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Conceição Tavares: economistas apontam legado para repensar Brasil

Maria da Conceição Tavares, morreu nesse sábado (8) aos 94 anos, permanecerá como pensadora fundamental para entender o Brasil, a partir de meados do século passado quando vem morar no país.

Mulher com compromisso político e extenso conhecimento sobre filosofia, história e realidade nacional, era uma intelectual combativa e professora exigente. Ao mesmo tempo era pessoa delicada e afetuosa com seus alunos e com seus colegas – mesmo de quem discordasse.

 Luiz Gonzaga Belluzzo: “Pessoa calorosa e muito inteligente” – Marcelo Camargo/Agência Brasil

O perfil da principal economista brasileira, de origem lusitana e naturalizada brasileira em 1957, foi desenhado por colegas e ex-alunos de Tavares ouvidos pela Agência Brasil.

“Ela era amiga dos amigos. Uma pessoa calorosa e muito inteligente”, recorda-se o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e colega de trabalho Maria Conceição Tavares por 20 anos naquela universidade.

De acordo com Belluzzo, a economista “sempre foi inquieta e discutia com muita intensidade.” Nos debates, usava a divergência para suplantar as controvérsias. “No final, dava um salto. Discordava para avançar no conhecimento.”

Nota 10

Conhecer, assim como ensinar, foi um propósito de vida de Conceição Tavares. Matemática formada pela Universidade de Lisboa chegou ao Brasil em 1954. Três anos depois, matriculou-se no curso de Economia da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde foi aluna de Otávio Gouveia de Bulhões e de Roberto Campos, dois economistas que comandaram anos depois, no início da ditadura civil-miliar, os ministérios da Fazenda e do Planejamento, respectivamente.

Segundo Maria da Conceição Tavares, apesar de discordar dos dois professores, ganhou “10” de ambos. Bulhões a deixava “dizer o que quisesse”; e Roberto Campos, que “a chateava nas aulas por causa da inflação, prezava muito a inteligência analítica”, disse a economista em depoimento publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) quando fez 80 anos, em 2010.

Outro ex-ministro da Fazenda durante a ditadura, e economista de matiz liberal, Mário Henrique Simonsen, também a respeitava. Em novembro de 1974, quando Conceição Tavares foi presa pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em quartel do Exército no bairro da Tijuca, zona norte do Rio, Simonsen pediu diretamente ao então presidente Ernesto Geisel a sua libertação.

Para Alfredo Saad-Filho, professor de Economia Política e Desenvolvimento Internacional na King’s College de Londres, Conceição Tavares foi de uma “geração de economistas brilhantes e influentes” e responsável pela formação de quadros importantes. “Uma árvore que gerou muitos economistas, inclusive dirigentes importantes e ministros de Estado.”

Séquito de admiradores 

Cláudio de Moraes, professor de Macroeconomia e Finanças do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Coppead) da UFRJ, recorda-se que Maria da Conceição Tavares era “extremamente culta”, “se posicionava de maneira clara”, e “tinha um séquito de alunos admiradores”.

 Conceição Tavares foi de uma “geração de economistas brilhantes e influentes”, diz Alfredo Saad-Filho, professor de Economia Política e Desenvolvimento Internacional na King’s College de Londres. Foto:  Fernando Frazão/Agência Brasil

Em sua avaliação, “ela permanece influente até hoje”, especialmente junto aos economistas que defendem a “proteção do mercado doméstico” e a necessidade de o país contar com grandes corporações para competir no mercado internacional.

“Com o passar do tempo, ela assumiu uma postura mais política”, acrescenta Gilberto Braga, professor titular de controladoria e contabilidade do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibemec).

A atuação política foi coerente com a atividade acadêmica. “Ela sempre defendeu o papel do Estado como indutor do desenvolvimento e da despesa pública como fator de geração de riqueza econômica. Ela se contrapunha ao pensamento mais liberal que defende um equilíbrio fiscal mais rígido”, assinala Braga que teve Conceição Tavares patrona de sua turma na Universidade Cândido Mendes.

Para ele, Maria da Conceição Tavares escreveu alguns livros obrigatórios para a formação de economistas brasileiros, como Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro.

A professora Maria Malta, que leciona sobre história do pensamento econômico na UFRJ, acrescenta Acumulação de Capital e Industrialização no Brasil e Poder e Dinheiro. Uma Economia Política da Globalização, escrito em parceria com o economista Jose Fiori entre os livros fundamentais.

Na opinião de Malta, que assessorou Conceição Tavares quando foi deputada (1995 1998), a economista mantinha em seus livros, aulas e posicionamentos públicos “o compromisso de transformar o Brasil e melhorar a vida dos mais pobres, a quem se referia como aqueles que pagam a conta.”

Influências teóricas

Segundo Maria Malta, Conceição Tavares teve como influências teóricas o pensamento dos brasileiros Celso Furtado e Ignácio Rangel, do britânico John Maynard Keynes, do alemão Karl Marx e do polonês Michal Kalecki, fontes para compor “uma teoria que desse conta do subdesenvolvido brasileiro”, um pensamento “que não está superado.”

Os depoimentos colhidos pela Agência Brasil também recordam da performance de Maria da Conceição Tavares em sala de aula. “O fato de ela ser apaixonada pelos temas de economia fazia com que ela também tivesse atitudes pouco usuais em aula. Quando havia alguém que fazia perguntas que mostravam desconhecimento do que ela estava falando, do que tinha acabado de falar, ela jogava um giz no estudante”, rememora rindo o ex-aluno Pedro Russi, hoje livre-docente do Instituto de Economia da Unicamp.

Na lembrança de Russi, Maria da Conceição Tavares “preparava muito as aulas” e sempre “se preocupava com o que iria lecionar. Ela era brilhante.”

