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Mães lutam por justiça aos filhos soterrados pela mineração

“Foram 20 mortos”, protesta Priscila Monteiro Izabel. Ela faz referência às vidas perdidas no rompimento da barragem da mineradora Samarco, em 2015. O colapso da estrutura gerou uma avalanche de lama que se iniciou no município de Mariana (MG) e gerou danos em dezenas de municípios ao longo da bacia do Rio Doce. Corpos de 18 pessoas foram resgatados. Considerando ainda um desaparecido que não foi encontrado, a mineradora reconheceu 19 mortos.

Priscila, no entanto, estava grávida. Arrastada pela lama, ela perdeu o bebê e briga na Justiça para que ele seja reconhecido como vítima. Passados mais de oito anos, a dor da perda ainda impacta o Dia das Mães. Ela tem a companhia dos seus outros dois filhos: Kayque e Arthur que tinham na época da tragédia respectivamente 2 e 8 anos e hoje possuem 11 e 17. Mesmo assim, a lembrança do episódio é inevitável.

“Nessas datas, o Kayque sempre faz as lembrancinhas na escola. E quando ele chega e me entrega essas lembracinhas, essas cartinhas, eu fico pensando que se meu bebê estivesse vivo, ele estaria com 8 para 9 aninhos. E eu estaria ganhando duas lembrancinhas, duas cartinhas. Me faz muita falta. E também faz muita falta para o Kayque, porque eles teriam pouca diferença de idade”, lamenta. Procurada pela Agência Brasil, a Samarco informou que não fará comentários sobre o assunto.

A tragédia ocorreu no dia 5 de novembro de 2015. Era para ser um dia especial para Priscila: seu aniversário. Ela também vivia a expectativa de uma revelação importante. “Tinha feito uma consulta de pré-natal uns dias antes e o médico falou assim: ‘Vou te dar um presente de aniversário. Seu ultrassom está marcado para o dia 6 e provavelmente vai dar pra ver o sexo do bebê’. Ela já tinha nomes em mente: se fosse menina se chamaria Arunna e se fosse menino Abnner. Junto com o então marido, já tinham comprado algumas roupinhas unissex e estavam buscando o berço.

Memórias vívidas

O terror que viveu naquele dia é relatado de forma muito vívida e emotiva por Priscila. Ela estava assistindo televisão em sua casa no distrito de Bento Rodrigues, comunidade que foi destruída. Passava o dia com seu filho Kayque e também com seu irmão e seus dois sobrinhos: Nicolas, então com 3 anos, e Emanuele, que perdeu sua vida aos 5 anos.

“A Manu entrou e falou comigo assim: ‘deixa o Kayque brincar comigo e com o Nicolas?’. Eu respondi: ‘Manu, Kayque está dormindo. Vem cá para você ver’. Ela entrou no quarto, viu ele dormindo e saiu. E aí eu falei: ‘Hoje é aniversário da titia. Você não vai dar um beijo na titia não?’ Ela perguntou: ‘vai ter bolo?’. Eu falei que não, que bolo era só nos aniversários dos pequenininhos. Ela me abraçou, me deu um beijo e saiu correndo para brincar. Passou mais ou menos meia hora, eu escutei um estrondo”, relembra com a voz embargada.

Priscila e seu filho Kayque em foto tirada após terem alta do hospital Foto: Priscila Izabel/Arquivo Pessoal

Ao ouvir seu irmão gritar que a barragem tinha estourado, ela pegou Kayque e saiu para fora, mas não houve tempo suficiente para que eles alcançassem um lugar seguro. Arrastada, Priscila seria posteriormente salva por um motorista de ônibus, que a avistou e arriscou a própria vida para tirá-la de dentro da lama. Seu filho, que havia sido levado para longe dela, foi resgatado por meio de uma corrente humana realizada por moradores de Bento Rodrigues.

“Quando saí, vi uma imensa poeira. Meu irmão estava na porta da casa da frente, com Nicolas no colo e segurando a mão da Manu. Eu fui até lá e nós entramos. Quando eu olhei para baixo, a lama já tava chegando no joelho do meu irmão e as paredes da casa estava tombando em cima da gente. Eu falei para Manu: ‘segura na roupa de titia’. E aí a onda de lama veio. E eu fiquei sozinha no meio do nada, sendo levada e tomando pancadas. Senti uma forte dor pélvica e veio um calafrio. Doía muito. Eu pedia a Deus para salvar o meu filho”, relata.

