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Barroso diz que há déficit de representatividade negra na magistratura

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Luís Roberto Barroso, disse nesta terça-feira (5) que a magistratura brasileira é predominantemente branca e que há déficit de representatividade de pessoas negras no Poder Judiciário.

Ao citar que o Judiciário reflete as marcas históricas da exclusão de pessoas negras, Barroso disse que o CNJ já conseguiu com parceiros da iniciativa privada 750 bolsas de estudo para candidatos negros que ficarem entre os primeiros colocados no Exame Nacional da Magistratura (Enam). Cerca de R$ 7 milhões foram levantados para custear as bolsas. 

“A magistatura é prodominantemente branca e há um décifit de representatividade e de compreensão das realidades diferentes que provêem da questão racial e do racismo estrutural brasileiro”, afirmou.

Na avaliação do ministro, houve mudanças nas últimas duas décadas sobre a percepção da sociedade brasileira envolvendo a questão racial.

“A cor da pele faz muita diferença no comportamento das pessoas, na acessibilidade nos espaços públicos, nos espaços de poder. Acho que o diagnóstico adequado tem contribuído para uma progressiva superação desse racismo estrutural. É uma batalha longa, longe de estar terminada”, completou.

O CNJ realizou hoje a entrega do Prêmio Equidade Racial do Poder Judiciário, evento que premia iniciativas antirracistas dos tribunais do país.

Selo dos Correios celebra Luiza Bairros, ex-ministra e ativista negra

Os Correios e o Ministério da Igualdade Racial lançam nesta terça-feira (17) um selo em homenagem à socióloga gaúcha Luiza Bairros, ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e uma das principais intelectuais do pensamento negro contemporâneo.

A iniciativa celebra o legado de Luiza, que faleceu em 2016 em decorrência de um câncer de pulmão. Durante sua gestão à frente da Seppir, entre 2011 e 2014, a ex-ministra lutou pela implementação de políticas públicas como as cotas nas universidades e no serviço público.

Luiza Bairros também iniciou a implementação do Estatuto da Igualdade Racial, criou o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) e atuou diretamente pelo reconhecimento da constitucionalidade das cotas no Supremo Tribunal Federal (STF). 

Selo dos Correios em homenagem a Luiza Bairros. Foto: Correios/Divulgação

A fotografia utilizada no selo dos Correios é do acervo da Agência Brasil, agência pública de notícias da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). A imagem de Luiza sorrindo foi captada em 2013 pelas lentes do repórter fotográfico Valter Campanato. A então ministra da Seppir estava nos estúdios da TV Brasil para a gravação do programa Brasilianas.org. “Fico contente e orgulhoso de dar essa contribuição para homenagear a ministra”, diz Valter.

Sobrinha de Luiza Bairros, a epidemiologista e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Fernanda Bairros, conta que recebeu com alegria a notícia do lançamento do selo. “Ela dedicou a vida toda em prol da igualdade racial e do combate ao racismo. Fazer com que a memória e o legado dela não sejam esquecidos é de extrema importância”, ressalta Fernanda.

Mulheres negras

O presidente dos Correios, Fabiano Silva dos Santos, afirma que é uma honra celebrar o legado de Luiza Bairros e destaca que a empresa tem adotado ações para reconhecer publicamente a contribuição de mulheres negras para o Brasil. Entre os selos já lançados estão os de Marielle Franco, Rebeca Andrade, Alcione e do Festival Latinidades.

“Temos trabalhado para avançar no campo da equidade. Implantamos a Política Corporativa de Diversidade dos Correios e estabelecemos metas, em nosso plano estratégico, de ter 40% de mulheres e 30% de pessoas negras em cargos de gestão em todos os níveis da empresa até o fim deste ano”, ressalta Santos. 

“Fizemos também a adesão ao Pacto pela Diversidade, Inclusão e Equidade nas Empresas Estatais da Sest [Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais], em mais uma ação afirmativa para tornar nosso ambiente de trabalho mais inclusivo e justo.”

Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial. Foto: Tomaz Silva/Arquivo Agência Brasil

A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, lembra que Luiza Bairros é uma referência histórica negra na consolidação da democracia brasileira, por sua militância como coordenadora do movimento negro unificado, trajetória acadêmica e intelectual e atuação política na gestão pública.

“Pensar em Luiza Bairros é reconstituir a trajetória de avanços conquistados pelo povo negro no Brasil. Ela foi uma intelectual vanguardista na defesa das cotas raciais e ações afirmativas, nos deixou seu exemplo de ética e compromisso. É uma honra reverenciar a memória de uma de nossas ancestrais e com ela seguir na luta por igualdade de direitos para a população negra”, ressalta Anielle. 

Depoimentos

A Agência Brasil ouviu outras quatro referências do movimento e intelectualidade negra que destacam a importância do legado de Luiza Bairros. 

>> Vilma Reis, socióloga, ativista, ex-ouvidora-geral da Defensoria Pública da Bahia e assessora especial da Presidência dos Correios.

Vilma Reis, socióloga e assessora especial da Presidência dos Correios. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação

“Toda a trajetória de Luiza é impressionante e precisa ser reverenciada. Essa iniciativa dos Correios mostra a importância de uma mulher que, em quatro anos à frente da Seppir, mexeu com leis que mudaram o panorama do país. Ela foi decisiva na articulação pelo reconhecimento da constitucionalidade das cotas no STF e na aprovação da lei de cotas de 2012. É simbólico que esse selo venha quando estamos nos preparando para avançar nas cotas com a reserva de vagas para indígenas e quilombolas. Luiza é um nome que evoca e nos traz força.”

“Em 1979, Luiza veio do Rio Grande do Sul para Bahia contribuir na criação do Movimento Negro Unificado. Ela se tornou uma referência para as ativistas, mas também uma potência política e intelectual. Quando retornou do doutorado nos Estados Unidos, incentivou muitas de nós a seguir a carreira acadêmica. Estava sempre presente nas bancas de defesas. Ela nos ajudou a organizar a luta em muitos campos.”

“Importante também lembrar o trabalho da Luiza na Secretaria da Promoção da Igualdade do Governo Bahia (Sepromi) e no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), articulando o Programa de Combate ao Racismo Institucional e removendo as barreiras na saúde e na educação. Ela também foi fundamental na construção do texto da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo (Durban). Luiza nos ajudou a construir um debate de luta por narrativa negra, intelectual, posicionada no Sul do mundo.”

Professor, jornalista e militante da igualdade racial Edson Cardoso. Foto: Lucio Bernardo Jr./Câmara dos Deputados

>> Edson Cardoso, escritor, jornalista e doutor em Educação. Amigo de Luiza Bairros, trabalhou como ela na assessoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).

“Luiza foi o melhor quadro da minha geração de militantes, de movimento negro. Ela foi a pessoa mais bem preparada para fazer o que fazíamos. Ela tinha tanto do ponto de vista intelectual, o estudo, a pesquisa, como ela tinha a iniciativa política, a capacidade de se associar, de se aproximar das pessoas, de estimular, de propor ação, de conduzir as coisas, de fazer intervenção prática.”

“A presença da Luiza vai fortalecer essa coleção dos selos de figuras negras que os Correios têm e nada mais justo para uma instituição que é uma das primeiras a acolher a população negra.”

“Luiza foi uma pessoa entregue à luta, totalmente entregue e dedicada à luta.”

Diretora-geral do Arquivo Nacional, Ana Flávia Magalhães Pinto. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

>> Ana Flávia Magalhães, historiadora, jornalista, professora doutora da Universidade de Brasília (UnB) e diretora-geral do Arquivo Nacional.

“Luiza Bairros foi uma das primeiras referências de intelectuais ativistas que tive, bem antes até que me fosse possível afirmar essa forma de estar no mundo. Meu primeiro encontro com ela se deu ali em 1998, 1999, em Brasília, numa das primeiras reuniões de formação política do Movimento Negro de que participei. A voz de Luiza, em especial, me impactou.  Era grave, muito firme, mas serena, embalava palavras extremamente bem articuladas e criava em mim a sensação de estar em frente a um espelho e querer ver minha imagem ali refletida.” 

