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Pré-Olímpico: Endrick perde pênalti e Brasil cai diante do Paraguai

Buscando a classificação para os Jogos Olímpicos de Paris, o Brasil enfrentou o Paraguai, nesta segunda-feira (5) no estádio Brigido Iriarte, em Caracas (Venezuela), em seu primeiro compromisso no quadrangular final do Pré-Olímpico. Porém, a equipe comandada pelo técnico Ramon Menezes acabou sendo derrotada por 1 a 0 em confronto no qual o atacante Endrick desperdiçou uma cobrança de pênalti.

O revés foi marcado pela fraca atuação da seleção brasileira. O Brasil até chegou a criar boas oportunidades de abrir o marcador com Endrick, em cobrança de pênalti que parou nas mãos do goleiro Ángel González aos 27 minutos do primeiro tempo, e com John Kennedy, que mandou para fora aos 43 minutos.

Se a seleção brasileira não mostrou eficiência em suas oportunidades, o Paraguai não falhou quando a chance apareceu, com Peralta de cabeça um pouco antes do intervalo. Na etapa final o técnico Ramon Menezes mudou algumas peças, mas não conseguiu levar a equipe canarinho à virada.

Agora o Brasil mede forças com a Venezuela a partir das 20h (horário de Brasília) da próxima quinta-feira (8). Na primeira fase da competição os brasileiros foram derrotados por 3 a 1 pelos venezuelanos.

Socorro a aéreas não terá dinheiro do Tesouro, diz Haddad

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou nesta segunda-feira (5) que um eventual fundo para ajudar a financiar empresas aéreas em dificuldades não contará com dinheiro do Tesouro Nacional. A declaração foi após encontro com economistas na sede do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro.

“Nós estamos fazendo um levantamento da situação. Nós vamos entender melhor o que está acontecendo e não existe socorro com dinheiro do Tesouro. Isso não está nos nossos planos. O que está eventualmente na mesa é viabilizar uma reestruturação do setor, mas que não envolva despesa primária”, afirmou.

De acordo com Haddad, até fevereiro haverá um diagnóstico e uma proposta. O ministro enfatizou que o custo do querosene de aviação não pode ser utilizado como justificativa para aumento no preço dos bilhetes.

“O preço do querosene caiu durante o nosso governo [2023], não pode ser justificativa para aumento de passagem aérea.”

No último dia 25, a companhia aérea Gol, uma das três principais do país, entrou com pedido de recuperação judicial nos Estados Unidos. De acordo com um comunicado, a empresa fechou 2023 com dívida de mais de R$ 20 bilhões.

Isenção

Questionado sobre a pressão de varejistas para que o governo recue da isenção para compras internacionais de até US$ 50 – cerca de R$ 250 – o ministro disse que o assunto está sendo discutido em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso.

“Nós vamos discutir, Executivo, Legislativo e Judiciário, qual é a melhor solução para isso”, afirmou.

No entanto, Haddad destacou o funcionamento do programa Remessa Conforme. “Caiu muito a questão do contrabando que envolvia até a remessa de droga para o Brasil. Isso acabou”, aponta.

O Remessa Conforme oferece a isenção até US$ 50 para empresas de comércio eletrônico que se comprometam a fornecer informações sobre origem, destinação e conteúdo das remessas. Com os dados, a Receita Federal tem à disposição, de forma antecipada, as informações necessárias para a aplicação do gerenciamento de risco das remessas internacionais, tendo mais tempo para definir as mercadorias escolhidas para fiscalização.

Blocos de saúde mental espalham alegria pelas ruas do Rio

O Coletivo Carnavalesco Tá Pirando, Pirado, Pirou! abre alas para a loucura nesse domingo (4), antecedendo o carnaval oficial do Rio de Janeiro 2024. A concentração está marcada para as 14h, na Avenida Pasteur, na Urca, zona sul da cidade, próximo à Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), onde faz uma espécie de baile com marchas-rancho. Depois, já com apoio da bateria da Portela, começa a andar, com caminhão de som, por volta das 16h, em direção à Praia Vermelha. Quatorze sambas concorreram à escolha do samba enredo deste ano do bloco. Ganhou o samba de Flávia Cris e Diogo Tapler, do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Torquato Neto, de Del Castilho, zona norte do Rio.

Os componentes do coletivo Tá Pirando, Pirado Pirou são pacientes da rede pública de saúde mental do Rio de Janeiro, profissionais do setor, familiares e simpatizantes da causa antimanicomial. Embora atraia milhares de foliões, o desfile é construído por cerca de 100 pessoas, incluindo oficinas de artes, percussão, composição musical, registro fonográfico, escolha coletiva do enredo e concurso de sambas realizado no Rio Scenarium, tradicional casa de samba da Lapa.

O enredo deste ano é Loucas, Divinas e Maravilhosas: Mulheres que Mudaram o Mundo, homenageando mulheres importantes dos cenários brasileiro e internacional, como a psiquiatra Nise da Silveira; a rainha do rock, Rita Lee; a escritora e caricaturista Pagu; a pintora Djanira; a escultora francesa Camille Claudel; as Mães de Maio, da ditadura argentina, que eram chamadas As Loucas da Praça; a escritora Conceição Evaristo, entre outros nomes.

A camiseta traduz a homenagem por meio de uma flor, imaginada pelo ilustrador oficial do bloco, Samy das Chagas, que se trata no CAPS Franco Baságlia, em Botafogo, que ligou todos esses nomes como se fossem uma trama. A passista do bloco vai para a rua este ano fantasiada de Maria Felipa de Oliveira, escravizada liberta que defendeu a Ilha de Itaparica, na Bahia, da invasão dos portugueses.

Desfile acústico

As informações foram dadas à Agência Brasil pelo psicólogo psicanalista e especialista em saúde mental Alexandre Ribeiro Wanderley, cofundador e coordenador do bloco. “Quando o caminhão chegar em frente ao Pão de Açúcar, haverá a tradicional revoada de balões de gás, seguindo-se show em um palco montado no local. Em seguida, dando prosseguimento ao desfile, agora acústico, e de acordo com a tradição, se apresentarão blocos convidados, simpatizantes da causa de uma sociedade sem manicômio. Por causa do enredo de 2024, entre 18h e 19h, se apresentará nas areias da Praia Vermelha um bloco só de mulheres, o Mulheres Rendadas e, entre 19h e 20h, o bloco Vem Cá, Minha Flor”.

No carnaval do ano passado, o bloco criou um carro alegórico batizado A Barca dos Encantados, homenageando quatro fundadores da agremiação que morreram durante a pandemia da covid-19, com referências de várias tradições religiosas, trazendo, na frente, a figura de Iemanjá. “E a gente achou tão bonito que ele acabou incorporado ao desfile deste ano. Do ano passado para cá, a gente entendeu que surgiu uma nova tradição no bloco. Quando o desfile chega na praia, a gente joga as flores no mar e presta homenagem à Iemanjá”.

Carnaval 2024 – Bloco Tá Pirando Pirado Pirou – Pamela Perez/Divulgação

Hospício

O bloco foi fundado em dezembro de 2004, pegando carona no movimento cultural de revitalização do carnaval de rua do Rio. Nessa época, havia duas instituições psiquiátricas vinculadas, o hospital psiquiátrico Instituto Philippe Pinel e o Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ipub/UFRJ). Hoje, se transformou em um bloco da rede pública de saúde mental, porque reúne CAPs de várias regiões do Rio. O primeiro desfile saiu no carnaval de 2005, ainda na Rua Laura Müller, em Botafogo, cuja associação era uma das fundadoras.

A mudança para a Avenida Pasteur se deu por uma questão de espaço e, também, por uma questão simbólica, em função de o lugar ter abrigado o primeiro hospício da América Latina, fundado pelo Imperador D. Pedro II, em 1852. “Ele tem essa dimensão político libertária. Um lugar, que já foi um espaço de confinamento, agora é o desfile que acaba nessa imagem de liberdade que é o mar. Muita coisa aconteceu nesses 20 anos”, disse Alexandre Ribeiro Wanderley.

A porta-bandeira do Tá Pirando Pirado Pirou é paciente do Ipub/UFRJ e o mestre-sala se trata no CAPS Franco Baságlia, em Botafogo. O intérprete do samba enredo é paciente do CAPS de Bangu. “E a gente mistura também com músicos e cantores profissionais. O bloco todo é feito nessa costura dentro e fora do setor de saúde mental, dando sempre esse destaque para os nossos usuários, com uma nova identidade que não aquela do psiquiatrizado”, explica Wanderley.

Império Colonial

Carnaval 2024 – Bloco Império Colonial desfila dia 6 de fevereiro- Império Colonial/Divulgação

Criado em 2009 por pacientes da saúde mental da antiga Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, o bloco Império Colonial traz como enredo em 2024 100 Anos de Transformação, 1 Ano de Folia. O desfile acontece na terça-feira (6), com concentração a partir das 14h e saída do cortejo a partir das 15h. A apresentação será feita no território da ex-colônia, que é considerado um sub-bairro de Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro.

À época da criação do bloco, havia uma roda de samba, atividade desenvolvida pela Rede de Saúde do território. “Ela foi se tornando um bloco, muito pelo próprio movimento dos participantes”, disse à Agência Brasil o articulador do Centro de Convivência do Museu Bispo do Rosário, Artur Torres, que está à frente do bloco. Atualmente, o bloco tem 12 integrantes fixos, entre trabalhadores, comunidade e usuários da rede de saúde mental. Mas nas apresentações no território, chega a ter 20 ritmistas. Alguns só podem vir em apresentações específicas. “Mas o bloco é sempre aberto”, garantiu Torres.

Durante o ano, são realizadas oficinas carnavalescas, sempre estimulando a comunidade vizinha a participar através das letras. “Porque a gente tem um encontro de compositores e as letras vão trazendo a própria história da comunidade, do território da Colônia”. Este ano, o bloco terá a primeira ala infantil, resultado de parceria do Centro de Convivência em Saúde Mental com o Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi).

Em relação ao enredo, Artur Torres esclareceu que o bloco não está comemorando a Colônia Juliano Moreira nem o manicômio em si. “A gente está comemorando o quanto esse território, com essa história que perpassa ali pelo manicômio, se transformou. O quanto a gente conseguiu modificar e transformar essa história em um ano de folia porque é o ano inteiro de centenário. E a gente vai fazer um ano inteiro de festa, de movimento, de novas transformações. Viva dona Nise da Silveira!”.

Diferente da maioria dos blocos de rua, o Império Colonial não escolhe um samba enredo a cada ano. Além do samba principal Alegria Geral, criado por todo o coletivo de compositores da agremiação e cantado a cada ano, o Império Colonial toca um repertório de sambas durante o percurso.