Priscila precisou ser levada de helicóptero para o Hospital João XXIII, em Belo Horizonte. O diagnóstico do aborto foi confirmado no dia seguinte. Levou semanas para ter alta e ficou com uma cicatriz no rosto que hoje lhe causa constrangimento. Ela conta que evita tirar fotos em que a marca apareça. Resgatados, seu irmão, seu sobrinho Nicolas e seu filho Kayque também foram hospitalizados. O corpo de Emanuele foi achado cinco dias depois. Internada, Priscila ficou recebeu a notícia em uma ligação telefônica com o irmão. “Eu só joguei o telefone no chão, comecei a gritar e os médicos vieram e me sedaram”.

‘Eles não têm amor’

A Samarco reconheceu Priscila como vítima, mas não o bebê que ela gerava na barriga. A mineradora ofereceu um acordo sem margem para negociação. Ela avalia que os valores não reparam os danos sofridos, mas se viu sem saída e acabou aceitando. Antes de ingressar com ação judicial em busca de reparação para seu filho, ela apresentou laudos médicos e exames à Samarco. Segundo conta, ouviu que o bebê não poderia ser reconhecido como vítima porque não havia uma Declaração de Nascido Vivo, documento que a maternidade deve emitir após o nascimento para que os pais possam efetuar o registrar em cartório. “Eles não sabem o que é amor. Eles não têm amor. Só tem amor ao dinheiro”, se revolta.

O caminho judicial foi aconselhado por um promotor do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). Foi então que ela procurou um advogado. “Enquanto eu respirar nessa Terra, eu vou lutar por justiça. Creio que ela vai chegar. Aquilo que entregamos nas mãos de Deus, a gente pode confiar. Eu tenho fé que Deus vai fazer justiça”, acrecenta. Ela lamenta que ninguém tenha sido preso. Em 2016, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou 22 pessoas por diversos crimes. Para 21 delas, foi imputado o crime de homicídio qualificado. Além de integrantes da alta cúpula da Samarco, foram incluídos membros do Conselho de Administração da mineradora que foram nomeados pelas duas acionistas: Vale e BHP Billiton.

No entanto, em 2019, uma decisão da Justiça Federal beneficiou os réus. Foi determinado o trancamento da ação penal para o crime de homicídio. Prevaleceu a tese de que os indícios incluídos na denúncia apontavam as mortes como consequências do crime de inundação. Além disso, ao longo do tempo, foram concedidos habeas corpus a alguns acusados. Os sete que permanecem como réus no processo respondem apenas por crimes ambientais. Priscila critica o andamento do processo criminal: considera que a impunidade tem relação com o poder econômico dos acusados. “Falaria isso na frente dos juízes”, afirma.

Brincalhão aos 33

É também a dor da perda que impulsiona a luta de Jacira Francisca Costa. Seu filho perdeu a vida em outra tragédia envolvendo rompimento de barragem. Ela trabalhava na Vale em Brumadinho (MG) e foi soterrado pela avalanche de rejeitos que se formou após a ruptura que ocorreu no dia 25 de janeiro de 2019. Thiago Matheus Costa foi um dos 272 mortos no episódio, segundo a conta da Associação dos Familiares das Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem em Brumadinho (Avabrum), que inclui os bebês de duas mulheres que morreram grávidas.

“Ele era um menino muito amável. Eu sinto muita falta dele porque todos os domingos ele vinha aqui em casa. Já tinha 33 anos, mas não deixava de ser um menino brincalhão, sorridente, nada estava ruim para ele. Ele tinha uma deficiência na perna e no braço e isso não era empecilho para ele. Ele limpava o carro do pai dele, cortava o cabelo do pai dele. Ele era muito prestativo, um menino muito bom de coração”, conta Jacira.

O corpo de Thiago foi encontrado quatro dias após a tragédia. Ele era o mais velho dos seis filhos de Jacira. Ela diz que sua ausência abala a todos. “O sorriso dele, as brincadeiras dele enchiam a casa. Era muito amável com todo mundo. A gente passeava, ia para a casa dos tios, almoçava, brincava, jogava peteca, jogava bola. É muita tristeza porque o Tiago sempre trazia uma lembrancinha. Hoje em dia, o Dia das Mães virou um dia mais monótono, um dia sem aquela alegria, sem aquele almoço grande com as brincadeiras que ele fazia. Nesses dias, a gente lembra o quanto ele faz falta”.