“Nos anos que se seguiram, além de seguir sendo uma referência política, Luiza ganhou forma de pessoa humana, com virtudes e limites. Isso fez com que eu a considerasse ainda mais importante para nós que tínhamos o desafio de nos somar e dar continuidade à luta de gerações por justiça e dignidade em qualquer lugar que estivéssemos.”

“Garantir que Luiza Bairros seja compreendida hoje e pelas gerações futuras como uma bem-lembrada é essencial para que rompamos com a falsa impressão de que a cada geração estamos começando a luta contra o racismo do zero. Essa homenagem, portanto, é muito justa e precisa ser valorizada como parte de uma ação permanente e necessária para estabelecermos regimes de memória que rompam definitivamente com o racismo, o sexismo e outros eixos de apagamento de amplos setores de nossa população.”

>> Dalila Negreiros, geógrafa, doutora em Estudos Africanos e da Diáspora Africana e integrante do grupo de Servidoras Públicas Negras. Trabalhou com Luiza Bairros na Seppir.

Dalila Fernandes de Negreiros, geógrafa, doutora em Estudos Africanos e da Diáspora Africana e integrante do grupo de Servidoras Públicas Negras. Foto: MGI/Divulgação

“Em 2005, o Enegreser, coletivo de estudantes negros do DF e Entorno, fez o Encontro de Estudantes Negros na UnB. Ela foi uma das pessoas que fez essa formação e foi uma das primeiras ativistas traduzindo o debate de interseccionalidade. Luiza foi uma das responsáveis por apresentar o trabalho da escritora Lélia Gonzalez, traduzindo seus livros.” 

“Vários programas e projetos de acompanhamento de políticas de ação afirmativa, questão das mulheres negras, da centralidade de políticas voltadas especificamente para mulheres negras é uma grande contribuição do mandato dela como ministra e como intelectual também, então eu creio que ela seja uma importante referência para o movimento negro e para quem acredita na democracia no Brasil.”

“É muito importante que essas pessoas que são relevantes para o movimento negro, elas sejam relevantes para o Brasil também. A gente está falando dos Correios, empresa nacional, tem distribuição no Brasil inteiro. É importante entender o papel do Estado brasileiro na garantia do reconhecimento das pessoas que são relevantes. No meu ponto de vista, a principal importância é garantir uma política de memória.”

* Estagiária sob supervisão de Marcelo Brandão

Leci Brandão: 80 anos e uma vida dedicada à defesa da cultura negra

Uma mulher negra, com convicções fortes e defensora de pautas sociais. Uma artista, compositora e ativista que teve a vida marcada por dificuldades, mas também por muita disposição em levar adiante a vontade de se expressar de várias formas. Essa é Leci Brandão, que completa 80 anos nesta quinta-feira (12).

Quem conhece a cantora, atriz e deputada estadual Leci Brandão têm uma admiração profunda pela história de vida dela e pelo legado que essa história representa. Desde cedo, já demonstrava inspirações artísticas.

Gostava de samba e se divertia quando ia para a casa da madrinha no Morro da Mangueira. Foi com essa convivência que se tornou a primeira mulher a pertencer à ala de compositores da Estação Primeira de Mangueira. Essa foi uma das muitas faces do pioneirismo que marcaram sua trajetória.

A relação com a mãe Dona Lecy, considerada melhor amiga, sempre foi firme. Muitas de suas decisões na vida tiveram por trás um conselho da mãe, que também incentivou a sua religiosidade: “Dona Lecy Assunção Brandão é a sabedoria da minha vida.”

A ida ao terreiro do Caboclo Rei das Ervas, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio, foi uma sugestão de Dona Lecy, quando a filha enfrentava um momento de depressão, depois de ficar cinco anos sem gravar. Lá, deu novo rumo à carreira e chegou a ganhar um disco de ouro pela vendagem de um disco em homenagem a Ogum, seu santo de cabeça.

Atualmente, Leci está no quarto mandato consecutivo como deputada estadual na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Em 2022, ela recebeu 90.496 votos

O musical Leci Brandão – Na Palma da Mão, que teve estreia em janeiro de 2023 e segue nos palcos, trata de todos esses temas e surpreendeu a artista, que se viu retratada em pequenos detalhes.

Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, Leci Brandão lembrou de vários momentos da sua trajetória e, muito carinhosa, agradeceu por poder contar momentos importantes que vivenciou.

Confira os principais trechos da entrevista:

Agência Brasil: Todos que participam do musical passam o sentimento de prazer em fazer o espetáculo, o que achou da sua representação no musical?

Leci Brandão: Primeiro gostaria de te agradecer pela oportunidade de dar essa entrevista. Com o que está acontecendo na minha vida nos últimos tempos, o meu coração deve ser muito forte, porque a emoção está sendo muito grande. Tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo em função desse aniversário de 80 anos. Quando paro para pensar que em 80 anos já fiz tanta coisa, me emociono muito mesmo. Quando fui assistir a peça no Sesc Copacabana [onde teve a estreia] confesso que fiquei impactada. Não esperava que eles fossem construir uma coisa tão bonita e tão legítima.

A atriz [Verônica Bonfim], que representa minha mãe Dona Lecy, eu fiquei encantada com ela. A outra atriz [Tay O’Hanna] que faz a Leci, eu me assustei até. A cor do cabelo, as roupas, eu achei que tinha essa força, essa magia. Nunca poderia imaginar que fosse pegar todos os trejeitos e a forma como eu canto. Tem horas que fico pensando, ‘gente isso está acontecendo mesmo’? As pessoas conseguiram traduzir tudo.

Agência Brasil: Sua religiosidade também é um tema bastante explorado no espetáculo.

Leci Brandão: Eu tenho uma senhora que foi mãe de santo aqui no Rio de Janeiro lá em São Gonçalo. Mãe Alice. Conheci essa senhora e me encantei por ela, muito boazinha e trabalhava com uma entidade chamada Caboclo Rei das Ervas. Eu devo tudo a esse caboclo, que conheci em 84. Estava muito desesperada porque estava sem gravar há cinco anos. Pedi demissão da gravadora que estava e fiquei cinco anos sem gravar. Quando conheci esse terreiro, em São Gonçalo, o caboclo Rei das Ervas disse para mim que eu estava triste, em depressão, ‘mas fique tranquila porque você vai retomar sua carreira’. Cinco anos sem gravar, como? [Ele disse:] ‘Você vai retomar a carreira e antes disso acontecer você vai sair do Brasil’.

Não acreditei em nada. Como pode? Esse tempo todo sem atuar, sem nada. E isso aconteceu: eu saí do Brasil e fui para Angola, em novembro de 1984 (conheci Seu Rei das Ervas no princípio de 84), para uma apresentação em Luanda. Quando desci do avião, me lembro perfeitamente, eu disse ‘meu Deus tenho que bater cabeça na terra para pedir perdão dessa fala do caboclo’. Quando eu voltei recebi realmente um convite da gravadora Copacabana e na última faixa do LP eu coloquei a saudação ao Seu Rei das Ervas.

Fui a São Gonçalo de novo para apresentar a ele o que eu tinha feito, por gratidão. Ele falou: ‘a partir de agora, sempre que você fizer um disco coloque a última faixa em homenagem a um orixá.’ E assim eu fiz. Coincidentemente Ogum, que é o orixá que na verdade comanda a minha cabeça, gravei em 88 e recebo o meu primeiro disco de ouro. Então foram muitas afirmações que foram feitas e cumpridas na minha vida.

Tenho muito respeito e muita gratidão pela religião de matriz africana, porque as coisas foram acontecendo, retomei minha carreira. Tudo que eu faço e agradeço, nunca esqueço daquele dia que fui lá em São Gonçalo pedir força, uma fé, inspiração, sei lá.

Você sabe que a gente está no parlamento na Assembleia Legislativa de São Paulo. Quando houve o convite eu voltei lá para saber o que era isso. Já estava com a carreira reconstruída, tudo direitinho, porque então estavam me chamando para entrar para a política? ‘Isso era uma coisa que está prevista para você fazer. Aceite o convite’. Aceitei e fui eleita em 2010, pelo PC do B, que não tinha nem assento na Assembleia Legislativa.

Agência Brasil: Na última eleição você conseguiu mais votos que nas três anteriores. É uma confirmação do seu trabalho no parlamento?