Iniciativas

O atual diretor do Museu Bispo do Rosário, Alexandre Trino, disse à Agência Brasil que o bloco mobiliza iniciativas relacionadas à arte e cultura na comunidade que se efetivam no carnaval, mas também com as atividades que, de alguma forma, no decorrer do processo de preparo para o carnaval, mobilizam a própria equipe do museu e do centro de convivência. “Tudo isso, de alguma forma, mobiliza os nossos participantes e efetivos do museu, que atuam em outras atividades ligadas à arte e à cultura e produzem uma identidade de ações relacionadas ao bloco em si”.

Trino explicou que o número de participantes cresce à medida que o desfile se aproxima e são realizados os preparativos para o cortejo. A agremiação se articula com outros blocos parceiros relacionados à luta antimanicomial no Rio de Janeiro, como o Loucura Suburbana.

Na avaliação de Alexandre Trino, o Império Colonial só traz benefícios aos ex-assistidos da Colônia Juliano Moreira e à vizinhança. “Acaba sendo uma estratégia de arte e cultura que produz inserção social desses ex-internos da colônia que hoje têm autonomia de vida e que, de alguma forma, interagem culturalmente com a proposta que o bloco oferece, não somente no desfile, mas em toda a montagem estrutural, que vai desde a escolha do samba, até a elaboração de adereços, alegorias, fantasias e tudo o mais.

Loucura Suburbana

A questão do tempo vai nortear o desfile do carnaval 2024 do bloco Loucura Suburbana, que concentra no dia 8, às 16h, no Instituto Nise da Silveira, com saída pelas ruas do bairro do Engenho de Dentro, zona norte do Rio, às 17h. A bateria Ensandecida acompanha os foliões, convocando a população para a “liberdade da loucura de amar”, adianta o coordenador técnico do Ponto de Cultura Loucura Suburbana, Richard Ruszynski. “Desta vez, ficou muito presente a questão do tempo para a gente: do passado, do presente e do futuro. Isso muito relacionado com a história do Loucura e do bairro”.

Bloco Loucura Suburbana desfila no dia 08 de fevereiro – PH Noronha/ Divulgação

O enredo se baseia na frase: “O samba da gente é nosso presente, passado e futuro”. Ruszynski acrescenta que “isso relaciona toda a história do Loucura com o bairro, que tem histórico de samba, de bloco de carnaval, com a saúde mental, com o Instituto Nise da Silveira. Daí surgiu a ideia de abordar isso este ano”.

O samba enredo foi escolhido no último dia 25 de janeiro. Concorreram 36 sambas, de autoria de usuários, trabalhadores e foliões de todos os gêneros e raças, mas o compositor Adilson Nogueira do Amaral, usuário do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Manoel de Barros, foi o vencedor com a música “Te amei, Te amo, Te amarei”. Adilson é tricampeão do carnaval do bloco, com sambas vencedores nos carnavais de 2014, 2015 e, agora, em 2024.

O bloco reúne profissionais de saúde, antigos assistidos do Instituto Nise da Silveira, familiares, pacientes atuais, pessoal das residências terapêuticas (RTs), pessoas que já não têm mais internação. “É muito bacana por isso. Acaba virando um ato também de solidariedade e de apoio à reforma psiquiátrica”, disse Richard Ruszynski. A porta-bandeira continua sendo Elisama Arnaud, que tem como mestre-sala Sidimar Marinho, ambos ex-assistidos pelo instituto. Mais de 2 mil pessoas, em média, participam do desfile.

Memorial da Resistência resgata histórias sobre a imprensa feminista

O Memorial da Resistência, na capital paulista, realizou neste sábado (3) uma roda de conversa com mulheres que desafiaram a repressão no período da ditadura instaurada com o golpe militar de 1964, no Brasil. Elas se impuseram através da imprensa e ao contestar papéis de gênero impostos e o autoritarismo instalado no país.

Entre essas mulheres, estava Lia Katz que, no fim dos anos 60, militava em defesa da democracia e que chegou à “panelinha das comunicadoras” quando começou a participar, juntamente com a amiga Rita D. Luca, de reuniões do movimento feminista, em São Paulo.

Os encontros se fortaleceram em 1975, quando foi comemorado o Ano Internacional da Mulher, com a realização da primeira edição da Conferência Mundial da Mulher, que teve como lema “Igualdade, Desenvolvimento e Paz”. Na imprensa feminista, o destaque eram os jornais Nós Mulheres, Mulherio  e o Brasil Mulher.

O ano de 1975 marcou o retorno de Lia ao Brasil – ela viveu em exílio na França durante cinco anos – e  também aquele em que nasceu sua filha. Na Europa, ela fez faculdade e levantou o complemento do “dinheirinho” que seus pais mandavam, suficiente para a vida sem luxo de estudante, fazendo bicos para intelectuais brasileiros, como a transcrição de fitas. 

O tempo de exílio, pontua ela, serviu para “poder rever o que estava acontecendo no Brasil”. “Porque a luta armada estava sendo esfacelada, todo mundo sendo preso, morto. Eu pude fazer a crítica do que estava acontecendo, para voltar com uma consciência mais elaborada”, emenda.

O alerta de que havia agentes da repressão em seu encalço acendeu cedo para ela, que tinha somente 17 anos quando deixou tudo para trás. Foi simples o gesto que a colocou sob a mira: a direção da organização clandestina em que atuava com o namorado caiu e, com isso, o casal emprestou o apartamento para que os membros pudessem realizar uma reunião. Ainda não tinha sequer terminado o colegial e viu seus amigos serem presos. “A gente não ficou tanto tempo preso porque era muito jovem ainda”, relatou Lia em entrevista exclusiva à Agência Brasil.

Segundo ela, havia, como ainda há hoje, uma ala de companheiros homens que não se importava com as pautas de defesa dos direitos das mulheres. Essa parcela sustentava que os movimentos deveriam focar em luta social, na implementação do socialismo e na cultura democrática.

“Eu não tinha vínculo com o feminismo até frequentar esses grupos e ficar grávida”, comenta Lia, que acabou virando escritora de livros infantis.

Como nas redações dos jornais feministas quem dava as cartas eram elas e não eles, saíam pautas e matérias sobre o direito a vagas em creches e os perrengues diários das mulheres trabalhadoras. “A gente ia à periferia fazer matéria, não estava só o clubinho”, observa.

Hoje, faria diferente. “Tem algumas matérias que entrevistam mulheres negras, mas é muito tímido, incipiente. Nosso grupo tinha talvez uma mulher negra. O racismo estrutural não era discutido nessa época. Por exemplo, hoje em dia, se faz feminismos plurais. Tinha também o grupo de mulheres lésbicas, que acabou compondo com todos os grupos”, lembra. 

Nenhum texto era assinado e era um sufoco manter a publicação em pé, pois ninguém tinha dinheiro. Até a cantora Elis Regina chegou a patrocinar números dos jornais. 

Perguntada sobre como se dava a censura sobre o conteúdo, Lia diz que não se recorda bem. Uma memória, porém, remanesce, de quando usaram o espaço da redação do jornal Versus, um porão. “[A censura] Não era como no Estadão, com receita na primeira página”, afirma.

Peças resgatadas de ataques em terreiros podem ser tombadas este ano

Instrumentos musicais, indumentárias, estatuetas, insígnias e outros objetos sacralizados compõem um acervo raro de 216 peças que foram roubadas em 1912 de terreiros em Alagoas, mas não destruídas, durante o maior ataque na história do Brasil a religiões de matriz africana. Esse conjunto de materiais resgatados, de valor histórico e cultural imensurável, pode ser finalmente tombado neste ano como patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

O ataque ocorrido a partir da madrugada do dia 2 de fevereiro de 1912 (há exatos 112 anos), em episódio que ficou conhecido como “Quebra de Xangô”, teria atingido, ao menos, 70 casas de religiões de matriz africana em Maceió e também em cidades vizinhas. De acordo com pesquisadores, um grupo que se intitulava Liga dos Republicanos Combatentes promoveu, naquele dia, terror com invasões, vandalismo, espancamentos e ameaças, além de roubar objetos sagrados.

Esses objetos a serem tombados, expostos na época pelos agressores como símbolo de vitória, passaram a significar a comprovação do crime. O ataque foi cometido pela agremiação política que fazia oposição ao governador da época, Euclides Malta, e o ‘acusava’ de proteção e proximidade aos terreiros. Por isso, prepararam aquele que se tornou um ataque sem precedentes de intolerância religiosa no país. Hoje, as 216 peças não destruídas estão sob guarda do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL).

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, conhecido como Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação

Segundo o historiador Clébio Correia, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), esse é o único caso registrado na história brasileira de quebra de terreiros de forma coletiva. “A gente tem episódios de invasão e quebra de terreiros em todo o Brasil, mas individualmente. No caso de Alagoas, houve verdadeiro levante de uma turba organizada por uma milícia chamada Liga dos Republicanos Combatentes, que era um braço armado do político Fernandes Lima, inimigo do governador Euclides Malta, à época”, explica.

O historiador do Iphan Maicon Marcante lembra que muitos objetos sagrados foram destruídos e queimados em praça pública. “Porém, esse conjunto de objetos sobreviveu a esses ataques e permaneceu por um período no Museu da Sociedade Perseverança até 1950. Depois foram transferidos para o IHGAL”, afirmou Marcante. Foi por isso que a coleção de objetos ganhou o nome de Perseverança. O primeiro inventário das peças foi feito em 1985.

Hoje, as peças, segundo o pesquisador do Iphan, apresentam desgaste. O diagnóstico do Iphan para o tombamento vai orientar as ações de conservação e restauração. Os tecidos estão desgastados. Alguns fios de conta estão arrebentados. “Mas, de forma geral, as peças estão preservadas. A gente está falando de estatuetas representativas de orixás, de instrumentos musicais, indumentárias, objetos e insígnias. São mais de 40 braceletes e pulseiras”.

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, conhecido como Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação

Mais divulgação

Maicon Marcante ressalta que, a partir do momento em que a coleção Perseverança for tombada pelo Iphan como patrimônio cultural brasileiro, haverá a responsabilidade do órgão na preservação e acautelamento desses bens. Nesse momento, ocorre a fase final de instrução de tombamento, que conta com a participação de representantes da comunidade de religiosos no processo de atribuição de valores e de significação cultural das peças. 

Ele explica que ao fim da fase de instrução, o processo passa por trâmites internos com avaliações na Câmara Técnica e no Conselho Consultivo, o que poderia ocorrer ainda no primeiro semestre de 2024. Após o tombamento, além das ações de preservação, conservação e estudo da historiografia, devem ser tomadas outras medidas para maior difusão do episódio invisibilizado. “Devemos levar o conhecimento sobre esse acervo, sobre esses objetos, para um público mais amplo, fora de Alagoas, inclusive. Podemos pensar em exposições virtuais também”.