Jacira e seu filho Thiago quando ele tinha 10 anos de idade Foto: Jacira Costa/Arquivo Pessoal

Mulheres na linha de frente

Moradora de Betim (MG), há 25 quilômetros de Brumadinho, Jacira integra hoje a direção da Avabrum. Dos 11 integrantes da entidade e do seu conselho fiscal, nove são mulheres. Elas estão na linha de frente da luta para fazer justiça às mortes de maridos, pais, irmãos e outros entes queridos. Além de Jacira, outras duas choram pela saudade de um filho.

“Eu passei a buscar forças quando eu descobri que era um crime, que eles sabiam e não tiraram os meninos de lá. Foi uma morte cruel, ninguém merece morrer daquele jeito. Mas aqui em Betim, eu percebia que ninguém sentia o mesmo que eu. Então decidi ir para Brumadinho, me unir às meninas, e achei também um pouquinho de força lá. Estava no meio de quem estava sentindo o mesmo que eu”.

No processo criminal, foram denunciadas 16 pessoas. O MPF sustenta que houve um conluio entre a Vale e Tüv Süd, consultoria alemã que assinou o laudo de estabilidade da barragem. Conforme a acusação, ambas as empresas tinham conhecimento da situação crítica da estrutura, mas não compartilharam as informações com o poder público e com a sociedade e assumiram os riscos. A denúncia também chama atenção que, em uma eventual tragédia, o tempo disponível para a evacuação de instalações administrativas e do refeitório da mina de Vale era de apenas um minuto. A ruptura ocorreu no horário de almoço, às 12h28.

Jacira afirma que a Avabrum está determinada a preservar a memória dos que se foram, e não deixará que o episódio caia no esquecimento. Um memorial, que será gerido por familiares das vítimas, foi erguido em um terreno de nove hectares. A entidade também vem se mobilizando para cobrar pela responsabilização criminal. Manifestações foram realizadas nos últimos meses contra a concessão de um habeas corpus que excluiu do processo o ex-presidente da Vale, Fábio Schvartsman. A Justiça Federal entendeu que a denúncia não reunia indícios de atos ou omissões dele que tenham levado ao colapso da barragem. O MPF recorre da decisão e considera que há provas suficientes de que ele sabia dos riscos de rompimento.

“Enquanto a gente tiver força, enquanto a gente tiver vida, nós vamos lutar. Quanto mais saudade, mais a gente a gente luta. Não é fácil. Nada repara uma vida. Nada repara o que a gente passa nada. Nada repara tudo que nós perdemos. A gente não tem uma vida tranquila como tínhamos. Eu estou tendo força para lutar, mas tem mãe que não consegue ficar de pé, que está na cama. Tem mãe que teve AVC, tem mãe que já até morreu”, lamenta Jacira.

Israel e Hamas lutam em Gaza enquanto consideram novo cessar-fogo temporário

1 de fevereiro de 2024

 

Israel disse na quinta-feira que suas tropas lutaram contra militantes do Hamas em toda a Faixa de Gaza, matando dezenas de combatentes no centro e norte de Gaza, enquanto ataques aéreos israelenses atingiram Khan Younis na parte sul da faixa.

Os combates continuaram enquanto os negociadores de uma proposta de novo cessar-fogo esperavam para ouvir sobre o progresso na obtenção de um acordo entre Israel e o Hamas que traria uma interrupção de curto prazo nos combates e a libertação dos prisioneiros detidos pelo Hamas em Gaza.

O esboço da proposta surgiu de conversações em Paris entre autoridades dos EUA, Israel, Catar e Egípcio no início desta semana. Esperava-se que o líder do Hamas, Ismail Haniyeh, viajasse ao Cairo para discutir o plano.

Questionado sobre os detalhes da proposta durante um briefing na quarta-feira na Casa Branca, o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, John Kirby, disse que nenhuma peça será definitiva até que o acordo em si seja finalizado.

“Direi a vocês que, em linhas gerais, o objetivo é que uma pausa prolongada seja”, disse Kirby aos repórteres. “Quanto tempo? Tudo isso faz parte das discussões, mas é mais longo do que vimos em novembro, que durou cerca de uma semana.”