Leci Brandão: Você falou a palavra correta: confirmação. Está sendo tudo confirmado. Fico muito espantada porque é uma surpresa para mim. Sempre fiz as minhas coisas, mas nunca pela intenção de receber um resultado satisfatório, positivo. Minha vida está tendo uma pequena revolução em tudo e aí vem essa questão também da peça. Quando o [diretor] Pilar ligou para mim e falou ‘estou escrevendo [um projeto], vou entrar em um edital’. Depois ele me contou ‘vencemos o edital e vamos fazer a peça’. Eu falei ‘meu Deus mais uma surpresa para mim’.

São muitas coisas que tenho recebido e chego à conclusão de que estou cumprindo uma missão. Nada é porque eu pensei que queria. Não, é uma missão que Deus me deu e está sendo cumprida aqui na Terra do jeito que eu posso cumprir. Sou uma pessoa muito simples que não tem a escolaridade, ter sido formada em uma Universidade. Sempre tive a preocupação de trabalhar para ajudar a minha mãe, que era servente de escola pública no Rio. Nunca passou pela minha cabeça que eu ia ser a segunda mulher negra a entrar na Assembleia de São Paulo.

Agência Brasil: E a primeira mulher a entrar na ala de compositores da Mangueira.

Leci Brandão: Da Mangueira, exatamente. Foi desse jeito aí. Me emociono muito. Tenho que tomar cuidado com as minhas emoções, porque a minha saúde está um pouco fragilizada. Estive muito doente no ano passado, tive internação inclusive, com problemas de diabetes, pressão alta, arritmia cardíaca… um bolo só que deixou a minha saúde um pouquinho mais abalada, mas a gente está tocando o barco do jeito que pode e dá.

Agência Brasil: Embora você tenha entrado na política oficialmente como parlamentar, a sua vida toda sempre foi política, com posições muito firmes. Ao conversar com os atores do musical, notei que há, em todos eles, um traço de muito respeito pela sua trajetória e sua luta.

Leci Brandão: O que me encantou mais é a forma como conduziram, como foi escrito. Eu parabenizei e agradeci a cada um deles, a luz, as falas, a forma como se colocaram. É um palco simples. Não tem hiper, superprodução, não é isso, mas é carregada de uma intensidade de emoção que me fascinou.

Agência Brasil: Como você avalia o fato de terem levado para a peça a sua defesa da comunidade LGBT? Que foi feita em um período muito difícil para se discutir este tema. Essa foi mais uma causa em que você foi pioneira.

Leci Brandão: Vi de uma forma muito importante. Como você disse, eu fui uma das pioneiras nesta questão da defesa da comunidade LGBT. Eles terem retratado isso, foi mais uma luta contra o preconceito. E a forma de expor essa luta foi feita com muita ternura e respeito à comunidade e à minha pessoa.

Agência Brasil: Onde o espetáculo passa, está fazendo sucesso, desde a estreia, há quase dois anos. E ainda vai entrar em outros circuitos, em vários estados. Isso tudo é um reconhecimento também do seu trabalho, da sua trajetória?

Leci Brandão: Eu fico me perguntando como é que a gente conseguiu construir tudo isso com tanta simplicidade, tanta tranquilidade, foi tudo muito natural. Primeiro que sou uma pessoa que eu não minto. Eu, Leci Brandão da Silva, não consigo mentir. Falo a verdade. Nem sempre a gente é bem interpretada, mas sou verdadeira. Sou incapaz de ‘vou sorrir porque vai ser bom sorrir’. Não! Faço o que o meu coração pede. O que minha cabeça direciona é o que eu faço. O fato da gente ser artista – eu costumo dizer: ‘eu estou deputada, eu sou artista’. Sempre fui artista. Desde quando comecei nos anos 70, quando começo a gravar, sempre procurei transmitir nessa arte de composição, embora não saiba tocar nenhum instrumento de harmonia, nada disso, mas Deus já manda pronto letra e música.

Se você me perguntar, eu digo que isso é coisa de orixá. Não pode ter outra explicação. Às vezes estou em um lugar, já fiz música dentro de ônibus, dentro de trem, varrendo sala de aula, coando um café, tomando uma chuveirada. As músicas vêm nas horas mais incríveis. Não me preparo para compor. Se eu disser segunda-feira vou fazer um samba, mentira, porque não me preparo para isso. Naturalmente que procuro sempre ter um gravador por perto para não esquecer a melodia e quando tenho parceiro em música, geralmente, sou parceira de quem toca algum instrumento.

Agência Brasil: Estamos neste momento que junta os 80 anos da sua vida e sua trajetória contada nesse musical.

Leci Brandão: Principalmente a parte que eles escolheram determinadas músicas e tem tudo a ver com a realidade daquele momento em que eu estava vivendo a situação do país e conseguia traduzir o meu posicionamento político, sem saber. Disseram pra mim: ‘você sempre foi comunista’. Como assim? Nunca fui comunista, mas foram me provando. Nunca fui de política, nem minha família. Quando me perguntam ‘como você costurou esse caminho todo com posicionamentos de luta e questão social, da igualdade, de democracia?’ Digo: ‘olha minha mãe tinha o primário, mas a grande sabedoria que tenho na minha vida é baseada nela’.

Vou dar um exemplo. Quando fiz o samba as Coisas que Mamãe Ensinou, em que eu digo um bom dia, boa tarde, com licença, por favor… tudo isso é resultado das coisas que mamãe me ensinou. Não sei falar nada com ninguém sem dizer por favor, obrigada, sem pedir com licença. Sou bem à moda antiga. Essa coisa do respeito. Não consigo conhecer uma pessoa de idade e chamar de você. Eu não consigo. Ainda, nesse ponto, ouso dizer a você que sou jurássica. Essa modernidade toda de IA, inteligência artificial, não tenho nada a ver com isso. Não entendo essas coisas e fica difícil para mim, nessa altura do campeonato, tentar entender isso. Não dá para mim não.

Agência Brasil: E sobre as músicas selecionadas para o espetáculo? Especialmente Zé do Caroço, que levou você a pedir demissão da gravadora em um posicionamento muito forte.

Leci Brandão: Em todo lugar que trabalhei nunca permiti que ninguém me mandasse embora. Sempre pedi demissão. Quando trabalhei na Companhia Telefônica Brasileira, fui telefonista do setor de consertos e fui ao programa Flávio Cavalcanti, a Grande Chance, na TV Tupi. Como fui a melhor da noite como compositora, a Telefônica me prometeu que eu ia mudar para o setor de burocracia. [O programa] Tinha mais audiência do que o Fantástico. Se você cantasse, ou fosse premiada com alguma coisa, o Brasil inteiro sabia. O tempo passou na primeira, segunda e terceira fase e não fizeram nada por mim [na Telefônica].

Fiquei sabendo que ia haver outra oportunidade de emprego em uma fábrica em Realengo, e eu morava nessa época em Senador Camará. Fiz a prova e passei para trabalhar no setor burocrático. No dia que eu ia me apresentar com os aprovados, o comandante da fábrica, que era do Exército, disse que as vagas tinham sido extintas e quem passou ‘se quiser trabalhar vai ter que ser na oficina da fábrica’. Eu já tinha pedido demissão da Telefônica, então fui ser trabalhadora da oficina de revisão de balas e festins. Ou seja: de telefonista passei a operária de fábrica. Fiquei cheia de calos na mão, mas não tinha outra saída.

Essa história é muito louca, adquiri oito calos, quatro em cada uma das mãos, mas precisava trabalhar para ajudar minha mãe. Aí dona Paulina Gama Filho, filha do ministro Gama Filho, sabia que eu tinha cantado no [programa] Grande Chance. Uma moça que me atendeu conhecia minha mãe e viu o mesmo sobrenome, me deu um cartão para que eu procurasse a filha do ministro que ela tinha uma vaga para mim. Assim as coisas aconteceram. Fui trabalhar no departamento de pessoal da Universidade Gama Filho. Lá teve um festival e me classifiquei. Fui revelação e tive a oportunidade de entrar também para a ala de compositores da Mangueira na mesma época em 71. As pessoas começaram a me ver, fui parar no teatro Opinião e começo a cantar na roda de samba do Opinião. O Sérgio Cabral – o pai e não o governador –, me conheceu e me deu a oportunidade de ir para a gravadora Marcus Pereira, a primeira gravadora na minha história.