Reverência aos ancestrais

 Entre as lideranças que colaboraram com o trabalho do Iphan está a Mãe Neide Oyá D´Oxum, de 62 anos. Ela afirma que os objetos e a memória do episódio de 1912 guardam o símbolo da resistência das religiões de matriz africana. “É a nossa história e com a qual podemos reverenciar a luta dos nossos ancestrais”. Um reconhecimento, segundo ela, veio em 2012, do então governador Teotônio Vilela Filho, que ediu desculpas, em nome de Alagoas, pelo episódio escandaloso de violência racista. 

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, conhecido como Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação 

Entre esses fatos, Mãe Neide cita Tia Marcelina que, conforme foi documentado pelos religiosos de Alagoas, foi espancada na noite do Quebra de Xangô e acabou morrendo nos dias seguintes. “Enquanto ela era açoitada, disse que os agressores poderiam quebrar braço e perna, tirar sangue, mas que não conseguiriam tirar o saber dela”.

Para preencher lacunas

De acordo com a professora Larissa Fontes, que produziu tese de doutorado na Universidade Lumiere Lyon (França) sobre as peças que restaram do ataque em Alagoas, a coleção Perseverança é o documento mais importante para a memória religiosa no estado. “São mais de 200 objetos que estão hoje abrigados no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas em estado deplorável, precisando muito de restauro, de um projeto sério de salvaguarda. A gente está nessa luta há muitos anos para o tombamento e caminhando agora concretamente para que isso saia neste ano”.

O livro da professora Larissa, O museu silencioso, foi publicado na França. A obra será também impressa no Brasil. Larissa, que é pesquisadora e também religiosa, colaborou com o Iphan e informa que o dossiê a ser entregue para aprovação do tombamento já está praticamente pronto. “Na minha pesquisa de doutorado, fui atrás da biografia desses objetos, buscando a tradição oral das comunidades religiosas afro-brasileiras de Alagoas, muito afetadas pela repressão e por esse silêncio”. Ela acrescenta que descobriu na pesquisa sinais e vestígios de perdas de materiais.

Larissa atribuiu essas lacunas à dificuldade de acesso e às peculiaridades da história. “Diferentemente de outros episódios de repressão que a gente teve no Brasil, que era a polícia que invadia terreiros, quebravam coisas e batiam em gente, e guardava os autos dos processos, em Alagoas, curiosamente, o Estado estava ausente da ação”.

A pesquisa atual da professora é um prolongamento da tese e pretende trazer de volta a Alagoas conhecimentos de perdas litúrgicas por meio de religiosos, autoridades religiosas que ainda detêm conhecimento na Bahia. “É muito importante essa ação patrimonial de recuperação e de reparação da memória”, afirma Larissa, docente do Departamento de Ciências Humanas e Sociais do Instituto Superior de Eletrônica e Tecnologia Digital, de Brest (França).

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, conhecido como Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação

Para o historiador Clébio Correia, professor da Ufal, a despeito do Instituto Histórico ter cumprido papel de salvaguarda desse material, o entendimento dos “povos de terreiros” é que esses documentos deveriam estar em um museu, um memorial afro de Alagoas. “E não em um espaço da elite branca intelectual do estado. A gente está vivendo, neste momento, o processo de tombamento legal, muito importante para garantir a proteção das peças”.

Na sua opinião, a coleção Perseverança é o símbolo maior do ataque e mobiliza hoje os terreiros de Alagoas. “É o que a gente chama de prova material da resistência negra no estado. E gera esse ideário dos terreiros de ter um espaço próprio da memória em Alagoas”. 

“Imprensa preconceituosa”

Em busca também de compreender o violento episódio, cercado de apagamentos, o professor de antropologia Ulisses Neves Rafael, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), assinou a tese Xangô Rezado Baixo, que faz referência à proibição, posterior à repressão do dia 2, do uso de atabaques nos terreiros, o “rezado baixo”. 

Ele descobriu o episódio por acaso, durante o mestrado, e se surpreendeu que praticamente não havia pesquisa sobre o ataque. Assim buscou garimpar o quebra-cabeças em veículos, com publicações desde o início do século 20 até os episódios de 1912. “O Jornal de Alagoas (veículo de oposição ao governador e o principal objeto de análise) publicou uma série de oito reportagens”.

Para esclarecer as lacunas da violência, descobriu que a imprensa teve um tom preconceituoso contra os terreiros. “A imprensa foi instrumento dessa repressão. Os textos tinham uma linguagem muito preconceituosa e racista. Na verdade, eles tiveram papel fundamental na construção dessa imagem negativa dos terreiros”, explica o professor, que desenvolveu a pesquisa na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a partir do ano 2000.

Segundo a jornalista Valdeci Gomes da Silva, da Comissão Nacional de Jornalistas pela Igualdade Racial, a imprensa em Alagoas contribuiu, ao longo da história, com a reprodução do racismo. “Não foi diferente no Quebra de Xangô. Como naqueles dias, até hoje há quem se refira aos rituais das religiões de matriz africana como magia negra. Isso é um termo muito racista e que a gente não pode admitir”. A pesquisadora avalia que os jornais demonstraram ser coniventes com a elite financeira.

O professor Ulisses Rafael, da UFS, acrescenta que as notícias do Jornal de Alagoas (veículo de oposição ao governador e o principal objeto de análise) tornaram os grupos ainda mais vulneráveis e foram capazes de mobilizar pessoas além da Liga dos Republicanos combatentes. “A campanha recebeu grande adesão da população, da sociedade civil. Falou-se em centenas de pessoas nas ruas”. 

Os jornais informaram que os episódios ocorreram na madrugada, mas que, na verdade, já havia antes um clima de perseguição e de ataque. O próprio governador teria sido obrigado a fugir do Palácio pelos fundos e ido para o Recife. “Nesse intervalo, em que ele se encontra afastado, as casas são atacadas. As invasões acontecem em Maceió, em terrenos mais afastados e também em cidades vizinhas”. O professor não crava o número de casas atingidas porque não foi divulgado um quadro completo de terreiros com nomes das pessoas ou localização. 

Essa adesão de dezenas pessoas ao ataque contra terreiros é compreendida pela professora de antropologia Rachel Rocha de Almeida Barros, da Universidade Federal de Alagoas, como sintoma de uma sociedade ainda escravagista, majoritariamente católica, provinciana e analfabeta.   “Imagine 100 pessoas correndo por Maceió em 1912, quebrando tudo”. 

Teria havido, na opinião da antropóloga, um planejamento prévio. Ao mesmo tempo em que existiam integrantes sem qualquer consciência, a Liga dos Republicanos Combatentes era civil, com característica paramilitar, e constituída também por ex-integrantes da Guerra do Paraguai. Nessa mistura, essas pessoas, segundo explica, estariam vestidas de foliões carnavalescos quando chegaram aos terreiros. O Brasil vivia uma lógica racionalista, ainda escravagista e as manifestações religiosas de pessoas pretas eram desumanizadas. “A abolição não tinha completado ainda três décadas”.

Quem também entende o papel “estratégico” dos agressores é o Pai Célio Rodrigues dos Santos, que é historiador. “Essa milícia procurou estudar qual era a data e os horários mais propícios de invasão aos terreiros (em vista dos momentos de homenagens e oferendas dos cultos). Eles chegaram trasvestidos de um bloco carnavalesco. Tocavam, batiam e gritavam. Chamavam de macumbeiros, quebravam tudo, agrediram e ameaçaram”. Como efeito, segundo o Pai Célio, líderes religiosos correram, fecharam suas casas e saíram. “Mas resistimos. Hoje, Alagoas tem um grande número de terreiros, principalmente na periferia. E aí são esses terreiros que dizem não à intolerância religiosa”, avalia. Ele acredita que existam ao menos 3 mil terreiros no estado.

Existem ainda outros efeitos, de acordo com o professor Clébio Correio, para a identidade local.  “Quando lemos as notícias de 1910, vemos que Maceió era vista na época como uma referência para os negros de outros estados. Vinham pessoas conhecer as religiões afro. Depois do quebra, passou a se vender para o resto do país como uma cidade de coqueiro, de sol e praia”, lamenta. O resultado disso foi um esvaziamento do carnaval de Alagoas porque as manifestações culturais foram silenciadas. 

A professora Rachel acredita que o maior interesse por essa temática, após os anos 2000, tem relação com a maior democratização do espaço acadêmico, coincide com a política de cotas e cria, com isso, reflexos nas temáticos sociais abordadas. “É muito importante ver que esse episódio revisitado gerou livro, discussões contemporâneas e também filme”.

O trabalho a que ela se refere é do professor Siloé Amorim, de antropologia da Ufal. O documentário 1912: o quebra de Xangô (confira aqui o roteiro).

O filme, produzido em mais de três anos, tem 52 minutos de duração e foi motivado principalmente pelo silêncio sobre o ataque e o desconhecimento da população, inclusive dos terreiros. “Poucas pessoas tinham conhecimento do caso. Maceió tem muitos terreiros e isso era muito pouco divulgado. Me surpreendeu muito o preconceito velado sobre as religiosidades de matrizes africanas aqui no estado”. Ele explica que a opção pelo filme tem relação com a necessidade de garantir visibilidade para um público maior a fim de denunciar o que ficou tanto tempo em silêncio.

Veja galeria de fotos:

Galeria – Intolerância religiosa – “Quebra de Xangô” – juca.varella

Peças de ataque de intolerância religiosa podem ser tombadas este ano

Instrumentos musicais, indumentárias, estatuetas, insígnias e outros objetos sacralizados compõem um acervo raro de 216 peças que foram roubadas em 1912 de terreiros em Alagoas, mas não destruídas, durante o maior ataque na história do Brasil a religiões de matriz africana. Esse conjunto de materiais resgatados, de valor histórico e cultural imensurável, pode ser finalmente tombado neste ano como patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

O ataque ocorrido a partir da madrugada do dia 2 de fevereiro de 1912 (há exatos 112 anos), em episódio que ficou conhecido como “Quebra de Xangô”, teria atingido, ao menos, 70 casas de religiões de matriz africana em Maceió e também em cidades vizinhas. De acordo com pesquisadores, um grupo que se intitulava Liga dos Republicanos Combatentes promoveu, naquele dia, terror com invasões, vandalismo, espancamentos e ameaças, além de roubar objetos sagrados.

Esses objetos a serem tombados, expostos na época pelos agressores como símbolo de vitória, passaram a significar a comprovação do crime. O ataque foi cometido pela agremiação política que fazia oposição ao governador da época, Euclides Malta, e o ‘acusava’ de proteção e proximidade aos terreiros. Por isso, prepararam aquele que se tornou um ataque sem precedentes de intolerância religiosa no país. Hoje, as 216 peças não destruídas estão sob guarda do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL).

Segundo o historiador Clébio Correia, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), esse é o único caso registrado na história brasileira de quebra de terreiros de forma coletiva. “A gente tem episódios de invasão e quebra de terreiros em todo o Brasil, mas individualmente. No caso de Alagoas, houve verdadeiro levante de uma turba organizada por uma milícia chamada Liga dos Republicanos Combatentes, que era um braço armado do político Fernandes Lima, inimigo do governador Euclides Malta, à época”, explica.

