ao juízo na hora de arbitrar os valores indenizatórios. Documentos produzidos pelas assessorias técnicas poderão ser juntados ao autos para consideração no processo. Eles podem ser levados em conta para o estabelecimento de uma matriz de danos. É possível que uma liquidação coletiva beneficie inclusive aqueles que já firmaram acordo de indenização e receberam valores. Isso depende do que ficou pactuado em cada caso. Mas, havendo danos que não tenham sido contemplados, o atingido pode requerer valores adicionais.

“Estamos falando de uma indenização que não é referente a um dano causado de forma pontual. É um conjunto de danos extremamente complexo que modificou profundamente a vida das pessoas. Então no âmbito individual é muito mais difícil as pessoas conseguirem ter indenização justa. No processo coletivo, os parâmetros coletivos fixados pelo juiz vinculam a Vale. Não será ela a responsável por dizer quem é e quem não é atingido. Ela terá que aplicar os critérios de reconhecimento que forem fixados. Também não será a Vale que vai dizer quanto vai pagar para as pessoas. Esse é o grande avanço da liquidação coletiva”, acrescenta Flávia Gondim.

Balanço do acordo

No balanço da reparação passados cinco anos da tragédia, as instituições de Justiça fizeram uma avaliação positiva da execução do acordo até o momento. “Nós não conseguiríamos na Justiça de forma alguma o que foi estabelecido no acordo”, relata o procurador-geral do MPMG, Jarbas Soares Júnior. O Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), organização que luta contra os impactos causados pela atividade minerária em todo o país, tem outra visão e considera que a reparação não chegou às comunidades mais atingidas.

Para as assessorias técnicas, os montantes definidos para cada uma das medidas não correspondem à demanda. “O que a gente tem confirmado na execução do acordo é que esses valores foram estipulados sem ter uma projeção real do quantitativo de recurso que era necessário para reparação. Foi fechado o valor para depois mensurar o dano. Então é como se o valor orientasse o direito, quando deveria primeiro ter sido feito um diagnóstico dos danos, para estabelecermos o direito à reparação, e então mensurar o valor”, diz Flávia Gondim. Segundo ela, o acordo fez o inverso.

A coordenadora da Aedas afirma que os achados das assessorias técnicas indicam muitos desafios para a reparação. “Uma das coisas que a gente identifica muito como assessoria técnica é o profundo adoecimento das pessoas atingidas. É algo generalizado. Há uma contraposição entre o que é difundido pela Vale e o que a gente vê quando pisa no chão no solo atingido e conhece o que é vivenciado pelas pessoas. É completamente diferente.”

O direito à assessoria técnica já havia sido conquistado pelos atingidos em uma outra tragédia, ocorrida mais de três anos antes. Em novembro de 2015, 19 pessoas morreram no rompimento de uma barragem em Mariana (MG) pertencente à mineradora Samarco, joint-venture da Vale e da BHP Billiton. O episódio causou também grande devastação ambiental na Bacia do Rio Doce, atingindo cidades mineiras e capixabas até a foz. Apesar da conquista, divergências entre os atingidos e a mineradora atrasaram a implementação plena do direito.

“Em muitos territórios da Bacia do Rio Doce, os atingidos só tiveram assessoria técnica mais recentemente, oito anos depois. No epicentro, na cidade de Mariana e em cidades vizinhas, elas foram criadas um pouco depois do rompimento. Mas, no restante da bacia, demorou mais. Já na Bacia do Rio Paraopeba, a atuação das assessorias técnicas foi assegurada para todos os territórios logo depois do rompimento da barragem. Teve uma decisão judicial em que esse direito foi garantido”, explica Flávia Gondim.

Mais recentemente, o Congresso aprovou e o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou a Lei Federal 14.755/2023, que institui a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB). Era uma demanda antiga dos atingidos.

Foram fixadas regras de responsabilidade social que devem ser observadas pelas mineradoras. Além disso, foram estabelecidos direitos para as populações que sofrem os impactos decorrentes das atividades envolvidas. Um deles é a assessoria técnica independente. Dessa forma, a atuação dessas entidades se tornou uma exigência legal. “Assessoria técnica é um direito fundamental para garantir o mínimo de paridade de armas na disputa judicial e extrajudicial contra a Vale e as mineradoras que cometem esses crimes”, acrescenta Flávia Gondim.