As coisas são assim, vão acontecendo. Uma coisa atrás da outra e minha mãe sempre no bolo. Foi minha mãe que me levou para conhecer Seu Rei das Ervas, foi responsável por eu sair da fábrica de Realengo e ir trabalhar na Universidade Gama Filho. Veja que ela esteve sempre espiritualmente nas minhas coisas. Daí essa adoração que eu tenho por ela. Sinto saudade de muitas coisas, mas a saudade da minha mãe é incomparável. Ela se foi em 2019 e estamos em 2024, mas eu penso na minha mãe todos os dias, rezo para o espírito dela, para estar sempre com ela.

População negra é maior vítima do consumo de álcool no país

A população negra é a mais atingida pelas mortes atribuídas ao uso de álcool no Brasil. Esse é um dos temas em destaque da publicação Álcool e a Saúde dos Brasileiros: Panorama 2024, que está sendo lançada nesta sexta-feira (30) pelo Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa).

De acordo com o psiquiatra e presidente do Cisa, Arthur Guerra, “ao analisar os dados de mortes por uso de álcool no país, verifica-se que os impactos do uso nocivo dessa substância são desiguais para brancos, pretos e pardos, especialmente na população feminina”. A análise inédita indica que, em 2022, a população negra apresentou 10,4 mortes totalmente atribuíveis ao álcool por 100 mil habitantes; enquanto a taxa para as pessoas brancas foi de 7,9, ou seja, cerca de 30% superior. Entre as mulheres a diferença é ainda mais significativa. A taxa desses óbitos entre pretas e pardas é de 2,2 e 3,2, respectivamente, e entre brancas 1,4.

Uma das explicações para o fato é a desigualdade racial histórica no país, especialmente pelo acesso desigual a tratamentos. “Pessoas pretas encontram-se em situação de maior vulnerabilidade social por diversos fatores, sobretudo o racismo e a pobreza, que dificultam o acesso a uma vida digna, de modo geral, impactando, por exemplo, o acesso a serviços de saúde de qualidade, que são fundamentais para tratar transtornos por uso de álcool”, explica a doutora em sociologia e coordenadora do Cisa, Mariana Thibes.

Estudos internacionais identificam a discriminação racial como potencial estressor, o que contribui para o surgimento de problemas físicos e emocionais, bem como comportamentos de risco associados ao consumo de álcool. Porém, é preciso alertar que isso não equivale dizer que os negros praticam mais o consumo abusivo, mas sim que, ao se depararem com o problema, as chances de obter tratamento de qualidade são menores.

No caso das mulheres, mais um dado chama a atenção: 72% dos óbitos por transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de álcool ocorrem entre mulheres pretas e pardas. “As dificuldades redobradas em relação a diversos aspectos da vida enfrentada pela população negra feminina podem propiciar o uso excessivo de álcool. Além disso, o estigma relacionado ao alcoolismo e à falta de tratamento adequado podem conduzir ainda a outros problemas sociais e de saúde”, avalia Mariana.

Diante desse cenário, é importante aumentar a conscientização sobre o abuso de álcool e seus impactos na saúde da população preta e parda, bem como promover a inclusão e a diversidade nos serviços de saúde mental para garantir que todos tenham acesso igualitário a cuidados de qualidade.

Em relação aos óbitos atribuíveis ao álcool, a pandemia interrompeu a tendência de queda. Em 2022, a taxa atingiu 33 mortes associadas ao álcool por 100 mil habitantes no período, mas ainda abaixo da verificada em 2010 (36,7).

Dezesseis estados apresentam taxa de mortes atribuíveis ao álcool por 100 mil habitantes superior à nacional, com o Paraná (42,0), Espírito Santo (39,4) e Piauí (38,9) liderando o ranking.

Idade

Os efeitos negativos do álcool são diferentes entre as faixas etárias. Enquanto entre jovens adultos as principais consequências estão associadas a comportamentos de risco, como acidente de trânsito e violência, as pessoas mais velhas são mais impactadas por doenças crônicas não transmissíveis, como as cardiovasculares.

Outro ponto abordado pelo Cisa é a dificuldade de a população negra ou branca aceitar o tratamento e isso ser uma das principais barreiras para a cura da doença. Segundo o centro, sem dúvida existem estigmas relacionados ao alcoolismo que dificultam a busca por ajuda. “O alcoolismo ainda é visto por muitos como uma falha de caráter, um problema moral associado à falta de vontade, que faz com que muitas pessoas demorem a reconhecer o problema e buscar ajuda. É preciso lembrar que o alcoolismo é uma doença crônica que, quando tratada, tem bom prognóstico”.

Existe ainda o “estigma histórico no Brasil de que a população negra bebe mais e tem uma relação mais abusiva com o álcool, o que não procede. O estigma contribui para que essas pessoas evitem procurar ajuda quando precisam”. Quando isso se soma ao preconceito racial, temos uma situação ainda mais difícil. É bom lembrar que os negros no Brasil não bebem mais do que os brancos, como mostrou a pesquisa Covitel 2023. Mas, quando enfrentam o problema do uso nocivo, têm menor acesso a um tratamento de saúde de qualidade, e, por isso, morrem mais de questões relacionadas ao álcool.

Os serviços de saúde precisam estar atentos a essa questão, pois eles têm papel central para lidar com o problema. Serviços de saúde culturalmente sensíveis e ampliação do acesso a tratamentos gratuitos de qualidade são fundamentais para enfrentar a situação.

Perguntado se mesmo depois de ter iniciado o tratamento, muitas pessoas têm recaída e voltam a beber, o Cisa respondeu que não tem esse dado. “Recaídas existem e fazem parte do processo de tratamento do alcoolismo, sendo comuns em pessoas de todas as cores de pele. A recaída, quando encarada dessa forma, ajuda o próprio paciente a retomar a motivação para continuar o tratamento. O apoio dos familiares nesses momentos é decisivo, assim como dos profissionais de saúde, que podem ajudar o paciente a entender as causas e gatilhos que levaram à recaída”.

A análise dos óbitos atribuíveis ao álcool por cor de pele/raça tem como metodologia o processamento de dados de indicadores populacionais sobre consumo de álcool e mortalidade, sendo aplicadas as Frações Atribuíveis ao Álcool para os determinados agravos à saúde. Entre as fontes oficiais consultadas estão IBGE, Datasus e Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM).

CISA

O Centro de Informações sobre Saúde e Álcool é uma das principais referências no Brasil sobre o tema e desde sua fundação, em 2004, vem contribuindo para a conscientização, prevenção e redução do uso nocivo de bebidas alcoólicas. Qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), a instituição dedica-se ao avanço do conhecimento na área, atuando na divulgação de pesquisas e dados científicos com linguagem acessível, na produção de materiais e conteúdos educativos e no desenvolvimento de outros projetos.

“Brasil não se enxerga no espelho”, diz artista negra Rosana Paulino

Com quase 60% da população reconhecida como negra, o Brasil é um país que não se enxerga no espelho e está muito atrasado em discussões sobre a questão racial. O pensamento é da educadora e artista visual negra Rosana Paulino, que coleciona trabalhos de destaque dentro e fora do Brasil ligados ao racismo, posição da mulher negra na sociedade e marcas deixadas pela escravidão.

Para a artista, a educação visual é absolutamente necessária para a emancipação das pessoas. “Se você só vê uma pessoa ou um determinado grupo ocupando determinados postos, só vê esse grupo sendo retratado de maneira negativa, você não precisa falar, você não precisa escrever. Você não precisa ler sobre isso: a imagem já está te condicionando”, diz.

Rosana Paulino conversou com exclusividade com a Agência Brasil – Tomaz Silva/Agência Brasil

A artista e intelectual que até dois meses atrás fez grande sucesso com a exposição Amefricana, no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba), é uma das titulares da Cátedra Pequena África, lançada este ano pela Fundação Getulio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro. Ela ministrará o curso livre Arquivo, Memória, Construção Visual e Educação.

Rosana Paulino conversou com a Agência Brasil sobre esse pioneirismo acadêmico que direciona para o “empretecimento” da academia e sobre a obra dela – que tem a indignação e o antirracismo como matérias-primas, além de assuntos alvo de debate contemporâneo, como a relação entre comunidades tradicionais e mitigação de mudanças climáticas.