O historiador do Iphan Maicon Marcante lembra que muitos objetos sagrados foram destruídos e queimados em praça pública. “Porém, esse conjunto de objetos sobreviveu a esses ataques e permaneceu por um período no Museu da Sociedade Perseverança até 1950. Depois foram transferidos para o IHGAL”, afirmou Marcante. Foi por isso que a coleção de objetos ganhou o nome de Perseverança. O primeiro inventário das peças foi feito em 1985.

Hoje, as peças, segundo o pesquisador do Iphan, apresentam desgaste. O diagnóstico do Iphan para o tombamento vai orientar as ações de conservação e restauração. Os tecidos estão desgastados. Alguns fios de conta estão arrebentados. “Mas, de forma geral, as peças estão preservadas. A gente está falando de estatuetas representativas de orixás, de instrumentos musicais, indumentárias, objetos e insígnias. São mais de 40 braceletes e pulseiras”.

Mais divulgação

Maicon Marcante ressalta que, a partir do momento em que a coleção Perseverança for tombada pelo Iphan como patrimônio cultural brasileiro, haverá a responsabilidade do órgão na preservação e acautelamento desses bens. Nesse momento, ocorre a fase final de instrução de tombamento, que conta com a participação de representantes da comunidade de religiosos no processo de atribuição de valores e de significação cultural das peças. 

Ele explica que ao fim da fase de instrução, o processo passa por trâmites internos com avaliações na Câmara Técnica e no Conselho Consultivo, o que poderia ocorrer ainda no primeiro semestre de 2024. Após o tombamento, além das ações de preservação, conservação e estudo da historiografia, devem ser tomadas outras medidas para maior difusão do episódio invisibilizado. “Devemos levar o conhecimento sobre esse acervo, sobre esses objetos, para um público mais amplo, fora de Alagoas, inclusive. Podemos pensar em exposições virtuais também”.

Reverência aos ancestrais

 Entre as lideranças que colaboraram com o trabalho do Iphan está a Mãe Neide Oyá D´Oxum, de 62 anos. Ela afirma que os objetos e a memória do episódio de 1912 guardam o símbolo da resistência das religiões de matriz africana. “É a nossa história e com a qual podemos reverenciar a luta dos nossos ancestrais”. Um reconhecimento, segundo ela, veio em 2012, do então governador Teotônio Vilela Filho, que ediu desculpas, em nome de Alagoas, pelo episódio escandaloso de violência racista. 

Entre esses fatos, Mãe Neide cita Tia Marcelina que, conforme foi documentado pelos religiosos de Alagoas, foi espancada na noite do Quebra de Xangô e acabou morrendo nos dias seguintes. “Enquanto ela era açoitada, disse que os agressores poderiam quebrar braço e perna, tirar sangue, mas que não conseguiriam tirar o saber dela”.

Para preencher lacunas

De acordo com a professora Larissa Fontes, que produziu tese de doutorado na Universidade Lumiere Lyon (França) sobre as peças que restaram do ataque em Alagoas, a coleção Perseverança é o documento mais importante para a memória religiosa no estado. “São mais de 200 objetos que estão hoje abrigados no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas em estado deplorável, precisando muito de restauro, de um projeto sério de salvaguarda. A gente está nessa luta há muitos anos para o tombamento e caminhando agora concretamente para que isso saia neste ano”.

O livro da professora Larissa, O museu silencioso, foi publicado na França. A obra será também impressa no Brasil. Larissa, que é pesquisadora e também religiosa, colaborou com o Iphan e informa que o dossiê a ser entregue para aprovação do tombamento já está praticamente pronto. “Na minha pesquisa de doutorado, fui atrás da biografia desses objetos, buscando a tradição oral das comunidades religiosas afro-brasileiras de Alagoas, muito afetadas pela repressão e por esse silêncio”. Ela acrescenta que descobriu na pesquisa sinais e vestígios de perdas de materiais.

Larissa atribuiu essas lacunas à dificuldade de acesso e às peculiaridades da história. “Diferentemente de outros episódios de repressão que a gente teve no Brasil, que era a polícia que invadia terreiros, quebravam coisas e batiam em gente, e guardava os autos dos processos, em Alagoas, curiosamente, o Estado estava ausente da ação”.

A pesquisa atual da professora é um prolongamento da tese e pretende trazer de volta a Alagoas conhecimentos de perdas litúrgicas por meio de religiosos, autoridades religiosas que ainda detêm conhecimento na Bahia. “É muito importante essa ação patrimonial de recuperação e de reparação da memória”, afirma Larissa, docente do Departamento de Ciências Humanas e Sociais do Instituto Superior de Eletrônica e Tecnologia Digital, de Brest (França).

Para o historiador Clébio Correia, professor da Ufal, a despeito do Instituto Histórico ter cumprido papel de salvaguarda desse material, o entendimento dos “povos de terreiros” é que esses documentos deveriam estar em um museu, um memorial afro de Alagoas. “E não em um espaço da elite branca intelectual do estado. A gente está vivendo, neste momento, o processo de tombamento legal, muito importante para garantir a proteção das peças”.

Na sua opinião, a coleção Perseverança é o símbolo maior do ataque e mobiliza hoje os terreiros de Alagoas. “É o que a gente chama de prova material da resistência negra no estado. E gera esse ideário dos terreiros de ter um espaço próprio da memória em Alagoas”. 

“Imprensa preconceituosa”

Em busca também de compreender o violento episódio, cercado de apagamentos, o professor de antropologia Ulisses Neves Rafael, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), assinou a tese Xangô Rezado Baixo, que faz referência à proibição, posterior à repressão do dia 2, do uso de atabaques nos terreiros, o “rezado baixo”. 

Ele descobriu o episódio por acaso, durante o mestrado, e se surpreendeu que praticamente não havia pesquisa sobre o ataque. Assim buscou garimpar o quebra-cabeças em veículos, com publicações desde o início do século 20 até os episódios de 1912. “O Jornal de Alagoas (veículo de oposição ao governador e o principal objeto de análise) publicou uma série de oito reportagens”.

Para esclarecer as lacunas da violência, descobriu que a imprensa teve um tom preconceituoso contra os terreiros. “A imprensa foi instrumento dessa repressão. Os textos tinham uma linguagem muito preconceituosa e racista. Na verdade, eles tiveram papel fundamental na construção dessa imagem negativa dos terreiros”, explica o professor, que desenvolveu a pesquisa na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a partir do ano 2000.

Segundo a jornalista Valdeci Gomes da Silva, da Comissão Nacional de Jornalistas pela Igualdade Racial, a imprensa em Alagoas contribuiu, ao longo da história, com a reprodução do racismo. “Não foi diferente no Quebra de Xangô. Como naqueles dias, até hoje há quem se refira aos rituais das religiões de matriz africana como magia negra. Isso é um termo muito racista e que a gente não pode admitir”. A pesquisadora avalia que os jornais demonstraram ser coniventes com a elite financeira.

O professor Ulisses Rafael, da UFS, acrescenta que as notícias do Jornal de Alagoas (veículo de oposição ao governador e o principal objeto de análise) tornaram os grupos ainda mais vulneráveis e foram capazes de mobilizar pessoas além da Liga dos Republicanos combatentes. “A campanha recebeu grande adesão da população, da sociedade civil. Falou-se em centenas de pessoas nas ruas”. 

Os jornais informaram que os episódios ocorreram na madrugada, mas que, na verdade, já havia antes um clima de perseguição e de ataque. O próprio governador teria sido obrigado a fugir do Palácio pelos fundos e ido para o Recife. “Nesse intervalo, em que ele se encontra afastado, as casas são atacadas. As invasões acontecem em Maceió, em terrenos mais afastados e também em cidades vizinhas”. O professor não crava o número de casas atingidas porque não foi divulgado um quadro completo de terreiros com nomes das pessoas ou localização. 

Essa adesão de dezenas pessoas ao ataque contra terreiros é compreendida pela professora de antropologia Rachel Rocha de Almeida Barros, da Universidade Federal de Alagoas, como sintoma de uma sociedade ainda escravagista, majoritariamente católica, provinciana e analfabeta.   “Imagine 100 pessoas correndo por Maceió em 1912, quebrando tudo”. 

Teria havido, na opinião da antropóloga, um planejamento prévio. Ao mesmo tempo em que existiam integrantes sem qualquer consciência, a Liga dos Republicanos Combatentes era civil, com característica paramilitar, e constituída também por ex-integrantes da Guerra do Paraguai. Nessa mistura, essas pessoas, segundo explica, estariam vestidas de foliões carnavalescos quando chegaram aos terreiros. O Brasil vivia uma lógica racionalista, ainda escravagista e as manifestações religiosas de pessoas pretas eram desumanizadas. “A abolição não tinha completado ainda três décadas”.

Quem também entende o papel “estratégico” dos agressores é o Pai Célio Rodrigues dos Santos, que é historiador. “Essa milícia procurou estudar qual era a data e os horários mais propícios de invasão aos terreiros (em vista dos momentos de homenagens e oferendas dos cultos). Eles chegaram trasvestidos de um bloco carnavalesco. Tocavam, batiam e gritavam. Chamavam de macumbeiros, quebravam tudo, agrediram e ameaçaram”. Como efeito, segundo o Pai Célio, líderes religiosos correram, fecharam suas casas e saíram. “Mas resistimos. Hoje, Alagoas tem um grande número de terreiros, principalmente na periferia. E aí são esses terreiros que dizem não à intolerância religiosa”, avalia. Ele acredita que existam ao menos 3 mil terreiros no estado.

Existem ainda outros efeitos, de acordo com o professor Clébio Correio, para a identidade local.  “Quando lemos as notícias de 1910, vemos que Maceió era vista na época como uma referência para os negros de outros estados. Vinham pessoas conhecer as religiões afro. Depois do quebra, passou a se vender para o resto do país como uma cidade de coqueiro, de sol e praia”, lamenta. O resultado disso foi um esvaziamento do carnaval de Alagoas porque as manifestações culturais foram silenciadas. 

A professora Rachel acredita que o maior interesse por essa temática, após os anos 2000, tem relação com a maior democratização do espaço acadêmico, coincide com a política de cotas e cria, com isso, reflexos nas temáticos sociais abordadas. “É muito importante ver que esse episódio revisitado gerou livro, discussões contemporâneas e também filme”.

O trabalho a que ela se refere é do professor Siloé Amorim, de antropologia da Ufal. O documentário 1912: o quebra de Xangô (confira aqui o roteiro).

O filme, produzido em mais de três anos, tem 52 minutos de duração e foi motivado principalmente pelo silêncio sobre o ataque e o desconhecimento da população, inclusive dos terreiros. “Poucas pessoas tinham conhecimento do caso. Maceió tem muitos terreiros e isso era muito pouco divulgado. Me surpreendeu muito o preconceito velado sobre as religiosidades de matrizes africanas aqui no estado”. Ele explica que a opção pelo filme tem relação com a necessidade de garantir visibilidade para um público maior a fim de denunciar o que ficou tanto tempo em silêncio.