Após desastre da Vale, pataxós erguem nova aldeia e combatem grileiros

O rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho (MG), que completou cinco anos nesta quinta-feira (25), deu início a uma verdadeira saga de grupos indígenas atingidos. Desde que a tragédia ocorreu, em 2019, o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU) já emitiram múltiplas recomendações frente a relatos de violações de direitos.

A mesma tragédia que ceifou 270 vidas e devastou uma grande porção do meio ambiente, deixou impactos para famílias das etnias Pataxó e Pataxó Hã-hã-hãe, no município de São Joaquim de Bicas (MG), vizinho à Brumadinho. A Aldeia Naô Xohã se situava às margens do Rio Paraopeba. A lama que escoou pelo manancial prejudicou suas atividades produtivas e impossibilitou práticas religiosas. Junto com os impactos ambientais, vieram as divergências sobre como lidar com as consequências da tragédia. A aldeia se dividiu e muitos indígenas buscaram outros rumos.

Rio Paraopeba, em Brumadinho – Divulgação Defesa Civil/Betim

“Se você me perguntar o que eu mais queria hoje, eu responderia que queria voltar à comunidade que eu vivia, na base do rio. Naquela época, o grupo que a gente liderava estava unido. A gente comia e bebia na mesma cuia. Não tinha contenda, não tinha ameaça. Hoje eu e meu esposo estamos no programa de proteção de defensores de direitos humanos”, diz a cacique Célia Angohó.

Ela lidera um grupo de 30 famílias pataxós hã-hã-hãe que recebeu ajuda da comunidade nipo-brasileira, ergueu uma nova aldeia em uma mata e precisou enfrentar ameaças de grileiros. O temor ainda ainda existe.

Célia Angohó é parente da pajé Nega Pataxó, assassinada por fazendeiros no último domingo (21) no sul da Bahia. Seu esposo é primo de Galdino, indígena vítima de um crime bárbaro que chocou o Brasil em 1997: ele foi queimado vivo em Brasília por jovens de elite.

“Chegamos em 29 de março de 2021”, fiz a cacique Célia Ãgohó. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

“Disseram que nossa pajé tombou com seu maracá na mão. E eu me inspiro nela para seguir lutando. Essa é a nossa história. Desde que deixamos o útero da nossa mãe a gente não tem paz”, diz Ãngohó entre lágrimas.

A Aldeia Katurãma, como foi batizada, foi estruturada graças ao apoio da Associação Mineira de Cultura Nipo-Brasileira (AMCNB). A entidade cedeu uma área de 36 hectares, conhecida como Mata do Japonês, em São Joaquim de Bicas. Hoje, o local conta com escola, posto de saúde e alguns quijemes, como são chamadas as habitações pataxós. Mas a ocupação da área não foi fácil.

“A gente chegou aqui no dia 29 de março de 2021. Essa área estava sendo destruída. Havia muitos grileiros destruindo isso aqui tudo. Uma parte estava pegando fogo, tinha caminhão tirando madeira. E aí a gente foi para a luta para conseguir descobrir quem era os donos dessa área? Porque tem uma placa ali na entrada escrita Mata do Japonês E a gente perguntando: onde estão os donos dessa terra? Por que que estão deixando essa terra ser destruída enquanto nós estamos lutando para ter um pedaço de chão?”, conta Ãngohó.

O grupo conseguiu contato com a AMCNB e negociaram um acordo para cessão e compromisso de compra a venda. Haveria doação de 70% do terreno e os demais 30% adquiridos e quitados futuramente, com recursos que os indígenas esperavam receber da Vale, como indenização em reparação aos danos morais e materiais. Segundo Ãngohó, a entidade já decidiu porsteriormente não mais cobrar, o que permitirá usar a verba indenizatório para investir em melhorias na aldeia.

Rogério Farias Nakamura, vice-presidente da AMCNB, confirma a doação de 100%. A entidade também assumiu o pagamento das taxas de cartório e outras despesas relacionadas com a transferência. “Em outubro de 2022, finalmente saiu a certidão de averbação pelo registro de imóvel tornando-se assim oficialmente a transferência legal da doação da Mata do Japonês. Continuamos acompanhando sem interferir na vida da aldeia”, disse.

Ãngohó celebra a obtenção da posse legal. “Acordamos uma cláusula que, no futuro, se a gente não zelar e cuidar disso aqui, eles podem chegar e pegar o terreno de volta. Foi uma forma que a gente negociou, porque era uma área que estava toda destruída. Então a gente precisava provar a capacidade e a força dessa comunidade indígena para saber reflorestar e para proteger essa mata. Nós não precisamos entrar em guerra contra os grileiros. Foi tudo na força dos nossos maracas, dos rituais, da espiritualidade com a força de Txôpai”, afirma.