Confira os principais trechos da entrevista exclusiva:

Agência Brasil: Qual é a proposta desse curso? É uma ressignificação de imagens ligadas à escravidão?
Rosana Paulino: São encontros. Eu pretendo analisar algumas imagens, como essas imagens vão ajudar a criar um local social para essa população negra, e como os artistas contemporâneos brasileiros desse momento estão quebrando esse local simbólico social que foi formado para a população através da imagem.

Agora, não dá para entrar em um assunto tão complicado assim sem entender o que aconteceu antes. Como se forma o local simbólico para uma determinada população. Como se dá o processo de embranquecimento e de apagamento. Mas só dentro da área da imagem, que é o campo em que atuo.

Então não é em relação à escravidão, porque quando a gente vai falar da população negra, a gente sempre pensa na escravidão, mas tem todo um conjunto de criação, tem toda uma ação dessa população negra que não está simplesmente ligada à escravidão, porque se não a gente reduz demais a situação. Reduz o sujeito negro como se fosse somente dependente desse ato da escravidão, e a população negra é muito mais que isso.

Agência Brasil: Você é uma artista e também uma educadora. A arte é uma ferramenta de educação?
Rosana Paulino: Sem dúvida nenhuma! Trabalhei como educadora por 30 anos. Gosto do ofício. Eu só saí da área porque minha agenda não permite mais. A educação, principalmente a educação visual, é absolutamente necessária para a emancipação dos sujeitos. A imagem tem um poder que é muito pouco discutido no Brasil, e é uma coisa que me preocupa muito. Essas discussões que deveriam ter sido postas em cima da mesa para a gente entender como é que você condiciona uma população. Como é que você define locais sociais. A imagem é extremamente poderosa nesse sentido.

Muitas vezes, a gente não precisa falar nada. Mas se você só vê uma pessoa ou um determinado grupo ocupando determinados postos, só vê esse grupo sendo retratado de maneira negativa, você não precisa falar, você não precisa escrever ler sobre isso, a imagem já está te condicionando.

Agência Brasil: O que você espera como resultado dessas conversas, plantar sementes para novas trabalhos de teor antirracista?
Rosana Paulino: Eu quero é isso: colocar o assunto em cima da mesa para que outros venham discutir isso. É algo que tem que ser profundamente discutido em um país onde quase 60% da população já se coloca como negra. É um absurdo que nós não tenhamos discutido isso ainda.

A gente tem que pensar sobre isso: que país nós queremos? O país que nós queremos passa pela construção em uma imagem também. Tudo está para ser feito no Brasil ainda. Por incrível que pareça, em 2024, tudo ainda está para ser discutido nesse sentido no Brasil.

A bandeira do Museu de Arte do Rio, na Praça Mauá, é criação da artista Rosana Paulino – Fernando Frazão/Agência Brasil

Agência Brasil: Essa cátedra da FGV é pioneira. Você está sendo pioneira em um processo pioneiro (Rosana Paulino é a primeira das titulares a desenvolver atividades na cátedra. As outras duas titulares são a professora e cantora lírica Inaicyra Falcão e a poeta e ensaísta Leda Maria Martins). Olhando para daqui a dez anos, você espera que esse tenha sido um caminho para empretecer a academia?
Rosana Paulino: Precisa. Novamente eu vou trazer essa questão do atraso brasileiro em relação a essas discussões. Já fui muito mais chamada fora do Brasil do que dentro. Estou cansada de ser chamada fora do Brasil para abrir semestre, fazer aula especial, aula nobre de ano letivo em universidades. Cátedras, eu ainda não peguei fora do Brasil, mas todo ano recebo pelo menos um convite para abrir um semestre.

Aqui no Brasil, a gente não faz. Espero que seja o primeiro, que realmente a cátedra chame atenção para essas discussões, para que ajude a empretecer e, principalmente, para que ajude na produção de novos trabalhos que venham discutir esse assunto. Isso é para ontem!

Agência Brasil: Você teve exposições no exterior, como em Buenos Aires e nos Estados Unidos. Qual a percepção que você tem do público que visita as suas obras?
Rosana Paulino: Eu não esperava tanta receptividade fora do Brasil porque achava que era um tema muito regional. O que me surpreendeu foi como a exposição foi acolhida fora do país. O Malba esteve cheio praticamente todos os dias. Foi uma coisa meio absurda que aconteceu no Malba. A própria equipe do museu comentava comigo como estava cheio.

Aconteceu uma coisa muito linda no Malba. [Contrariando] aquela história de que não existe negros na Argentina, as pessoas negras começaram a ir, principalmente as mulheres negras, e começaram a propor rodas de conversa no meio da exposição. Eu fiquei completamente surpresa. Isso mostra o alcance que pode ter uma exposição. Isso que eu procuro sempre com o trabalho, levantar discussões, trazer conversas, colocar o assunto na mesa.

Agência Brasil: Sua obra fala sobre o sofrimento que envolve a diáspora africana, migração em massa forçada e dolorida, racismo que tenta silenciar a presença negra no Brasil. Você vislumbra que é possível que a população afrodescendente possa cicatrizar essa memória?
Rosana Paulino: Essa cicatrização não depende tanto, talvez, da população negra. Depende da população que se considera branca porque isso não se faz de um único lado. Querendo ou não, esse é um país negro. O Brasil é um país onde o que rege a questão da cor é a autodeclaração, os critérios do IBGE. Eu desconfio que isso vai bater em 65%. É uma população negra, uma cultura negra, é um país que vai ter a oferecer para o mundo justamente as diferentes culturas que estão aqui. Então o Brasil se assume como é ou a gente vai continuar jogando no lixo, todos os dias, aquilo que a gente tem para oferecer para o mundo.

O Brasil talvez seja um dos principais países a ter a chave para essa questão climática. Populações indígenas, ribeirinhas, quilombolas, são eles que têm o conhecimento para tirar o homem desse abismo, desse buraco. A gente não se reconhecendo como tal, a gente não consegue solução nem para os nossos problemas nem para uma coisa muito maior. Então, não diria cicatrização, acho que a gente tem que colocar o assunto sobre a mesa.

Essa população precisa e merece compensações, se não a gente vai pensar em uma cicatrização de qual maneira? Sem limpar a ferida para depois explodir lá na frente? Então eu não diria cicatrização dessa ferida da escravidão, a gente tem que botar em cima da mesa, abrir e ver quais são as soluções para isso. Como é que a gente vai limpar essa ferida, acomodar as bordas desse tecido que ainda estão separadas, como é que a gente vai fazer essa sutura?

Agência Brasil: O Brasil está muito atrasado nessa assepsia?
Rosana Paulino: Muito. O Brasil está extremamente atrasado nisso e é muito resistente. O que me choca mais é a resistência do país em reconhecer isso. E o trabalho aqui foi tão bem feito que boa parte da própria população negra não reconhece. Nós temos uma movimentação absolutamente gigantesca a ser feita nesse sentido.

Rosana ministrará o curso na Cátedra Pequena África, na Fundação Getulio Vargas – Tomaz Silva/Agência Brasil

Agência Brasil: Fora o seu trabalho especificamente, de quais outras formas o Brasil pode avançar nisso?
Rosana Paulino: Valorização da cultura no geral, isso é absolutamente essencial. Combate ao racismo religioso. Isso é também uma coisa absurda. O Brasil é um país que corre o risco de perder a sua própria identidade por conta do racismo religioso. Porque não se pode esquecer nunca que a cultura é diretamente ligada às manifestações religiosas, à música negra, a música brasileira, a de qualidade, pela qual o Brasil é conhecido mundialmente. A música brasileira é diretamente ligada à música de terreiro. É do terreiro que vem o samba. É do samba e de outras manifestações musicais negras que vêm do terreiro que a gente vai ter a base musical para a cultura brasileira. Durante muito tempo a cultura musical foi o destaque do Brasil no mundo, e o Brasil joga isso fora. Quando você não respeita as religiões de matriz africana, a gente vai muito além de uma questão simplesmente religiosa, a gente chega no cerne do que é ser brasileiro.