Maior ataque a religiões de matriz africana atingiu 70 templos

Instrumentos musicais, indumentárias, estatuetas, insígnias e outros objetos sacralizados compõem um acervo raro de 216 peças que foram roubadas em 1912 de terreiros em Alagoas, mas não destruídas, durante o maior ataque na história do Brasil a religiões de matriz africana. Esse conjunto de materiais resgatados, de valor histórico e cultural imensurável, pode ser finalmente tombado neste ano como patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

O ataque ocorrido a partir da madrugada do dia 2 de fevereiro de 1912 (há exatos 112 anos), em episódio que ficou conhecido como “Quebra de Xangô”, teria atingido, ao menos, 70 casas de religiões de matriz africana em Maceió e também em cidades vizinhas. De acordo com pesquisadores, um grupo que se intitulava Liga dos Republicanos Combatentes promoveu, naquele dia, terror com invasões, vandalismo, espancamentos e ameaças, além de roubar objetos sagrados.

Esses objetos a serem tombados, expostos na época pelos agressores como símbolo de vitória, passaram a significar a comprovação do crime. O ataque foi cometido pela agremiação política que fazia oposição ao governador da época, Euclides Malta, e o ‘acusava’ de proteção e proximidade aos terreiros. Por isso, prepararam aquele que se tornou um ataque sem precedentes de intolerância religiosa no país. Hoje, as 216 peças não destruídas estão sob guarda do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL).

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, conhecido como Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação

Segundo o historiador Clébio Correia, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), esse é o único caso registrado na história brasileira de quebra de terreiros de forma coletiva. “A gente tem episódios de invasão e quebra de terreiros em todo o Brasil, mas individualmente. No caso de Alagoas, houve verdadeiro levante de uma turba organizada por uma milícia chamada Liga dos Republicanos Combatentes, que era um braço armado do político Fernandes Lima, inimigo do governador Euclides Malta, à época”, explica.

O historiador do Iphan Maicon Marcante lembra que muitos objetos sagrados foram destruídos e queimados em praça pública. “Porém, esse conjunto de objetos sobreviveu a esses ataques e permaneceu por um período no Museu da Sociedade Perseverança até 1950. Depois foram transferidos para o IHGAL”, afirmou Marcante. Foi por isso que a coleção de objetos ganhou o nome de Perseverança. O primeiro inventário das peças foi feito em 1985.

Hoje, as peças, segundo o pesquisador do Iphan, apresentam desgaste. O diagnóstico do Iphan para o tombamento vai orientar as ações de conservação e restauração. Os tecidos estão desgastados. Alguns fios de conta estão arrebentados. “Mas, de forma geral, as peças estão preservadas. A gente está falando de estatuetas representativas de orixás, de instrumentos musicais, indumentárias, objetos e insígnias. São mais de 40 braceletes e pulseiras”.

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, conhecido como Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação

Mais divulgação

Maicon Marcante ressalta que, a partir do momento em que a coleção Perseverança for tombada pelo Iphan como patrimônio cultural brasileiro, haverá a responsabilidade do órgão na preservação e acautelamento desses bens. Nesse momento, ocorre a fase final de instrução de tombamento, que conta com a participação de representantes da comunidade de religiosos no processo de atribuição de valores e de significação cultural das peças. 

Ele explica que ao fim da fase de instrução, o processo passa por trâmites internos com avaliações na Câmara Técnica e no Conselho Consultivo, o que poderia ocorrer ainda no primeiro semestre de 2024. Após o tombamento, além das ações de preservação, conservação e estudo da historiografia, devem ser tomadas outras medidas para maior difusão do episódio invisibilizado. “Devemos levar o conhecimento sobre esse acervo, sobre esses objetos, para um público mais amplo, fora de Alagoas, inclusive. Podemos pensar em exposições virtuais também”.

Reverência aos ancestrais

 Entre as lideranças que colaboraram com o trabalho do Iphan está a Mãe Neide Oyá D´Oxum, de 62 anos. Ela afirma que os objetos e a memória do episódio de 1912 guardam o símbolo da resistência das religiões de matriz africana. “É a nossa história e com a qual podemos reverenciar a luta dos nossos ancestrais”. Um reconhecimento, segundo ela, veio em 2012, do então governador Teotônio Vilela Filho, que ediu desculpas, em nome de Alagoas, pelo episódio escandaloso de violência racista. 

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, conhecido como Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação 

Entre esses fatos, Mãe Neide cita Tia Marcelina que, conforme foi documentado pelos religiosos de Alagoas, foi espancada na noite do Quebra de Xangô e acabou morrendo nos dias seguintes. “Enquanto ela era açoitada, disse que os agressores poderiam quebrar braço e perna, tirar sangue, mas que não conseguiriam tirar o saber dela”.

Para preencher lacunas

De acordo com a professora Larissa Fontes, que produziu tese de doutorado na Universidade Lumiere Lyon (França) sobre as peças que restaram do ataque em Alagoas, a coleção Perseverança é o documento mais importante para a memória religiosa no estado. “São mais de 200 objetos que estão hoje abrigados no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas em estado deplorável, precisando muito de restauro, de um projeto sério de salvaguarda. A gente está nessa luta há muitos anos para o tombamento e caminhando agora concretamente para que isso saia neste ano”.

O livro da professora Larissa, O museu silencioso, foi publicado na França. A obra será também impressa no Brasil. Larissa, que é pesquisadora e também religiosa, colaborou com o Iphan e informa que o dossiê a ser entregue para aprovação do tombamento já está praticamente pronto. “Na minha pesquisa de doutorado, fui atrás da biografia desses objetos, buscando a tradição oral das comunidades religiosas afro-brasileiras de Alagoas, muito afetadas pela repressão e por esse silêncio”. Ela acrescenta que descobriu na pesquisa sinais e vestígios de perdas de materiais.

Larissa atribuiu essas lacunas à dificuldade de acesso e às peculiaridades da história. “Diferentemente de outros episódios de repressão que a gente teve no Brasil, que era a polícia que invadia terreiros, quebravam coisas e batiam em gente, e guardava os autos dos processos, em Alagoas, curiosamente, o Estado estava ausente da ação”.

A pesquisa atual da professora é um prolongamento da tese e pretende trazer de volta a Alagoas conhecimentos de perdas litúrgicas por meio de religiosos, autoridades religiosas que ainda detêm conhecimento na Bahia. “É muito importante essa ação patrimonial de recuperação e de reparação da memória”, afirma Larissa, docente do Departamento de Ciências Humanas e Sociais do Instituto Superior de Eletrônica e Tecnologia Digital, de Brest (França).

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, conhecido como Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação

Para o historiador Clébio Correia, professor da Ufal, a despeito do Instituto Histórico ter cumprido papel de salvaguarda desse material, o entendimento dos “povos de terreiros” é que esses documentos deveriam estar em um museu, um memorial afro de Alagoas. “E não em um espaço da elite branca intelectual do estado. A gente está vivendo, neste momento, o processo de tombamento legal, muito importante para garantir a proteção das peças”.

Na sua opinião, a coleção Perseverança é o símbolo maior do ataque e mobiliza hoje os terreiros de Alagoas. “É o que a gente chama de prova material da resistência negra no estado. E gera esse ideário dos terreiros de ter um espaço próprio da memória em Alagoas”. 

“Imprensa preconceituosa”

Em busca também de compreender o violento episódio, cercado de apagamentos, o professor de antropologia Ulisses Neves Rafael, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), assinou a tese Xangô Rezado Baixo, que faz referência à proibição, posterior à repressão do dia 2, do uso de atabaques nos terreiros, o “rezado baixo”. 

Ele descobriu o episódio por acaso, durante o mestrado, e se surpreendeu que praticamente não havia pesquisa sobre o ataque. Assim buscou garimpar o quebra-cabeças em veículos, com publicações desde o início do século 20 até os episódios de 1912. “O Jornal de Alagoas (veículo de oposição ao governador e o principal objeto de análise) publicou uma série de oito reportagens”.

Para esclarecer as lacunas da violência, descobriu que a imprensa teve um tom preconceituoso contra os terreiros. “A imprensa foi instrumento dessa repressão. Os textos tinham uma linguagem muito preconceituosa e racista. Na verdade, eles tiveram papel fundamental na construção dessa imagem negativa dos terreiros”, explica o professor, que desenvolveu a pesquisa na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a partir do ano 2000.

Segundo a jornalista Valdeci Gomes da Silva, da Comissão Nacional de Jornalistas pela Igualdade Racial, a imprensa em Alagoas contribuiu, ao longo da história, com a reprodução do racismo. “Não foi diferente no Quebra de Xangô. Como naqueles dias, até hoje há quem se refira aos rituais das religiões de matriz africana como magia negra. Isso é um termo muito racista e que a gente não pode admitir”. A pesquisadora avalia que os jornais demonstraram ser coniventes com a elite financeira.

O professor Ulisses Rafael, da UFS, acrescenta que as notícias do Jornal de Alagoas (veículo de oposição ao governador e o principal objeto de análise) tornaram os grupos ainda mais vulneráveis e foram capazes de mobilizar pessoas além da Liga dos Republicanos combatentes. “A campanha recebeu grande adesão da população, da sociedade civil. Falou-se em centenas de pessoas nas ruas”. 

Os jornais informaram que os episódios ocorreram na madrugada, mas que, na verdade, já havia antes um clima de perseguição e de ataque. O próprio governador teria sido obrigado a fugir do Palácio pelos fundos e ido para o Recife. “Nesse intervalo, em que ele se encontra afastado, as casas são atacadas. As invasões acontecem em Maceió, em terrenos mais afastados e também em cidades vizinhas”. O professor não crava o número de casas atingidas porque não foi divulgado um quadro completo de terreiros com nomes das pessoas ou localização. 

Essa adesão de dezenas pessoas ao ataque contra terreiros é compreendida pela professora de antropologia Rachel Rocha de Almeida Barros, da Universidade Federal de Alagoas, como sintoma de uma sociedade ainda escravagista, majoritariamente católica, provinciana e analfabeta.   “Imagine 100 pessoas correndo por Maceió em 1912, quebrando tudo”. 

Teria havido, na opinião da antropóloga, um planejamento prévio. Ao mesmo tempo em que existiam integrantes sem qualquer consciência, a Liga dos Republicanos Combatentes era civil, com característica paramilitar, e constituída também por ex-integrantes da Guerra do Paraguai. Nessa mistura, essas pessoas, segundo explica, estariam vestidas de foliões carnavalescos quando chegaram aos terreiros. O Brasil vivia uma lógica racionalista, ainda escravagista e as manifestações religiosas de pessoas pretas eram desumanizadas. “A abolição não tinha completado ainda três décadas”.