Os grileiros, no entanto, fizeram graves ameaças em 2021. Houve relatos de tentativas de incêndio e de invasões de homens armados. A própria AMCNB, dona do terreno desde 1981, já enfrentava há anos problemas com grileiros que agiam de forma ilegal na região desmatando vegetação nativa.

Cacique Célia Ãgohó,Pataxó. Foto: – Tânia Rêgo/Agência Brasil

As ameaças dos grileiros chegaram a ser relatadas por meio de ofício da Fundação Nacional do Índio (Funai) ao MPF e ao DPU. Em resposta, as duas instituições oficiaram a Polícia Federal para que fossem realizadas diligências com o objetivo de apurar o conflito. Conforme estabelece a Lei Federal 6.001/1973, terras indígenas devem ser protegidas pela Polícia Federal. Além disso, MPF e DPU também expediram uma série de recomendações à Vale, para que fosse garantida a segurança e a integridade física dos pataxós, inclusive através da contratação de equipes de segurança.

Direitos

A batalha dos pataxós liderados pela cacique Ãngohó pela reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem resultou em um acordo de reparação, indenização e compensação integral. Na negociação, os indígenas foram representados por advogados particulares. Segundo a mineradora Vale, parte dos valores acertados já foi paga outras parcelas previstas serão repassadas após a certificação final da homologação judicial do acordo.

“Conforme estabelecido, a Aldeia Katurãma também continua sendo assistida, até dezembro de 2027, por equipe de saúde multidisciplinar composta por médico, psiquiatra, psicólogo, enfermeira e assistente de enfermagem, subcontratada pela Vale para prestar serviços de atenção primária à saúde, de forma complementar ao poder público. Os profissionais atuam em Unidade Básica de Saúde, que funciona dentro da aldeia, desde o ano passado”, acrescenta a mineradora.

Com base nesse acordo, a Vale excluiu a Alderia Katurãma dos estudos diagnósticos de danos a serem realizados pelo Instituto de Estudos de Desenvolvimento Sustentável (Ieds). Trata-se de um levantamento previsto pelo Termo de Ajuste Preliminar Extrajudicial (TAP-E), que foi firmado com o MPF em abril de 2019 em benefício dos povos indígenas. O argumento da mineradora foi de que o diagnóstico não seria necessário para as populações que já estavam sendo reparadas mediante acordo particular.

Em dezembro do ano passado, no entanto, o Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6) determinou que o diagnóstico de danos, que será realizado pelo Instituto de Estudos de Desenvolvimento Sustentável (Ieds), contemple também os indígenas que possuem acordos com a Vale. Para o desembargador Álvaro Ricardo de Souza Cruz, o levantamento é indispensável para conhecer a extensão e profundidade dos danos e verificar se os valores dos acordos individuais são suficientes para garantir a reparação.

Um outro acordo, celebrado em 2021 com a participação do MPF, da Funai e da DPU, alterou o pagamento do auxílio emergencial, benefício pago mensalmente pela Vale aos atingidos da tragédia. Ficou definido que, no caso dos indígenas, ele seria substituído por um suporte financeiro em parcela única. Ãngohó considera que não foi uma boa negociação, pois sem o rio, a aldeia teria custos adicionais com água e alimento no longo prazo. “A gente também não tinha experiência. Ninguém nunca tinha enfrentado uma catástrofe como essa. A gente não sabia negociar, avaliar esses números”.

Ela afirma ainda que apenas nove das 30 famílias da aldeia tiveram direito a indenização. Ela conta que os povos Pataxó e Pataxó Hã-hã-hãe são nômades e, no mês de janeiro, quando as crianças estão de férias, eles costumam se mudar para a aldeia mãe, no litoral da Bahia e ao pé do Monte Pascoal. Por essa razão, no dia do rompimento da barragem, muitos estavam fora do território.

“A gente come nossos mariscos, faz os nosso rituais para manter viva a nossa tradição. Encontramos os nossos parentes e buscamos fortalecimento da espiritualidade na nossa aldeia de origem. Várias famílias então estavam na Bahia quando ocorreu a tragédia e disseram que não tinha como reconhecer quem estava viajando. Só quem estava dentro do território. Mas esse critério foi aplicado só para nós indígenas, porque para o resto não foi. A pessoa poderia estar lá nos Estados Unidos que ela conseguiu receber indenização”, reclama.