As coisas estão ligadas. Aqui no Brasil, a gente tem um hábito de ver cada coisa em uma caixinha. Mas está tudo entrelaçado, eu não posso pensar a cultura brasileira sem pensar em manifestação religiosa. É impossível. O que o Brasil faz, muitas vezes, abafa certas condições culturais religiosas, traz de fora um material de quinta [categoria] e coloca isso como se fosse uma matriz nacional, o que não é. E aí joga no lixo aquilo que poderia ter para oferecer para o mundo.

Porque senão a gente vai continuar nisso, uma cópia extremamente mal feita do Ocidente, e sem levantar a cabeça, o que é pior. Uma cópia que aceita tudo quanto é tranqueira que vem de fora, não produz, e com uma capacidade absurda de produção. E principalmente a academia. A academia no Brasil faz isso o tempo todo. Tem que empretecer a academia e descolonizar essa academia. A academia no Brasil, tem hora que dá vergonha: aceita tudo de fora e não propõe nada.

Agência Brasil: No dia do lançamento da cátedra, a escritora Conceição Evaristo disse que os pensadores negros não têm que ter modéstia.
Rosana Paulino: Eu concordo em gênero, número e grau com a Conceição. Não temos que ter modéstia. Temos é que nos colocar no mundo. O que acontece, o que valida muito a produção cultural no Brasil é a academia. Uma academia totalmente tomada por questões eurocêntricas e que não tem pulso para se rebelar. Vai aceitando de maneira passiva. É de uma passividade que me irrita profundamente.

Junta-se a isso o histórico da população negra, o modo como as culturas de matriz populares são relegadas ao segundo plano… isso é um caldo de sujeição a outras culturas – você não se colocar diante do mundo. Somos um país com um potencial absurdo. Só que se a gente não se assume como país, a gente não sai desse buraco. É essencial, sim, que a gente não tenha modéstia.

Agência Brasil: Em Samba da Benção, Vinícius de Moraes diz que “pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza”. No seu trabalho, é preciso ter a memória do sofrimento étnico para criar obras que sirvam de conteúdo antirracista?
Rosana Paulino: Não. Eu não quero tristeza, quero reparação. É diferente. O povo preto é tão forte que consegue cantar e dançar em cima disso.

Agência Brasil: E se trocar tristeza por indignação?
Rosana Paulino: Aí rola. Mas se a gente for por essa tristeza, por esse banzo, a gente não tem escola de samba. Escola de samba para as pessoas negras é um veículo de educação extremamente poderoso. Eu começo a ter o meu letramento racial quando eu era adolescente, quando a Mocidade Alegre, lá de São Paulo, fez três enredos sobre a questão negra. O que é o cortejo de escola de samba? Ali não cabe essa tristeza para fazer cultura não, ali a gente põe indignação, a gente abre o assunto e ainda passa cantando.

Agência Brasil: Você já disse que o Brasil não se enxerga no espelho. Não se enxerga ou não quer se enxergar?
Rosana Paulino: Os dois. A elite não quer enxergar. A elite brasileira nunca se viu como brasileira. A elite brasileira se vê como coitados exilados na América do Sul. Ela não quer se ver como ela é. O povo, no geral, muitas vezes tem pressão religiosa, as religiões negras sempre foram demonizadas, isso está diretamente ligado à cultura, e isso vai criando um caldo de desperdício que vai afetar todas as áreas: da cultura ao meio ambiente.

Quem é Rosana Paulino

A artista vive em São Paulo, cidade onde nasceu, em 1967. É doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), especialista em gravura pelo London Print Studio, de Londres, e bacharel em gravura pela ECA/USP.

Como artista, se destaca pela produção ligada a questões sociais, étnicas e de gênero. Possui obras em importantes museus, como o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), a Pinacoteca do Estado de São Paulo; o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp); Museu Afro-Brasil, em São Paulo; Malba e University of New Mexico Art Museum, no Novo México (EUA). Já expôs em cidades como Lisboa, Berlim, Veneza (Itália), Chicago (EUA) e Bruxelas, entre outras.

A Cátedra Pequena África surgiu de uma parceria entre a prefeitura do Rio de Janeiro e a FGV, com a proposta de ser um campo acadêmico para estudo e divulgação de pensadores negros. Possui um conselho consultivo formado pelos intelectuais negros: Ayrson Heráclito (artista e curador), Benedito Gonçalves (ministro do Superior Tribunal de Justiça), Conceição Evaristo (linguista e escritora), Dione de Oliveira (jornalista e diretora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB); Jurema Werneck (médica e diretora da  Anistia Internacional), Muniz Sodré (sociólogo e escritor), Sonia Guimarães (cientista) e Thiago de Souza Amparo (advogado e professor FGV-SP).

De agosto a outubro, a cátedra realizará os ciclos individuais com as titulares, composto pelos cursos livres e roda de diálogos na Biblioteca Mário Henrique Simonsen. Em novembro, no dia 5, um seminário reunirá as três titulares, quando também serão convidados os participantes do comitê consultivo.

Julho das Pretas destaca atuação da mulher negra no cenário jurídico

A Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo (OAB SP) promove, no próximo sábado (27), o evento Julho das Pretas, que inclui a realização do 1º Congresso Jurídico de Mulheres Negras de São Paulo, iniciativa da Comissão Permanente de Igualdade Racial da OAB SP.

O objetivo é promover o reconhecimento da contribuição de mulheres negras na advocacia e na luta por justiça e igualdade. Durante o evento, diretoras e conselheiras da OAB-SP serão agraciadas com a Medalha Tereza de Benguela, instituída em 2023, para reconhecer sua contribuição à área.

O Julho das Pretas celebra duas ações históricas representativas para mulheres negras, que têm como referência o dia 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e o Dia Nacional de Tereza de Benguela, conhecida como ‘Rainha Tereza’, líder quilombola do século XVIII, à frente do Quilombo do Quariterê (atual estado de Mato Grosso).

Congresso

O 1º Congresso Jurídico de Mulheres Negras de São Paulo abordará temas importantes para a atuação das mulheres negras no cenário jurídico. Entre os tópicos discutidos estão o ativismo judicial na esfera penal, o planejamento tributário empresarial e os desafios de um novo código civil.

“A proposta deste ano, falando sobre direito, é bastante disruptiva, tendo em vista que também é uma estratégia racista achar que mulheres negras só falam sobre racismo. Nós temos doutoras, temos mulheres com currículos invejáveis e que podem falar muito bem sobre outros temas do direito. Então, pensou-se em um evento em que elas possam mostrar a todos os seus saberes”, disse a secretária-geral adjunta da OAB SP e uma das organizadoras do evento, Dione Almeida.

Para Dione o evento é importante porque busca fortalecer a articulação das mulheres afrodescendentes na luta contra o racismo estrutural e a opressão, além de promover o reconhecimento de suas contribuições na sociedade.

“No Congresso, haverá mulheres falando bem sobre os temas e, para nós, isso é motivo de muito orgulho. Primeiro, porque nós contemplamos essas mulheres com seus saberes e, segundo, porque mostramos para o mundo que conseguimos um outro caminho quando nos desvencilhamos do racismo, que é fazer com que essas mulheres, advogadas, consigam traçar seu próprio destino, suas carreiras.”

O Congresso será dividido em painéis com quatro mulheres, sendo duas mediadoras e duas palestrantes. Entre os temas estão Ativismo Judicial na Esfera Penal; Planejamento Tributário Empresarial – Reforma e Jurisprudência; Desafios de um Novo Código Civil. Haverá ainda uma dinâmica de grupo logo após a mesa de abertura, no início da manhã.

O evento gratuito e aberto ao público, ocorre das 9h às 16h, na sede da OAB SP, na Rua Maria Paula, 35, no bairro da Bela Vista. Para conhecer a programação e fazer a inscrição, basta acessar o site.

Festival Latinidades 2024 exalta a mulher negra

Começou nesta sexta-feira (5), em Salvador, a 17ª edição do Festival Latinidades, o maior evento cultural brasileiro de exaltação da mulher negra como potência social, criativa e econômica. A programação gratuita segue até o domingo (7).

O tema da edição deste ano é Vem ser Fã de Mulheres Negras. “Um chamado para reconhecer e celebrar a força transformadora dessas mulheres, ato que pode ser interpretado como revolucionário em uma sociedade machista e racista como a brasileira”, sublinha Jacqueline Fernandes, diretora-geral e idealizadora do festival.