Quem também entende o papel “estratégico” dos agressores é o Pai Célio Rodrigues dos Santos, que é historiador. “Essa milícia procurou estudar qual era a data e os horários mais propícios de invasão aos terreiros (em vista dos momentos de homenagens e oferendas dos cultos). Eles chegaram trasvestidos de um bloco carnavalesco. Tocavam, batiam e gritavam. Chamavam de macumbeiros, quebravam tudo, agrediram e ameaçaram”. Como efeito, segundo o Pai Célio, líderes religiosos correram, fecharam suas casas e saíram. “Mas resistimos. Hoje, Alagoas tem um grande número de terreiros, principalmente na periferia. E aí são esses terreiros que dizem não à intolerância religiosa”, avalia. Ele acredita que existam ao menos 3 mil terreiros no estado.

Existem ainda outros efeitos, de acordo com o professor Clébio Correio, para a identidade local.  “Quando lemos as notícias de 1910, vemos que Maceió era vista na época como uma referência para os negros de outros estados. Vinham pessoas conhecer as religiões afro. Depois do quebra, passou a se vender para o resto do país como uma cidade de coqueiro, de sol e praia”, lamenta. O resultado disso foi um esvaziamento do carnaval de Alagoas porque as manifestações culturais foram silenciadas. 

A professora Rachel acredita que o maior interesse por essa temática, após os anos 2000, tem relação com a maior democratização do espaço acadêmico, coincide com a política de cotas e cria, com isso, reflexos nas temáticos sociais abordadas. “É muito importante ver que esse episódio revisitado gerou livro, discussões contemporâneas e também filme”.

O trabalho a que ela se refere é do professor Siloé Amorim, de antropologia da Ufal. O documentário 1912: o quebra de Xangô (confira aqui o roteiro).

O filme, produzido em mais de três anos, tem 52 minutos de duração e foi motivado principalmente pelo silêncio sobre o ataque e o desconhecimento da população, inclusive dos terreiros. “Poucas pessoas tinham conhecimento do caso. Maceió tem muitos terreiros e isso era muito pouco divulgado. Me surpreendeu muito o preconceito velado sobre as religiosidades de matrizes africanas aqui no estado”. Ele explica que a opção pelo filme tem relação com a necessidade de garantir visibilidade para um público maior a fim de denunciar o que ficou tanto tempo em silêncio.

Veja galeria de fotos:

Galeria – Intolerância religiosa – “Quebra de Xangô” – juca.varella

Incêndio no Edifício Joelma mudou regras de segurança predial

O incêndio no Edifício Joelma, no centro da capital paulista, ocorrido há exatos 50 anos, acabou sendo um grande divisor de águas na segurança predial em São Paulo e no Brasil.

O antigo Edifício Joelma, atualmente chamado de Edifício Praça da Bandeira, começou a ser construído em 1968, tendo suas obras terminadas entre 1971 e 1972, quando foi alugado pelo Banco Crefisul. A construção moderna tem duas torres: uma voltada para a Avenida Nove de Julho e outra para a Rua Santo Antônio, no centro da capital paulista. Entre elas, uma escada central

Do primeiro ao sétimo andar (que em altura corresponde ao décimo andar) estão os estacionamentos. Entre os 11º e 25º andares se encontram as salas de escritórios.

Naquele mês de fevereiro de 1974, quando um curto-circuito no ar-condicionado teve início no 12º andar, o banco ainda estava terminando de se transferir para o local.

“O início da construção do Joelma foi em 1968 e terminou em 1972. O arquiteto foi o Salvador Candia, que era muito conhecido aqui na cidade de São Paulo. Era um prédio que passou por toda questão de alvarás: alvará da prefeitura, alvará do Corpo de Bombeiros, habite-se. O prédio foi entregue em perfeita ordem para a incorporação do Crefisul, para que o banco pudesse se instalar no local”, disse o jornalista Adriano Dolph, autor do livro Fevereiro em Chamas, que conta a história de três grandes incêndios ocorridos em São Paulo entre os anos 70 e 80, todos, coincidentemente no mês de fevereiro: o Andraus, o Joelma e o Grande Avenida.

As salas e escritórios no Joelma eram pequenas e separadas por divisórias, com móveis de madeira, pisos acarpetados e cortinas. Os andares não tinham isolamento, e na cobertura havia telhas de amianto sobre uma estrutura de madeira.

O Joelma não contava com escadas de emergência ou plano de evacuação. As ligações elétricas foram feitas de forma improvisada, por pessoas que não eram certificadas. Todos esses fatores associados acabaram contribuindo para que, naquele dia 1º de fevereiro de 1974, o Brasil enfrentasse uma das maiores tragédias de sua história: um incêndio que terminou com 181 mortos e mais de 300 feridos.

“Era uma sexta-feira. São Paulo tinha uma garoa pequena, mas fortes ventos. E esse foi um dos fatores preponderantes para a propagação do incêndio. Os ventos propagaram o incêndio para os andares superiores. Ele se propagou de maneira vertical”, explicou Dolph.

Para completar, o prédio não tinha brigada de incêndio e os hidrantes, naquele dia, estavam sem água.

“As duas caixas d’água estavam com o registro geral fechado, ou seja, a água das duas caixas d’água não chegou aos hidrantes. Depois do rescaldo, muitas mangueiras foram vistas no prédio. As pessoas tentaram utilizá-las [para controlar o incêndio], mas não saiu uma gota de água”, falou Dolph.

Chaminé

A única escada central transformou-se em uma chaminé no dia do incêndio, o que tornou impossível que as pessoas deixassem o prédio ou passassem de um andar a outro. Sem citar que, por ser única, houve muito tumulto entre os que subiam e desciam os andares , o que dificultou que a saída do prédio fosse feita de forma rápida.

“Não havia preocupação nenhuma para situação de emergência. Só havia preocupação para o uso da escada no dia a dia. Era uma escada aberta, sem nenhuma proteção e sem portas corta-fogo, onde as pessoas poderiam se refugiar”, disse Rosaria Ono, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Museu Paulista da USP (o Museu do Ipiranga). Rosaria Ono é também especialista em segurança contra incêndios em edifícios.

“Outra característica de edifícios desse período eram as fachadas com grandes janelas, que permitiam que o incêndio passasse de um andar para o outro pela fachada. O incêndio se propagou tanto pela escada quanto pela fachada”, acrescentou Rosaria.

O ideal, segundo a arquiteta, era que o edifício contasse com uma série de sistemas de segurança como hidrantes, extintores, mangueiras com reservatório de água, sprinklers (chuveiros automáticos), alarmes de incêndio, saída de emergência e escadas porta-fogo, por exemplo. “Tem uma série de medidas que hoje são exigidas nas construções. Por isso não há [atualmente] tanta frequência de incêndios em edifícios altos”, explica a arquiteta.

Arquiteta Rosaria Ono, especializada em segurança contra incêndio, – Rovena Rosa/Agência Brasil

Mudanças

Há cinquenta anos, o Código de Obras vigente em São Paulo era de 1934 e não havia acompanhado a crescente urbanização e modernização da cidade. Foi somente após as duas grandes tragédias que geraram comoção na cidade – o incêndio no Edifício Andraus (em 1972) e o do Joelma (em 1974) – que começaram a ser feitas mudanças na segurança predial na capital paulista.

Seis dias após o incêndio do Joelma, por exemplo, o prefeito de São Paulo, Miguel Colassuonno, publicou o decreto 10.878 com normas específicas para a segurança dos edifícios na capital paulista. O decreto legislava sobre rotas de fuga, suprimento de água para o combate ao fogo, lotação máxima e uso de material resistente ao fogo nas escadas. O decreto também determinava que os edifícios da capital deveriam implantar um sistema de chuveiros automáticos contra incêndios (sprinkers). “Na noite do incêndio, o prefeito de São Paulo botou um decreto-lei para mudar o código de obras da cidade. Houve mudanças também dentro do Corpo de Bombeiros para treinamento, operação e salvamento após oficiais da corporação terem literalmente colocado a boca no trombone para reclamar que o órgão era mal aparelhado”, relata Dolph.

Naquele mesmo ano, foram retomados os debates para revisar o Código de Obras de São Paulo e foi criada a Coordenadoria de Controle e Uso de Imóveis (Contru), órgão que atua na prevenção e fiscalização de instalações e sistemas de segurança de edificações do município de São Paulo.

“Mesmo assim, o Código de Obras não impediu que outra tragédia acontecesse [na cidade]: o incêndio no Edifício Grande Avenida [ocorrido em 1981, na Avenida Paulista]”, acrescentou o jornalista.

Atualmente, além de uma legislação local, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e o Código de Defesa do Consumidor também preveem normas de prevenção a incêndio em edifícios.

Essas mudanças, mais tarde, passaram a ser adotadas no próprio Edifício Joelma. Após o incêndio e já reformado e nomeado Edifício Praça da Bandeira, o prédio passou a ter normas de segurança e de ocupação mais rígidas. “Uma escada exclusiva de incêndio foi construída. Ele também tem uma equipe de brigada de incêndio. O reservatório das caixas d’água estão com registro aberto e há sistema de evacuação. Ele agora atende as normas gerais”, destaca Dolph.

Cultura de prevenção

Apesar dessas tragédias terem mudado a regulamentação predial e também aperfeiçoado e modernizado os sistemas de segurança existentes, o Brasil, infelizmente, ainda não tem uma cultura de prevenção como se observa em países como o Japão, onde passageiros conseguiram deixar rapidamente e em segurança um avião em chamas.

“Os países mais desenvolvidos têm a cultura de fazer treinamento de evacuação de prédio tanto nas escolas quanto nas empresas. Isso é feito duas, três, quatro vezes por ano. As pessoas são um pouco já condicionadas [a reagirem a situações de emergência]”, explica Rosaria.

“Estamos há um tempo tentando implementar isso nas escolas brasileiras, só que depende de toda uma regulamentação. Temos que ter uma cultura de prevenção, as pessoas precisam ter um mínimo de treinamento [para enfrentar esse tipo de situação]”, acrescenta.

A TV Brasil preparou um especial sobre os 50 anos do incêndio do Joelma, que vai ao ar no Caminhos da Reportagem, no dia 4 de fevereiro, às 22h

Bombeiro foi dado como morto após trabalhos de salvamento no Joelma

“Meu nome estava na relação de mortos. É por isso que eu falo que o único bombeiro que tinha falecido nesse incêndio do Joelma era eu”. Naquele dia 1º de fevereiro de 1974, o bombeiro João Simão de Souza, 73 anos, primeiro-sargento veterano, foi dado como morto após ter trabalhado por horas para salvar vítimas do grande incêndio que consumiu o Edifício Joelma, no centro da capital paulista, e que levou à morte 181 pessoas.