 

Quilombolas lutam por melhorias nos serviços públicos

Mesmo após a titulação, a comunidade quilombola da Ilha da Marambaia, em Mangaratiba, no Rio de Janeiro, visitada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda espera melhorias em serviços públicos como educação, saúde e transporte. Localizada em uma ilha, a comunidade enfrenta também diretamente os efeitos da crise climática. Com o avanço do mar em direção à orla, o risco de alagamento de casas é cada vez maior.

Durante a visita de Lula, nesta quarta-feira (3), a presidente da Associação da Comunidade dos Remanescentes de Quilombo da Ilha da Marambaia, Jaqueline Alves, entregou ao presidente uma carta contando a trajetória da comunidade, os avanços conquistados e, também, trazendo as principais demandas locais. “Na realidade, a gente está tratando [de] direitos que ainda precisam ser conquistados para que a comunidade continue crescendo e permanecendo no território. Para que haja avanço e não haja a extinção da comunidade futuramente. Porque a tendência é as pessoas saírem para trabalhar, estudar, se formar. Se a gente consegue trazer essas políticas públicas para o território, a gente também consegue fazer com que a comunidade permaneça, cresça e se desenvolva”, defende.  

A comunidade abriga hoje, de acordo com Jaqueline Alves, 210 famílias, em um total de aproximadamente 440 moradores. A principal atividade é a pesca. Entre as principais demandas está a oferta do ensino médio na ilha, que hoje atende apenas até o ensino fundamental. Com isso, os jovens precisam se deslocar para seguir estudando. Além disso, melhorias no transporte, que é insuficiente para a demanda, e caro. A comunidade também pede melhorias na saúde e melhores condições de trabalho e renda.

A Ilha da Marambaia foi um local de abrigo de negros traficados da África para o Brasil. Além da herança quilombola, a ilha abriga equipamentos militares desde a década de 1970, quando passou a ser controlada pelas Forças Armadas. Somente em 2015, o título de posse da terra da comunidade da Marambaia foi concedido. Isso ocorreu 13 anos depois do início da ação civil pública que pediu o reconhecimento da comunidade, em 2002. Entre 1996 e 1998, a comunidade foi alvo de ações de reintegração de posse movidas pela União para retirar as famílias. No final de 2014, a Marinha e a comunidade assinaram o termo de ajustamento de conduta (TAC) que encerrou as disputas na Justiça.

“O TAC regulamentou muita coisa, porém, não é o final dos problemas, a gente vira uma página e inicia outra página, para a implementação de políticas públicas no território, melhoria dos serviços de saúde, melhoria na área de educação, na área econômica”, diz Jaqueline Alves.

Mudanças climáticas

Além da demanda por serviços públicos, a comunidade enfrenta uma nova questão, as mudanças climáticas. “A gente está dentro de uma ilha e a gente não consegue mensurar de que forma vão se dar os fenômenos da natureza. Existe um avanço da maré que é muito comum em áreas de ilhas, e a gente está sofrendo com isso. Existe uma casa que precisa sair de onde está”, conta a presidente, que diz que o problema não existia há nove anos atrás quando o TAC foi assinado, o que mostra que revisões são necessárias.

“Na realidade, essa questão territorial a gente não vê que está totalmente resolvida porque vai passar por várias situações que vai ter que alinhar novamente e ajustar para que a comunidade permaneça no território, a gente vai ter que estar dialogando sempre sobre a questão territorial”, ressalta, Alves. Segundo ela, a comunidade se articula com a União e outros órgãos como o Ministério Público para buscar formas de garantir os direitos à população local.

Acesso a políticas públicas

Segundo o secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana Povos de Terreiros e Ciganos do Ministério da Igualdade Racial, Ronaldo dos Santos, o problema do acesso a políticas públicas não se restringe apenas ao quilombo de Marambaia.

“O Estado brasileiro construiu, a partir da Constituição de 1988, uma política de regularização fundiária, mas não construiu uma política de desenvolvimento, de acompanhamento desses territórios que serão regularizados”, diz e acrescenta: “Nunca se teve, de verdade, uma estratégia do Estado brasileiro de fazer investimento, política de reparação ou política de desenvolvimento.”  