“Ser fã na verdade é muito mais do que uma palavrinha”, declarou em entrevista à TV Brasil.  “Numa sociedade racista e machista, em que ceifam mulheres negras, [ser fã delas] é algo verdadeiramente revolucionário”.

Presente no calendário cultural brasileiro desde 2007, quando a primeira edição do festival foi realizada no Distrito Federal, neste ano o Latinidades expandiu horizontes, aportando sua programação multilinguagens também na Bahia, em Goiás e São Paulo.

Em todos os casos, a programação reforça a contribuição das mulheres negras para a sociedade em diferentes áreas, com destaque para o papel estratégico das artes e da cultura na promoção da equidade de gênero e raça.

Na sexta-feira, as apresentações foram abertas com o espetáculo da dançarina e professora Vânia Oliveira, seguido por debates e uma sessão da peça Medeia Negra, concebido pela atriz e escritora Márcia Limma e dirigido por Tânia Fariase.

Neste sábado, de 14h às 17h, tem lugar a parte literária do festival, com conversas e lançamentos de obras com temática negra. Um dos livros foi escrito com base na experiência do projeto Estamos Prontas, tocado em parceria com o Movimento Mulheres Negras Decidem e o Instituto Marielle Franco, cuja meta foi fortalecer 27 lideranças negras pré-candidatas de todo o país que concorriam a uma cadeira no Legislativo em seus territórios. Em seguida, ocorre um recital da advogada, maquiadora, retratista e poeta Luciene Nascimento.

“Eu acho que o maior pano de fundo do festival é o afeto e o reconhecimento do lugar da mulher negra em todos os estratos sociais”, avalia a produtora cultural Sueide Matos. 

“Eu acho que o mais profundo e o mais forte é o amor. É como esse festival é capaz de emocionar com tanto amor entre os povos e as mulheres pretas no Brasil”, complementou.

O domingo está reservado ao quarto Concerto Internacional Contra o Racismo, realizado pela Coalizão Global Contra o Racismo Sistêmico e pela Reparação, uma plataforma de ação global contra o racismo criada pelo Instituto Afrodescendente de Estudos, Pesquisa e Desenvolvimento, em conjunto com o Centro das Mulheres Afro, da Costa Rica. 

No concerto, se apresentarão artistas da América Latina como Sasha Campbell (Costa Rica), William Cepeda (Puerto Rico), Bel and Quinn (Haiti-Canada) e Sued Nunes (Brasil).

Rapper denuncia apagamento da presença negra em enchentes no RS

Em menos de seis meses de funcionamento, o recém-inaugurado Museu da Cultura Hip Hop, o primeiro e único do gênero na América Latina, localizado na zona norte de Porto Alegre, se tornou um espaço importante na logística de coleta e distribuição de doações às famílias afetadas pela enchente na região metropolitana da capital gaúcha.

Museu da Cultura Hip Hop tornou-se central para recebimento e destinação de doações no RS. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Quem dá as coordenadas na ação, que envolve dezenas de pessoas, é o ativista, rapper e MC Rafa Rafuagi, uma das principais referências da cultura de periferia no Rio Grande do Sul. Ali, em pouco mais de três semanas de emergência climática, foram 200 toneladas de itens como roupas, cobertores, camas, colchões, água, alimentos, entre outros, escoados para as regiões mais atingidas de pelo menos 10 municípios do estado.

“A gente está na fase da retomada dos lares. Não estamos na fase mais crítica, quando tinha falta de alimento, de água, de tudo”, descreve Rafuagi, que recebeu a reportagem da Agência Brasil na manhã de sábado (25), na sede do museu, onde comandava a saída de mais um caminhão de entrega, repleto de colchões e roupas de cama, com destino a Canoas.

Ele próprio viveu na pele essa fase dramática do estado.

“Quando tu tá vendo a água subir, parece cena do [filme] Titanic, as pessoas com coisas na mão tentando correr para salvar algo, as mães com crianças no colo. Um vizinho me ajudou a subir a geladeira, os móveis, mas não adiantou nada. Foi tudo perdido”, conta.

Rafuagi, 36 anos, é porto-alegrense de nascimento, mas cresceu em Esteio, na região metropolitana, onde fundou uma Casa de Cultura Hip Hop. O espaço é a semente do que veio a ser o museu, e berço de um ativismo que teve seu ápice no ano passado, quando rapper foi figura central na cerimônia que marcou a edição, pelo governo federal, de um decreto de fomento da cultura periférica e apresentação de um projeto de lei para instituir o Dia Nacional do Hip Hop no Brasil. Cultura preta por excelência, forjada nas periferias das metrópoles, o Hip Hop que corre nas veias de Rafuagi o faz denunciar o apagamento da presença afro-gaúcha em contexto de grande sofrimento da população.    

Inaugurado em 2023, o Museu da Cultura Hip Hop do Rio Grande do Sul conta a história do gênero no estado. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Há cerca de 10 dias, em uma visita a São Leopoldo, outra cidade da região metropolitana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou a expressiva presença de pessoas negras no do Rio Grande do Sul, sobretudo as vítimas da enchente, após visitar abrigo e ver imagens na televisão.

“Em São Leopoldo, onde o presidente estava, uma das maiores periferias é a Feitoria, bairro mais populoso da cidade, com dezenas de milhares de pessoas negras. (…) A enchente revelou, talvez, uma das faces que escancara tudo isso. Não estou dizendo que são majoritariamente pessoas negras, acho que todo mundo perdeu igual, e não estou aqui para dizer que um perdeu mais e outro perdeu menos. Todo mundo perdeu igual, infelizmente”, diz Rafuagi.

Apesar disso, argumenta, há um apagamento que recai sobre a pele negra quando se pensa no Rio Grande do Sul. Ele cita, por exemplo, que um programa de televisão foi dedicado a artistas gaúchos, porém só havia a presença de brancos e representantes de gêneros não periféricos. 

“Populares [os artistas], talvez, mas não periféricos. Nesse sentido, a gente vê que é importante mostrar essa participação do negro na construção do estado e na ação própria emergencial que estamos vivendo”, acrescenta.

Racismo ambiental

Mapas produzidos pelo Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles mostram uma demarcação muito clara de desigualdade de renda e de raça nas pessoas que foram mais atingidas pela catástrofe. As áreas mais alagadas foram, principalmente, as mais pobres, com impacto proporcionalmente muito maior sobre a população negra, que representa cerca de 21% dos habitantes do estado, segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Nesse caso, as áreas que mais sofreram com as inundações apresentam concentração expressiva de população preta e parda, geralmente acima da média dos municípios. É o caso de bairros como Humaitá, Sarandi e Rubem Berta, em Porto Alegre, e de Mathias Velho, em Canoas.

“Existe uma questão de racismo ambiental na cidade que está relacionado à catástrofe, essa relação de falta de lugares mais arborizados e as periferias estarem viradas em concreto, não terem praças. Se a gente for no Sarandi, que é o bairro que mais alagou [em Porto Alegre], são pouquíssimos espaços de lazer, espaços arborizados ou espaço que, de fato, as pessoas possam pensar em ações coletivas, como hortas comunitárias, uma ação popular. Não há um plano que pense a mudança desse paradigma, de construir mais espaços que possam pensar a qualidade do ar”, analisa Rafuagi.

Para ele, isso se combina de forma perversa com um negacionismo científico que predominou nas políticas públicas no estado.

Rafa Rafuagi aponta ainda negligência nos alertas de evacuação por causa de rompimento de diques, o que impediu que os moradores conseguissem salvar bens e sair das casas antes das inundações, além da falta de manutenção do sistema de prevenção nas áreas mais pobres. “Houve uma negligência, tanto da informação, da questão de alertas, de rompimento de diques. […] Há, no estado mais racista do Brasil, um negacionismo sobre a questão, de que não é investimento a questão ambiental, mas custo”.

Negritude gaúcha

Embora normalmente associado à colonização europeia branca do século 19, o Rio Grande do Sul é terra de nomes fundamentais do movimento negro, como o poeta e escritor Oliveira Silveira (1941-2009), um dos criadores do Grupo Palmares, que idealizou o dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, como o Dia da Consciência Negra, em detrimento do 13 de maio, data da Abolição da Escravidão.