O fato deles terem deixado a Aldeia Naô Xohã após o rompimento teria dificultado ainda mais a situação, pois a Vale teria imposto barreiras para reconhecer como atingidos os indígenas não-aldeados. Ãngohó conta que a decisão de sair do território contaminado não foi fácil. “A gente via nossas crianças, nossos anciões perguntando se o rio já estava limpo, se podia tomar um banho, se podia pescar. Foi muito difícil. A gente só não passou pior porque o meu povo é um povo guerreiro”. Por sua vez, a Vale afirma que mantém o diálogo aberto com as comunidades afetadas pelo rompimento da barragem e que busca respeitar seus direitos e suas tradições.

Antes de chegarem à Mata do Japonês, o grupo se estabeleceu por um tempo em um bairro urbano na periferia de Belo Horizonte. Lá, eles precisaram se virar em meio à pandemia de covid-19. “Eu consegui ganhar máquinas de costura e usamos uma garagem para fazer máscara e vender. A gente ficava até 3, 4 horas da manhã fazendo máscara. E o número de encomendas estava muito grande. A gente tirava o sustento para o grupo”.

O pouco contato com a natureza, no entanto gerava incômodo que só foi superado com a mudança para a Mata do Japonês. Lá a comunidade desenvolveu um trabalho usando mudas para reflorestamento. “Tem gente que pensa que estamos aqui por causa de dinheiro de Vale. Somos chamados de invasores, mas na verdade nosso povo protege a biodiversidade. A situação climática está gritando. A responsabilidade nos dada como guardiões. Quando eu cheguei aqui, essa área estava sendo devastada. Hoje, se você sobe um drone, você não vê um rastro de queimada. Já vai fazer três anos e estamos conseguindo fechar a mata novamente. Temos algumas árvores nativas como pau-óleo, braúna, sucupira. Temos o privilégio de ter jacarandá. Nem no Monte Pascoal, nós temos mais”.

Modo de vida

Apesar de todas as dificuldades, a cacique mira o futuro e faz um balanço positivo. Vê muito trabalho pela frente, mas diz acreditar na força da comunidade. “A gente sofreu muito, mas eu não posso contar só derrota. Eu tenho que contar que a gente conseguiu essa a área. Eu sou imensamente grata a esse grupo de japonês porque, se não fosse ele, onde que a gente estava agora? E eles se compadeceram da nossa luta.”

 Comunidade indígena Pataxó hã-hã-hãe, zona rural de Brumadinho. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Ela enumera as conquistas. “Construimos casas no modo tradicional e os indígenas estão vivendo nos seus quijemes. Aqui não tinha água, não tinha nada. E nós construímos o posto de saúde e a primeira escola da nossa língua do Brasil. É uma escola bilíngue. A primeira língua falada ali é patxohã. Nós temos professor de patxohã, de português, de matemática, de física, de uso e território, de horticultura, de medicina tradicional, de direito do jovem pataxó. Por incrível que pareça, a gente estuda mais do que vocês. Temos duas grades. Temos as matérias da nossa cultura. E temos nos adaptar com horário do MEC.”

A retomada do modo de vida tradicional, no entanto, está prejudicada pela ausência do rio. A comunidade hoje precisa pagar pelo acesso à água. O volume da caixa d’água é controlado. E houve momentos de seca. Esse é um grade desafio para a comunidade, uma vez que os pataxós hã-hã-hãe posseum forte ligação com os rios e com o mar. Txôpai, a principal divindade, é o Deus da água.

“Estamos completando cinco anos que nossas crianças não podem ser batizadas, não podem passar pelo ritual. A gente tinha uma geladeira natural que era um rio onde a gente buscava o alimento e a águ. Não precisava medir quantos litros a gente ia poder usar. Hoje, eu tenho que medir. Eu tinha peixe fresco para pescar e comer. Hoje, 30% do que a gente come dentro da nossa comunidade é industrializado e nós, que somos totalmente contra o agrotóxico e contra esses alimentos processados, estamos sendo obrigados recorrer a esse alimento com essa química. Temos a plantação orgânica mas ainda está longe do ideal”.

Trabalho artesanal da aldeia Pataxó hã-hã-hãe, Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Para formalizar a posse do terreno, os indígenas criaram uma associação. Também foi aprovado um regimento interno, pelo qual todos os associados concordam em seguir o modo de vida tradicional. São vedadas formas de discriminação de gênero e de raça dentro da comunidade.