A notícia surgiu logo após ele ter conseguido entrar no edifício, já consumido pelas chamas, para fazer uma vistoria. Foi então que ele encontrou um rapaz gemendo no local e tentou retirá-lo pelas escadas. Enquanto fazia esse salvamento, uma laje caiu sobre eles. “Encontrei um rapaz gemendo e resolvi pegá-lo e descer [as escadas]. As águas [usadas para o combate às chamas] que caíam do prédio batiam nas costas e a gente estava sem proteção, só com a roupa, e parecia que ia furar as costas da gente, de tão quentes. Eu estava descendo [com a vítima] e vi uma entrada. Quando cheguei perto era um estacionamento. E pensei em ficarmos por ali. Mas senti um puxão grande atrás de mim e o rapaz acabou caindo do meu braço. Só vi um poeirão e fui apagando. Depois de muito tempo, quando acordei, estava no hospital”.

Joelma em chamas. Imagens feitas pela produtora Souza Lima rodaram o mundo. Divulgação/ Produtora Souza Lima

Foi no hospital que Simão, como é mais conhecido, finalmente descobriu o que tinha acontecido com ele e a vítima, que acabou não resistindo. Foi também no hospital que lhe contaram que ele chegou a ser dado como morto após o acidente. Nesse acidente, Simão quebrou o nariz, os dentes, a clavícula, dois braços, duas pernas e três costelas. Uma dessas costelas chegou a lhe perfurar o pulmão.

“Quando acordei no hospital, estava engessado do pescoço para baixo”, relembra.

Salvamento

O incêndio no Edifício Joelma, atualmente chamado de Edifício Praça da Bandeira, ocorreu na manhã do dia 1º de fevereiro de 1974, provocado por um curto-circuito no sistema de refrigeração do 12º andar. E não foi o único grande incêndio ocorrido na cidade de São Paulo.

Alguns dos bombeiros que trabalharam na tentativa de conter as chamas do Joelma e no socorro às vítimas já tinham enfrentado um evento muito parecido dois anos antes. Em fevereiro de 1972 eles trabalharam no incêndio do Edifício Andraus, também no centro da capital paulista, que provocou a morte de 16 pessoas e deixou mais de 300 feridas. Esse é o caso de Simão e também do primeiro-sargento reformado do Corpo de Bombeiros, Franclin de Jesus Ferreira, de 76 anos.

“Ouvimos no rádio que estava tendo um incêndio no centro da cidade. Não sabíamos o que era, mas quando falou que era em um edifício, logo imaginei o Andraus, onde já tinha trabalhado. ‘Deve ser outro pavoroso’, imaginei”, disse Ferreira.

O trabalho em ambos os edifícios, no entanto, não guardou muitas semelhanças. Se no Andraus muitas das vítimas foram salvas pelo alto, já que o edifício contava com heliponto, no Joelma isso não ocorreu. Pouquíssimas vítimas puderam ser salvas no segundo incêndio dessa forma, já que os helicópteros não conseguiam pousar no local: a cobertura do prédio tinha telhas de amianto e não tinha heliponto.

Cobertura do prédio tinha telhas de amianto e nenhum heliponto – Bombeiro Mato Grosso do Sul/Divulgação

“Todo mundo [do Joelma] resolveu subir para o telhado porque eles se lembraram do Andraus. Mas o primeiro helicóptero que tentou, não conseguiu [parar] por causa da hélice. Teve um [bombeiro que estava no helicóptero] que tentou pular [do helicóptero para a cobertura]. Mas ele passou pelo telhado e parece que quebrou o tornozelo. Não tinha aquele tipo de salvamento que teve no Andraus”, detalha o primeiro-tenente veterano Roberto Silva, 83 anos.

Já a semelhança entre ambos os salvamentos foi que, nos anos 70, não havia equipamentos adequados para se trabalhar na contenção de incêndios. A começar pela farda.

“Naquela época, a farda era de manga curta”, conta Silva. Por isso, antes de entrar em um prédio em chamas, ele sempre passava Hipoglós em todo o corpo, para evitar que a água quente caísse pela pele desprotegida. “O povo passava no rosto e nos braços. Não era como os equipamentos que existem hoje”.

“No outro dia a gente não conseguia colocar a farda, principalmente a grandona, porque as costas queimaram todas. A sorte é que levamos bastante Hipoglós. Mas ficamos um bom tempo sem por roupa, principalmente nas costas, porque queimou tudo”, acrescenta Ferreira.

“Era uma porcaria as botas que a gente usava. A sola saiu de tanto calor. O que sobrou para a gente trabalhar foi o coração”.

De acordo com Ferreira, as fardas não eram o único problema que os bombeiros enfrentavam naquela época para trabalhar em um incêndio. “O que a gente mais precisava era de viatura, mas elas eram sucateadas e também eram poucas”. Outro problema é que a escada magirus, naquela época, só alcançava até o 14º andar, insuficiente para fazer o resgate em edifícios muito altos.

Essas condições são hoje bem diferentes, contou o major da reserva Eduardo Boanerges Barbosa, 77 anos. “Hoje o bombeiro está muito mais preparado para entrar no incêndio, com capacete, capa americana, bota alemã e cinto alemão”, citou.

Outro fator que contribuiu para que o trabalho de contenção de incêndio aconteça de forma mais eficiente nos dias de hoje são as exigências de segurança predial, que passaram a ser regulamentadas. Em 1974, o Joelma não tinha isolamento entre os andares, nem escadas de emergência, nem brigada de incêndio, aspectos que são obrigatórios em edifícios atualmente. “A sorte que temos dos incêndios atuais não serem iguais ao do Joelma é que hoje a lei obriga que os edifícios tenham brigadas de incêndio, que controlam o fogo e não deixam que ele passe para incêndio. Fogo é controlável. No incêndio, ele está fora de controle”, explica major Boanerges.

Reconhecimento

Anos se passaram da tragédia, mas o trabalho desenvolvido pelos bombeiros nunca deixou de ser reconhecido, apesar das dificuldades encontradas na ocasião. Na tarde desta quinta-feira (1), por exemplo, a Câmara Municipal de São Paulo vai homenagear os bombeiros que trabalharam para salvar vítimas e conter as chamas do Edifício Joelma.

Mas essa não será a única homenagem que esses bombeiros já presenciaram pelo ato. A maior delas não veio de nenhum órgão público, empresa ou instituição: mas da lembrança das vítimas que eles salvaram.

No ano passado, por exemplo, durante entrevista a um programa de TV que tratava sobre o incêndio, Simão foi reconhecido por uma das vítimas a quem resgatou do Joelma: o microempresário Mauro Ligere Filho, de 73 anos, a quem ele salvou do parapeito do 22º andar.

“No ano passado, fui convidado para dar uma entrevista para um programa de TV. Conversando com ele [Mauro Ligere Filho], ele contou que estava naquele beiral”, lembrou Simão. “Ele me reconheceu e, naquela hora, eu senti um arrepio. A gente vai lá e salva, mas não reconhece a pessoa. Mas ele me reconheceu. Eu falei: ‘ganhei outro amigo’. E agora, de vez em quando ele liga para mim”, conta Simão.

“Ele agora é um amigo que eu tenho, que eu ganhei, e que só fui encontrar após 49 anos”, confirmou Ligere Filho, em entrevista à EBC.

Dever cumprido

Passados 50 anos, o que ficou para a equipe foi o sentimento de que cumpriram o trabalho da melhor maneira que podiam. “Dever cumprido. Fizemos o que nosso coração mandou. Éramos tão pequenininhos, ínfimos. Mas diante da quantidade de bombeiros que estavam lá, juntos nos tornamos grandes”, se orgulha Ferreira.

Também ficou o sentimento de tristeza. “Foi um pedacinho do ar-condicionado perto de um prédio daquele. Me emociono ao lembrar disso depois de 50 anos. Cheguei a sonhar muitas vezes o mesmo sonho. É duro lembrar tudo aquilo, dá vontade de esquecer”, disse Silva.

Entre essas memórias e sentimentos que os quatro compartilham, ficou também um desejo comum. “Depois de 50 anos do incêndio do Joelma, tenho isso comigo: que um incêndio como esse nunca mais se repita em São Paulo”, reforçou Simão.

A TV Brasil preparou um especial sobre os 50 anos do incêndio do Joelma, que vai ao ar no Caminhos da Reportagem, no dia 4 de fevereiro, às 22h

50 anos depois, marcas do incêndio permanecem

No dia 1º de fevereiro de 1974, Hiroshi Shimuta, 80 anos, chegou bem cedo ao 22º andar do Edifício Joelma, no centro da capital paulista, onde trabalhava. O expediente começava às 9h da manhã, mas ele decidiu chegar antes das 8h porque queria ler os jornais antes de começar a jornada, para se atualizar sobre o que estava acontecendo no Brasil e no mundo. 

Acabara de ser pai de gêmeos. Uma menina e um menino haviam nascido no dia 18 de janeiro e ele sequer os havia segurado no colo porque nasceram prematuros e ainda permaneciam no hospital.

“Eu estava na minha sala lendo meu jornal e então recebi um telefonema da portaria me informando que o prédio estava pegando fogo”, relembra.

Era por volta das 8h45 da manhã, quando o Edifício Joelma começou a pegar fogo. Naquele dia, São Paulo enfrentava muitos ventos, fator que contribuiu para a propagação das chamas.

O incêndio no Edifício Joelma foi uma das maiores tragédias ocorridas no Brasil, provocando a morte de 181 pessoas e deixando mais de 300 feridas. Embora o país nunca tenha se preocupado em homenagear esses mortos ou transformar essa tragédia em um memorial, as marcas e lembranças do incêndio permanecem vivas em muitas pessoas.

Incêndio

O fogo teve início no 12º andar, ocupado pelo Banco Crefisul, resultado de um curto-circuito no sistema de refrigeração. O vento e a falta de segurança do prédio logo fizeram as chamas se alastrarem, levando à morte centenas de pessoas. O número de óbitos registrados variou ao longo dos anos, mas pesquisa feita pelo jornalista e escritor Adriano Dolph, autor do livro Fevereiro em Chamas, documenta que 181 pessoas morreram  no incêndio.

“Busquei documentos oficiais do IML (Instituto Médico Legal) e do Cemitério do Vila Alpina. Busquei também nos processos criminais, em documentos do Corpo de Bombeiros, no Arquivo Público do Estado de São Paulo e em jornais da época”, relembra. “O que tenho são 181 laudos necroscópicos”, atesta o jornalista.

Adriano Dolph, autor de Fevereiro em chamas – Divulgação/TV Brasil

Torres

Inaugurado em 1971, o Edifício Joelma – atualmente chamado de Edifício Praça da Bandeira – é uma obra do arquiteto Salvador Candia. Construído em concreto armado, é composto por duas torres de 25 andares: uma virada para a Avenida Nove de Julho e outra para a Rua Santo Antônio, no centro da capital paulista. Entre elas, uma única escada central.