Em busca de oferecer subsídios para que as comunidades possam ter acesso a políticas públicas e tracem os próprios planos de desenvolvimento, o governo federal lançou, em novembro de 2023, a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola – PNGTAQ. “Para nós, é esse olhar do Estado para o território quilombola, no sentido de perceber uma demanda para além da questão agrária, para além da questão da propriedade, mas para como esse povo se desenvolve a partir da sua cosmopercepção, a partir dos seus parâmetros, como o Estado contribui e fomenta o processo de gestão de conservação ambiental de desenvolvimento local”, diz Santos.

A política começou a ser implementada de forma piloto em uma comunidade em Alcântara (MA). De acordo com o secretário, a pasta ainda busca recursos e cooperações e deverá lançar editais para selecionar outras comunidades para serem beneficiadas.

De acordo com a Fundação Palmares, comunidades remanescentes de quilombos são oriundas daquelas que resistiram à brutalidade do regime escravocrata e se rebelaram frente a quem acreditava serem elas sua propriedade.

Essas comunidades se adaptaram a viver em regiões por vezes hostis. Porém, mantendo suas tradições culturais, aprenderam a tirar seu sustento dos recursos naturais disponíveis, ao mesmo tempo em que se tornaram diretamente responsáveis por sua preservação, interagindo com outros povos e comunidades tradicionais tanto quanto com a sociedade envolvente.

O Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostra que, no Brasil, a população quilombola é de 1.330.186 pessoas, ou 0,66% do total de habitantes. A proporção de pessoas vivendo fora de territórios quilombolas oficialmente reconhecidos é de 87,39% (1,07 milhão).

“Eu costumo dizer que regularizar território quilombola e financiar esse processo de desenvolvimento tem muitos aspectos em jogo. Primeiro, precisa pensar na democratização do acesso à terra no Brasil. É mesmo uma política de reforma agrária complementar, podemos dizer assim. Mas podemos pensar no olhar da reparação histórica ao tempo da escravidão. São comunidades que estão aqui por conta do que foi a escravidão, e o Estado brasileiro não pode dizer que não é problema seu, então precisa assumir esse ônus. Também é preciso compreender os serviços ambientais que essas comunidades prestam em termos de emergência climática. Não é possível pensar justiça climática sem pensar na contribuição histórica que essas comunidades dão para a conservação ambiental”, destaca Santos. 

Quilombolas lutam por melhorias nos serviços públicos

Mesmo após a titulação, a comunidade quilombola da Ilha da Marambaia, em Mangaratiba, no Rio de Janeiro, visitada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda espera melhorias em serviços públicos como educação, saúde e transporte. Localizada em uma ilha, a comunidade enfrenta também diretamente os efeitos da crise climática. Com o avanço do mar em direção à orla, o risco de alagamento de casas é cada vez maior.

Durante a visita de Lula, nesta quarta-feira (3), a presidente da Associação da Comunidade dos Remanescentes de Quilombo da Ilha da Marambaia, Jaqueline Alves, entregou ao presidente uma carta contando a trajetória da comunidade, os avanços conquistados e, também, trazendo as principais demandas locais. “Na realidade, a gente está tratando [de] direitos que ainda precisam ser conquistados para que a comunidade continue crescendo e permanecendo no território. Para que haja avanço e não haja a extinção da comunidade futuramente. Porque a tendência é as pessoas saírem para trabalhar, estudar, se formar. Se a gente consegue trazer essas políticas públicas para o território, a gente também consegue fazer com que a comunidade permaneça, cresça e se desenvolva”, defende.  

A comunidade abriga hoje, de acordo com Jaqueline Alves, 210 famílias, em um total de aproximadamente 440 moradores. A principal atividade é a pesca. Entre as principais demandas está a oferta do ensino médio na ilha, que hoje atende apenas até o ensino fundamental. Com isso, os jovens precisam se deslocar para seguir estudando. Além disso, melhorias no transporte, que é insuficiente para a demanda, e caro. A comunidade também pede melhorias na saúde e melhores condições de trabalho e renda.

A Ilha da Marambaia foi um local de abrigo de negros traficados da África para o Brasil. Além da herança quilombola, a ilha abriga equipamentos militares desde a década de 1970, quando passou a ser controlada pelas Forças Armadas. Somente em 2015, o título de posse da terra da comunidade da Marambaia foi concedido. Isso ocorreu 13 anos depois do início da ação civil pública que pediu o reconhecimento da comunidade, em 2002. Entre 1996 e 1998, a comunidade foi alvo de ações de reintegração de posse movidas pela União para retirar as famílias. No final de 2014, a Marinha e a comunidade assinaram o termo de ajustamento de conduta (TAC) que encerrou as disputas na Justiça.