Ãngohó defende que a reparação pela tragédia chegue em benefício da associação. “Eu quero uma reparação coletiva, não uma reparação individual. Eu não penso em mim, eu penso no futuro da minha comunidade. Eu já estou ficando velha, mas e os novos? Vão para onde? Como vai seguir a história desse povo? Eu acho que a gente está criando um aldeia modelo”, diz.

Enchente

Na Aldeia Naô Xohã, os impactos da tragédia também persistem. Aqueles que ficaram, perderam a capacidade de plantar e pescar. Ficaram dependentes do fornecimento de água pela Vale. Também ficaram impedidos de realizar os rituais envolvendo o rio, bem como de utilizá-lo para lazer. Em 2022, um cheia agravou a situação, pois o rejeito se espalhou junto com a inundação, alcançando casas e o posto de saúde. Bombeiros precisaram atuar para resgatar indígenas ilhados.

Na época, o MPF e a DPU enviaram um ofício à mineradora cobrando medidas emergenciais em favor destes povos e destacando um estudo da organização não governamental SOS Mata Atlântica que apontava a má qualidade da água na região. “A quantidade de metais pesados presentes na água está muito superior aos valores estabelecidos pela legislação, com riscos à saúde humana: o ferro apresentou valores 15 vezes superiores ao permitido; o cobre, 44 vezes; o manganês, 14 vezes; e o sulfeto, 211 vezes”.

Duas semanas depois, os indígenas chegaram a protestar contra a insuficiência da reparação fechando uma ferrovia e rodovias próximas à aldeia. O MPF e a DPU expediram recomendação à Polícia Federal e à Polícia Militar de Minas Gerais para respeitarem o direito de manifestação.

No texto, afirmaram não haver notícias de que a Vale tivesse, espontaneamente, oferecido apoio aos indígenas removidos após a enchente. “Encontram-se amparados apenas pelo Poder Público e voluntários”, afirmaram as duas instituições. Elas também disseram que a mineradora se recusou a oferecer alternativa para abrigo temporário e insistiu que eles poderiam retornar para o território atingido.

Após a enchente, a Vale foi obrigada judicialmente a apresentar um plano de realocação. Mas a mineradora ofereceu uma área que foi considerada insuficiente para abrigar toda a comunidade. Dessa forma, apenas parte dos indígenas aceitou ir para o local, chamado de Chácara São Dimas. O restante acabou voltando para a aldeia após a normalização do nível do rio.

No mês passado, em uma audiência na 12ª Vara Federal de Belo Horizonte, foi firmado um novo acordo onde a Vale assumiu compromissos junto aos povos da Aldeia Naô Xohã envolvendo realocação, melhoria de infraestrutura e atendimento em saúde. As medidas pactuadas beneficiam tanto aqueles que seguem vivendo nas margens do Rio Paraopeba como os que estão na Chácara São Dimas.

Outra dificuldade enfrentada pelos indígenas envolve a garantia de assessoria técnica. Esse tem sido um direito assegurado judicialmente aos atingidos desde a tragédia ocorrida em Mariana (MG), quando o rompimento de uma barragem da mineradora Samarco causou 19 mortes e gerou poluição ao longo da bacia do Rio Doce. As próprias vítimas, nas diferentes cidades, passaram a escolher entidades capazes de lhes dar suporte e o custeio é uma obrigação da mineradora causadora dos impactos.

Os povos Pataxó e Pataxó Hã-hã-hãe selecionaram em 2021 o Instituto Nenuca de Desenvolvimento Social (Insea) como assessoria técnica. A Vale, no entanto, interrompeu o repasse de recursos em janeiro de 2023, alegando fim do contrato de dois anos. Na época, ela disse estar respaldada pelo TAP-E. No entanto, recentemente, o TRF-6 atendeu manifestação do MPF e da DPU e impôs uma derrota à mineradora. A Vale foi obrigada a manter a contratação até a conclusão do processo reparatório.

Galeria – Cinco anos de Brumadinho – Aldeia Kuturãma, em São Joaquim de Bicas – juca.varella

Uso do reconhecimento facial preocupa entidades

Enquanto espera pelo trem na estação, caminha pela rua ou relaxa em uma praia, você pode estar sendo vigiado por câmeras de segurança, que enviam imagens diretamente para um centro de controle policial. Lá, um programa de computador acessa o banco de dados com rostos de suspeitos de crimes e compara com as imagens das câmeras. O que parece roteiro de ficção científica, é realidade há um tempo em diferentes partes do país, onde sistemas de reconhecimento facial vêm sendo cada vez mais usados na segurança pública.