E de Petronilha Silva, professora porto-alegrense, relatora no Conselho Nacional de Educação do projeto que tornou obrigatória o ensino de história e cultura afro-brasileira nos currículos das instituições de educação básica, com a edição da Lei 10.639, em 2003, até hoje não plenamente cumprida.

Na história da construção do próprio estado, foram pretos escravizados que compuseram a lendária infantaria dos Lanceiros Negros, que formou parte do exército gaúcho na Revolução Farroupilha, mas que mais tarde acabaram sendo chacinados em uma emboscada preparada pelo exército imperial comandando por Duque de Caxias. Muitos historiadores vinculam o massacre dos Porongos, como ficou conhecida a emboscada, a uma ação orquestrada em acordo com o chefe militar dos farrapos, David Canabarro, o que facilitou um acordo de paz entre a elite rio-grandense e o Império.   

“É fundamental que haja um processo de oportunizar que a história do negro do Rio Grande do Sul possa ganhar escala nacional, uma evidência mais forte. Porque isso, inclusive, gera um processo inverso que os brancos xenofóbicos racistas gaúchos fazem com o Norte e Nordeste. Por exemplo, agora, com a enchente, tinha muita gente falando: ‘ah, por que ajudar o Sul? O Sul só tem branco, o Sul não sei o quê’. E esquecem que existem negros, um monte de terreiro de matriz africana aqui no Sul”.

“Agora, de fato, os negros não são a maioria da população no estado. Eles estão espalhados em regiões que não são, em grande parte, na área metropolitana, embora haja muitos negros na metropolitana. Esses negros estão na região sul do estado, que foi o caminho da migração durante a escravização, o porto de Rio Grande [litoral sul] como ponto de entrada. E eles ficaram mais por ali: Tapes, Camaquã, Aram Baré, Cangussu, Turuçu, Cristal, Pelotas, Rio Grande e Jaguarão. Em todas essas regiões, a população é negra, majoritariamente. Por outro lado, na região da Serra [Gaúcha], que são lugares majoritariamente mais brancos, por causa das colônias italiana e alemã, onde se assentaram e tiveram seus privilégios, não são tão habitadas por negros”, explica o rapper.

Afroturismo

Rafuagi prevê a retomada da programação normal do Museu da Cultura Hip Hop já na próxima semana. Até e eclosão das enchentes, o espaço recebia um média de 1 mil visitantes por semana, a maioria estudantes do ensino básico. Com cerca de 4 mil metros quadrados, o espaço conta com a exibição de mais de 500 artefatos, painéis e arquivos digitais que contextualizam a história do hip hop no estado, no Brasil e no mundo. Além disso, na área externa, há quadra, um multipalco, sala de oficinas e uma horta que produz frutas e hortaliças doadas para comunidades.

 Museu da Cultura Hip Hop do Rio Grande do Sul recebe 1 mil visitantes por semana. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

A equipe do museu agora pretende dar andamento a um projeto que prevê a estruturação de um roteiro turístico de cultura negra em Porto Alegre, em parceria com a Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur).

“Esse afroturismo busca conectar pontos de memória ou ação prática do movimento negro, em todo o Brasil, para que as pessoas quando vierem aqui não irem apenas a Gramado, um lugar branco e europeu. Virem no Museu do Hip Hop, irem no galpão cultural no Morro da Cruz, na casa do Hip Hop em Esteio, irem lá no pavilhão eco sustentável na Restinga, que é um bairro periférico daqui”, propõe o MC gaúcho.

Sesc Quitandinha recebe mostra Dos Brasis dedicada à produção negra

A mostra Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro, a mais abrangente exposição dedicada exclusivamente à produção de artistas negros, reúne obras de 240 artistas. Depois de passar sete meses em São Paulo, com mais de 130 mil visitantes, a exposição chega ao Rio de Janeiro e será instalada no Centro Cultural Sesc Quitandinha, em Petrópolis, na região serrana. Com abertura marcada para o dia 3 de maio, a mostra receberá visitantes até 27 de outubro.

Resultado de um trabalho desenvolvido pelo Serviço Social do Comércio (Sesc) em todo o país, a mostra conta com sete núcleos temáticos, reunindo artistas de todos os estados do Brasil, sob curadoria de Igor Simões, em parceria com Lorraine Mendes e Marcelo Campos. A exposição traz obras em diversas linguagens artísticas como pintura, fotografia, escultura, instalações e videoinstalações, produzidas desde o fim do século 18 até o século 21.

A exposição chega na íntegra ao Centro Cultural Sesc Quitandinha. As 314 obras que estavam em exibição no Sesc Belenzinho vão ocupar os salões da área monumental do histórico edifício, que em 2024 completa 80 anos. Parte dos trabalhos, alguns inéditos, também serão expostos pela primeira vez na área externa e no lago em frente à unidade. A mostra vai ainda oferecer ao público uma programação paralela com ações em mediação cultural e atividades educativas, além de um programa público composto de debates e palestras com convidados.

 

Dos Brasis é a maior exposição de artistas negros já feita no país  Foto: Divulgação/SESC

Segundo o curador Igor Simões, um dos principais pontos que essa exposição discute é a necessidade de se levar em consideração que qualquer debate sobre arte brasileira terá de passar pela arte produzida por 57% da população do país.

“O fato de nós lidarmos que essa exposição esteja acontecendo em 2024 é, ao mesmo tempo, motivo de celebração e de consternação. Estabelecer a centralidade do debate da arte afro-brasileira para qualquer discussão que seja feita dentro de uma ideia de arte no Brasil é um dos grandes objetivos dessa exposição. É inegável que as pessoas que formam a maioria do Brasil querem se ver, querem ver o que elas têm entregado ao mundo em termos de pensamento artístico, estético, de diferentes linguagens”, disse o curador.

Para se chegar a esse expressivo número de artistas negros, presentes em todo o território nacional, foram abertas duas frentes. Na primeira, foram realizadas pesquisas in loco em todas as regiões do Brasil com a participação do Sesc em cada estado, com o objetivo de trazer a público vozes negras da arte brasileira. Essas ações desdobraram-se em atividades e programas como palestras, leituras de portfólio, exposições, entre outros. Esse processo teve uma atenção especial para que não se limitasse apenas às capitais do país, englobando também a produção artística da população negra de diversas localidades, como cidades do interior e comunidades quilombolas.

A segunda frente foi a realização de um programa de residência artística online intitulado Pemba: Residência Preta, que contou com mais de 450 inscrições e selecionou 150 residentes. De maio a agosto de 2022, os integrantes foram orientados por Ariana Nuala (PE), Juliana dos Santos (SP), Rafael Bqueer (PA), Renata Sampaio (RJ) e Yhuri Cruz (RJ). A Residência, que reuniu artistas, educadores e curadores/críticos, contou ainda com uma série de aulas públicas.

Mulheres sambistas lançam livro-disco infantil com protagonista negra

Uma menina de 4 anos, chamada de Flor de Maria, que vive aventuras mágicas embaixo da mesa da roda de samba, e descobre um mundo cheio de cores, sons e sensações diferentes. Uma experiência que a conecta com uma expressão cultural e comunitária ancestral. Esse é o enredo do disco-livro É Pretinha, lançado nesta semana pela editora Rubra.

As autoras são Marina Iris e Manu da Cuíca, com ilustrações de Tétiiz e produção musical de Ana Costa. O objetivo das autoras era celebrar o samba e a infância. E, ao misturar livro e músicas, permitir que os leitores mergulhassem em um cenário mais vibrante e sensorial.

As músicas podem ser ouvidas no Spotify e YouTube gratuitamente.

Uma das autoras, Marina Iris, explica que se inspirou em ambientes comuns do subúrbio para criar a história de É Pretinha.

“Quando idealizei o É Pretinha, pensei em trazer para a literatura infantil o contexto de samba, subúrbio, quintal, família e ancestralidade. Queria que tudo estivesse presente de forma natural e poética, inspirada na infância cheia de abstração e poesia”, disse Marina Iris.

Outra autora, Manu da Cuíca, revela que a história traz elementos pessoais do passado e do presente.

“Contar uma história após me tornar mãe se tornou um rito de intimidade e carinho, onde entrelaço minha infância na da minha filha. Eu, Ana e Marina conversamos muito sobre essa dimensão das histórias antes de começarmos a criar”, disse Manu da Cuíca.