“Ele tem características arquitetônicas muito interessantes. Ele tem sete andares de estacionamento mas, pela altura desses andares, compõem uma altura de aproximadamente dez andares. Por isso ele não tem marcados três andares. Ele pula do sétimo para o décimo primeiro andar”, explicou Dolph.

Do 11º ao 25º andar, o prédio conta com salas de escritórios que, naquela época, estavam sendo ocupadas pelo Crefisul. “Muitos estavam ali em busca do primeiro emprego. Sexta-feira era o dia de entrevistas de emprego no banco. O livro Fevereiro em Chamas traz relatos de funcionários que estavam levando, por exemplo, uma irmã para entrevista de emprego [naquele dia]”.

As salas eram repartidas por divisórias e tinham carpetes, móveis de madeira e cortinas de tecido, que contribuíram para que o fogo se alastrasse rapidamente.

Dois anos antes, o centro da cidade de São Paulo já havia enfrentado uma grande tragédia. Um incêndio no Edifício Andraus, localizado próximo da Praça da República, havia deixado 16 mortos e entre 300 ou 400 feridos.

“Todo mundo imaginou que a tragédia do Andraus seria aquela épica, aquela que iria marcar gerações. Mas veio uma ainda pior: o Joelma fez muito mais pessoas perderem a vida”, disse o escritor.

Hiroshi Shimuta

Sobrevivente da tragédia, o presidente da Nicom Comércio e Material de Construção, Hiroshi Shimuta, começou a trabalhar no Citibank no início dos anos 70, empresa pela qual dedicou 20 anos de sua vida. Em 1972, o Citibank adquiriu participação no Crefisul para complementar seus negócios. Com isso, o departamento do banco em que ele trabalhava se dividiu: parte continuou na Avenida Ipiranga [onde estava o Citibank] e parte se mudou para o Edifício Joelma, que tinha acabado de ser todo alugado para o Crefisul.

Empresário Hiroshi Shimuta sobrevivente do incêndio do Edifício Joelma. – Paulo Pinto/Agência Brasil

Shimuta alternava entre os prédios a cada semana. Na fatídica sexta-feira de 1974 ele estava no Joelma. “Eu tentei sair [da minha sala]. Mas a fumaça era muito forte. Pensei: ‘vou morrer sufocado’. Decidi arrancar todas as cortinas. O fogo começava nas cortinas, que eram feitas de juta. As janelas ficavam abertas e a cortina ficava balançando para fora. Então, pegava fogo embaixo e ia impulsionando o fogo para cima”, contou o empresário, que estava com outras seis pessoas na sala. 

Sob liderança dele, o grupo saiu da sala em direção a um pequeno banheiro do andar. “O banheiro não pega fogo. Então, vamos ficar aqui, vamos nos acomodar por aqui”, pensaram. Eles ficaram por ali um tempo, mas a fumaça não tardou a chegar. Foi então que decidiram deixar o banheiro e passar para um pequeno parapeito do lado de fora, onde permaneceram até que pudessem ser resgatados pelos bombeiros. O que tardou cerca de cinco horas para acontecer.

“Com o fogo subindo, havia quem se jogava lá de cima [de andares superiores]. O cenário era simplesmente dramático. Eu tentava acalmar o pessoal. Falava para não fazerem besteira porque daqui a pouco o fogo iria se apagar”, falou. “A gente orava muito e pedia para que Deus nos salvasse”.

Antes de ser resgatado, Shimuta pensava nos filhos recém-nascidos. “Eu não posso morrer. Tenho que viver de qualquer forma. Coloquei duas crianças no mundo e essas crianças não vão viver sem o pai. Sou responsável, preciso estar vivo”.

O resgate foi complicado. A escada magirus do Corpo de Bombeiros só alcançava até o 14º andar. Eles estavam no 22º. Então, para fazer esse resgaste, os bombeiros precisaram subir ao topo da magirus e depois usar uma escada de alumínio, de forma complementar, com a qual iam escalando andar a andar. “Eles iam se revezando até chegar ao nosso andar. Fui o último a ser resgatado. Acho que levou mais ou menos uma hora nesse processo porque tinha que descer até o 12º andar [onde estava a magirus]. Aí ele ia descendo até chegar lá embaixo. Depois, subia para resgatar a segunda pessoa. Mas a essa altura do campeonato. estávamos felizes da vida, pois víamos nossos colegas saindo da escada e caminhando lá embaixo. Isso foi dando um alívio na gente”.

Quando finalmente chegou ao asfalto, Shimuta só agradeceu. “A primeira coisa que fiz foi olhar para cima e agradecer a Deus por ter devolvido a minha vida. Depois agachei e beijei o chão”, conta.

Naquela noite, ele não conseguiu dormir. “Estava cansado fisicamente, mas quando fechava os olhos, dava a impressão que eu estava sendo lançado no ar, que estava flutuando. Aquela sensação eu não esqueço nunca. Parecia que Deus estava querendo me levar”.

Mauro Ligere Filho

O microempresário Mauro Ligere Filho, 73 anos, é outro sobrevivente do Joelma. Ele também trabalhava no Citibank, banco pelo qual foi funcionário por 22 anos. “Nós estávamos [no Joelma] justamente vendo o que a financeira Citibank tinha e a financeira Crefisul tinha para podermos adequar os padrões. Os trabalhos tinham recém-começado. Acho que não tinha um mês”.

Mauro Ligere esperou com um grupo mais de cinco horas pelo resgate. Divulgação/TV Brasil

Mauro, estava no mesmo andar de Shimuta, embora em salas diferentes. “Era uma sexta-feira garoenta. Tinha uma reunião e eu estava no prédio antes das 9h. Eu e meu diretor estávamos preparando uma apresentação. Eu tinha recém-ganhado uma caneta Parker 51 do meu pai”, conta.

“Na hora exata do incêndio, eu estava na sala do meu diretor, no 22º andar. Nessa sala tem um banheiro privativo. Estávamos eu, ele e uma secretária preparando a apresentação, quando escutamos uma barulhada de vidros explodindo. Meu chefe pegou um extintor e saiu correndo. A secretária foi atrás dele. Eu estava correndo atrás deles, mas lembrei que tinha esquecido minha caneta [que havia ganhado do pai] e voltei. Peguei a caneta, minha mala e meu paletó. Quando fui sair de novo, alguns segundos depois, o hall dos elevadores e a escada já haviam virado uma chaminé. Tentei subir ou descer pela escada, mas não consegui e acabei voltando para a sala onde estava. Nesse meio tempo, seis pessoas apareceram por ali. O Hiroshi era uma delas”, contou.

De início eles tentaram apagar o incêndio naquele andar. “Tentamos pegar uma mangueira de incêndio para apagar o fogo. Esticamos, conectamos no registro, mas não tinha água. O registro central do sistema de abastecimento de incêndio estava fechado”.

Foi então que tiveram a ideia de se confinar no banheiro. Mas não conseguiram ficar muito tempo por ali por causa da fumaça. A solução acabou sendo pular para o parapeito. “Eu abri a janela [do banheiro] e vi que tinha um parapeito. E daí consegui respirar porque ali é um vale [Vale do Anhangabaú] e os ventos ora vinha daqui ora dali. Aí eu pulei [a janela do banheiro] e as outras pessoas pularam também. [O parapeito] era pequeno e não cabiam sete pessoas. Então ficamos um em cima do outro. E uma pessoa em cima de mim. Ficamos ali por horas. Se não tivéssemos pulado [a janela do banheiro] teríamos morrido asfixiados”.

Ligere foi um dos primeiros a ser resgatado daquele parapeito. Seu salvador foi o bombeiro João Simão de Souza. O nome do bombeiro ele só foi descobrir ao dar entrevista para um programa de TV, no ano passado. “Ele agora é um amigo que eu tenho, que eu ganhei, e que só fui encontrar após 49 anos”.

Daquele fatídico incêndio, Ligere Filho saiu apenas com uma orelha queimada. “Só a orelha que queimou. Eu estava praticamente intacto, não tinha nada além daquela ardência no olho e daquela secura na boca”. E na segunda-feira após a tragédia ele já tinha voltado a trabalhar.

Mas as marcas não foram só físicas. Anos depois ele desenvolveu uma síndrome do pânico. “Imagino que tenha sido consequência disso aí porque eu sempre tinha sido tranquilo”, falou.

Responsabilização

As imagens daquele 1º de fevereiro continuam vivas na memória desses sobreviventes. Ligere Filho, por exemplo, não somente lembra detalhes sobre o que aconteceu naquele dia, como também guarda recortes de reportagens sobre o assunto que foram publicadas em jornais e revistas. Inclusive das muitas entrevistas que deu. “Como eu tinha vivido aquilo, tudo que tinha [sobre o Joelma] eu comprava e guardava. Até que eu resolvi fazer um livro com várias manchetes da Veja, Estadão, Folha para contar para os meus netos”.

Cada um teve que conviver com as recordações à sua maneira, já que, segundo relatos de sobreviventes, nem o condomínio, nem a prefeitura e nem o Crefisul disponibilizaram psicólogo para as vítimas após o incêndio.

De acordo com o escritor Adriano Dolph, houve uma batalha pelo reconhecimento de que o Crefisul teve responsabilidade no incêndio. O banco chegou a indenizar alguns por acidente de trabalho, e entendia que era o suficiente, e que não era devida indenização às famílias pelos mortos. “Foi uma batalha de cinco anos que chegou ao STF (Supremo Tribunal Federal) e que o pagamento só ocorreu após dez anos, com idas e vindas, embargos declaratórios”, explica o autor. Dolph ressalta ainda que os valores pagos foram ínfimos.

“As pessoas só começaram a receber, de fato, a indenização após um acordo com o grupo Crefisul, que não era mais o Crefisul. Elas só começaram a receber indenização em 1986”, relembrou Adriano Dolph.

Além disso, nem todo foram indenizados. “[A indenização] recebi de Deus, que foi a vida”, afirmou Ligere Filho.

Pelo lado criminal, cinco pessoas foram responsabilizadas pelo incêndio no Joelma. Em abril de 1975, Kiril Petrov, engenheiro responsável pelas instalações gerais, foi condenado a três anos de prisão. Já os eletricistas Sebastião da Silva Filho, Alvino Fernandes e Gilberto Araújo e o proprietário da empresa Termoclima, Walfried Georg, foram condenados a dois anos de prisão. Eles recorreram da sentença e então houve diminuição das penas. “De fato, eles nunca cumpriram a pena de cadeia. Todos permaneceram livres”, disse o autor de Fevereiro em Chamas.

Já a empresa Crefisul jamais foi julgada. “Da diretoria do grupo Crefisul ninguém foi tido como réu. Ninguém [do banco] foi encarado pela promotoria ou pelo delegado que cuidou do caso como responsável”, acrescentou o escritor.

A TV Brasil preparou um especial sobre os 50 anos do incêndio do Joelma, que vai ao ar no Caminhos da Reportagem, no dia 4 de fevereiro, às 22h