“O TAC regulamentou muita coisa, porém, não é o final dos problemas, a gente vira uma página e inicia outra página, para a implementação de políticas públicas no território, melhoria dos serviços de saúde, melhoria na área de educação, na área econômica”, diz Jaqueline Alves.

Mudanças climáticas

Além da demanda por serviços públicos, a comunidade enfrenta uma nova questão, as mudanças climáticas. “A gente está dentro de uma ilha e a gente não consegue mensurar de que forma vão se dar os fenômenos da natureza. Existe um avanço da maré que é muito comum em áreas de ilhas, e a gente está sofrendo com isso. Existe uma casa que precisa sair de onde está”, conta a presidente, que diz que o problema não existia há nove anos atrás quando o TAC foi assinado, o que mostra que revisões são necessárias.

“Na realidade, essa questão territorial a gente não vê que está totalmente resolvida porque vai passar por várias situações que vai ter que alinhar novamente e ajustar para que a comunidade permaneça no território, a gente vai ter que estar dialogando sempre sobre a questão territorial”, ressalta, Alves. Segundo ela, a comunidade se articula com a União e outros órgãos como o Ministério Público para buscar formas de garantir os direitos à população local.

Acesso a políticas públicas

Segundo o secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana Povos de Terreiros e Ciganos do Ministério da Igualdade Racial, Ronaldo dos Santos, o problema do acesso a políticas públicas não se restringe apenas ao quilombo de Marambaia.

“O Estado brasileiro construiu, a partir da Constituição de 1988, uma política de regularização fundiária, mas não construiu uma política de desenvolvimento, de acompanhamento desses territórios que serão regularizados”, diz e acrescenta: “Nunca se teve, de verdade, uma estratégia do Estado brasileiro de fazer investimento, política de reparação ou política de desenvolvimento.”  

Em busca de oferecer subsídios para que as comunidades possam ter acesso a políticas públicas e tracem os próprios planos de desenvolvimento, o governo federal lançou, em novembro de 2023, a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola – PNGTAQ. “Para nós, é esse olhar do Estado para o território quilombola, no sentido de perceber uma demanda para além da questão agrária, para além da questão da propriedade, mas para como esse povo se desenvolve a partir da sua cosmopercepção, a partir dos seus parâmetros, como o Estado contribui e fomenta o processo de gestão de conservação ambiental de desenvolvimento local”, diz Santos.

A política começou a ser implementada de forma piloto em uma comunidade em Alcântara (MA). De acordo com o secretário, a pasta ainda busca recursos e cooperações e deverá lançar editais para selecionar outras comunidades para serem beneficiadas.

De acordo com a Fundação Palmares, comunidades remanescentes de quilombos são oriundas daquelas que resistiram à brutalidade do regime escravocrata e se rebelaram frente a quem acreditava serem elas sua propriedade.

Essas comunidades se adaptaram a viver em regiões por vezes hostis. Porém, mantendo suas tradições culturais, aprenderam a tirar seu sustento dos recursos naturais disponíveis, ao mesmo tempo em que se tornaram diretamente responsáveis por sua preservação, interagindo com outros povos e comunidades tradicionais tanto quanto com a sociedade envolvente.

O Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostra que, no Brasil, a população quilombola é de 1.330.186 pessoas, ou 0,66% do total de habitantes. A proporção de pessoas vivendo fora de territórios quilombolas oficialmente reconhecidos é de 87,39% (1,07 milhão).

“Eu costumo dizer que regularizar território quilombola e financiar esse processo de desenvolvimento tem muitos aspectos em jogo. Primeiro, precisa pensar na democratização do acesso à terra no Brasil. É mesmo uma política de reforma agrária complementar, podemos dizer assim. Mas podemos pensar no olhar da reparação histórica ao tempo da escravidão. São comunidades que estão aqui por conta do que foi a escravidão, e o Estado brasileiro não pode dizer que não é problema seu, então precisa assumir esse ônus. Também é preciso compreender os serviços ambientais que essas comunidades prestam em termos de emergência climática. Não é possível pensar justiça climática sem pensar na contribuição histórica que essas comunidades dão para a conservação ambiental”, destaca Santos.