O caso mais recente foi a adesão de concessionárias do transporte público no Rio de Janeiro à tecnologia controlada pela Polícia Militar. Mais de 1.000 câmeras posicionadas em estações e vias estão agora disponíveis para o trabalho da corporação. 

Enquanto autoridades defendem a medida como eficaz para o combate à criminalidade, especialistas em direitos humanos e segurança apontam os riscos de ampliação do racismo e da privação de liberdade.

Horrara Moreira é advogada e coordenadora da campanha Tire Meu Rosto da Sua Mira, que defende o “banimento total do uso das tecnologias digitais de reconhecimento facial na segurança pública no Brasil”. Ela diz que o primeiro problema a ser considerado é a ocorrência de prisões equivocadas.

Horrara Moreira, advogada e coordenadora da campanha Tire Meu Rosto da Sua Mira – Foto: Arquivo Pessoal

“Há o problema da identificação, quando acontece algum erro nas informações biométricas do rosto e na comparação delas com o banco de dados. E existem os erros decorrentes dos trâmites do próprio sistema de justiça, como mandados de prisão que estão vencidos ou que já foram cumpridos”, alerta Horrara.

E se fosse possível melhorar as tecnologias disponíveis, a ponto de praticamente zerar o número de erros? Mesmo assim, Horrara afirma que não impediria um outro problema grave, a característica inerentemente racista do sistema.

“Muitas tecnologias de reconhecimento facial usam a inteligência artificial como regra de processamento matemático. Ela pode ser de deep learning ou de machine learning, em que você fornece previamente um banco de dados, para que ela aprenda a identificar os rostos de pessoas no geral. E você também precisa definir critérios de quem é homem, mulher, branco, negro, e ensinar a máquina a identificar esses padrões. Qualquer enviesamento nesse treinamento da máquina vai influenciar na taxa de precisão. E o treinamento não é transparente. Se eu dou mais informações para a máquina sobre pessoas negras, ela pode indicar que pessoas negras cometem mais crimes do que pessoas brancas”, avalia a advogada.

Thalita Lima coordena o Panóptico, projeto sobre reconhecimento facial do Centro de Estudo de Segurança e Cidadania (CESeC). Ela defende que a tecnologia não produz impacto significativo na redução da criminalidade e cita os exemplos de Salvador e do Rio de Janeiro para corroborar o argumento.

Thalita Lima, coordenadora do Panóptico, projeto sobre reconhecimento facial do CESeC – Foto: Arquivo Pessoal

“O estado que mais utilizou reconhecimento facial no Brasil foi a Bahia, onde mais de 60 municípios já o adotaram como medida de segurança pública. Salvador é permeada por câmeras que usam essa tecnologia. E um estudo do Panóptico mostra que entre 2019 e 2022, os índices criminais de roubo a transeuntes e de atentados contra a vida não tiveram mudanças significativas”, diz Thalita. 

“Assim como no estudo sobre o Rio de Janeiro, de um projeto piloto que aconteceu em 2019 em Copacabana e no Maracanã, quando foi verificado que a criminalidade aumentou. Segurança pública envolve medidas que são muito mais estruturais do que simplesmente adotar câmeras de reconhecimento facial”, acrescenta Thalita.

A pesquisadora enfatiza que também é preciso estar alerta à ampliação da vigilância sobre a população. Em termos morais e políticos, quais os riscos à privacidade e ao direito de livre circulação nas cidades? 

“Temos a vigilância em escala ampliada em ambientes de grande circulação de pessoas, e precisamos analisar que outras camadas de direito vão ser flexibilizadas. Não apenas o de se locomover, o de mobilidade, o direito à cidade, aos espaços onde se possa circular e não ter o risco de ser abordado erroneamente, mas também é preciso resguardar o direito à privacidade e à livre expressão nesses espaços. No Brasil, tem aumentado cada vez mais o uso dessa tecnologia sem uma reflexão dos riscos e sem relatórios de impacto dela”, afirma.

A reportagem da Agência Brasil entrou em contato com os governos do estado do Rio de Janeiro e da Bahia, citados na matéria, para que apresentassem mais dados e informações sobre o sistema de reconhecimento facial. Mas não obteve resposta até o momento.