Para a professora Maria Malta, Conceição Tavares assumia uma persona em sala de aula. “Mas no trato pessoal – por exemplo, nos jantares ou nas conversas ela chamava para o escritório que tinha no Leme -, ela era delicada e afetuosa.”

Legado dentro e fora da pista mantém Senna eterno, 30 anos após morte

Domingo, 1º de maio de 1994. Grande Prêmio de San Marino de Fórmula 1. Autódromo Internacional Enzo e Dino Ferrari, em Ímola (Itália). Na sétima volta, precisamente às 9h13, pelo horário de Brasília, Ayrton Senna perde o controle da Williams que pilotava e bate violentamente no muro da curva Tamburello. O choque é fatal. O corpo do brasileiro é levado de helicóptero para o Hospital Maggiore, em Bolonha, onde o piloto teve a morte anunciada, aos 34 anos.

Nesta quarta-feira (1º), completam-se três décadas do fatídico dia. No Parco delle Acque Minerali, próximo ao circuito, onde ficava a Tamburello, uma escultura de bronze presta reverência a Senna. Inaugurada em 1º de maio de 2014, em festival que marcou os 20 anos da morte, ela é visitada por fãs de todos os cantos, que se aproximam para tocar, fotografar ou prestar homenagens, como fez um admirador no último dia 21 de abril ao deixar um capacete especial ao lado da estátua do ídolo.

Esse admirador é um dos brasileiros que disputam o Campeonato Mundial de Endurance (WEC, na sigla em inglês), categoria do automobilismo voltada a provas de longa duração. E é emblemático que o carioca Nicolas Costa, de 32 anos, pilote um carro da equipe McLaren, a mesma pela qual Senna conquistou seus três títulos na Fórmula 1 (em 1988, 1990 e 1991).

“Quando a gente pensa em Senna, pensa em McLaren automaticamente. Quando assinei contrato e estive na McLaren, vi o carro do Senna. Isso tudo traz uma emoção sobre o que você está fazendo e também uma responsabilidade”, afirmou Nicolas, que tinha quatro anos quando o tricampeão faleceu.

Se Nicolas pouco acompanhou Senna ao vivo, Cacá Bueno não somente o viu correr, como conviveu com o piloto na infância. Pentacampeão da Stock Car, principal categoria do esporte a motor brasileiro, ele é filho do narrador Galvão Bueno, com quem o ídolo da Fórmula 1 tinha forte amizade.

“Costumo falar que o Ayrton era o Brasil que dava certo. Todo domingo de manhã, nós acordávamos, esperávamos o Brasil dar certo [Senna ganhar a corrida], ele levantar a bandeira do Brasil, tocar a musiquinha [o ‘Tema da Vitória’, melodia que embalava os triunfos brasileiros nas transmissões de Fórmula 1] e aí a gente saía para fazer o que precisava. Com esse orgulho de ser brasileiro, essa lição de dedicação, o Ayrton impactou até gerações que não o viram correr”, recordou Cacá.

Além da inspiração aos pilotos que o sucederam nas pistas, Senna deixou como legado, por conta da tragédia que o vitimou, mudanças nas normas de segurança do automobilismo. No fim de semana em que o brasileiro faleceu, já havia ocorrido outra morte. Um dia antes, o austríaco Roland Ratzenberger bateu no muro da curva Villeneuve a 314 quilômetros por hora e não resistiu.

“É só olhar que hoje o carro tem crash test [teste de resistência, em inglês], proteção lateral [para cabeça], o halo [estrutura em arco que fica acima do cockpit, que é a área onde fica o piloto]. Os autódromos são muito mais seguros. O piloto pode ficar mais tranquilo e as famílias também”, declarou Felipe Massa, vice-campeão de Fórmula 1 em 2008 e atualmente na Stock Car.

Fora das pistas, surgiu o Instituto Ayrton Senna. Fundada em novembro de 1994, a organização não-governamental (ONG) atua junto à educação de crianças e adolescentes do país. A iniciativa, segundo o site do instituto, leva adiante um sonho do próprio tricampeão ainda em vida. Conforme o último relatório divulgado, referente a 2022, mais de 36 milhões de estudantes e cerca de 200 mil educadores foram atendidos desde a criação da entidade.

“Ele [Senna] dizia que se a gente quiser modificar alguma coisa [na sociedade], é pelas crianças que deveríamos começar, por meio da educação. Levamos essa visão muito a sério. Um dos pensamentos do Ayrton é que todos têm potencial para vencer, desde que com as condições adequadas para isso. Nossos projetos buscam criar essas condições e remover barreiras educacionais”, explicou o vice-presidente do Instituto Ayrton Senna, Ewerton Fulini.

Fora do Brasil

Sete vezes campeão da Fórmula 1, Lewis Hamilton afirmou, em diversas ocasiões, ter Senna como sua maior referência. No último dia 24 de março, quando o brasileiro faria 64 anos, o inglês fez uma publicação no Instagram em que se referia ao ídolo como seu herói. E ele não está sozinho. Outros pilotos da principal categoria do automobilismo já manifestaram serem fãs do brasileiro, como o monegasco Charles Leclerc e o francês Pierre Gasly.

O termo com o qual Hamilton se refere a Senna é reforçado pelo jornalista e escritor italiano Leonardo Guzzo. Ele é autor do livro “Veloz como o vento”, que retrata a vida do brasileiro em forma de romance. A obra foi publicada originalmente na Itália, em dezembro de 2021, com nome “Beco”, alusivo ao apelido de infância do piloto, e será lançada no Brasil nesta quarta-feira, em São Paulo.

“Por toda a vida, Senna buscou sua própria essência e estilo. A meta dele era ser original, pois ser original é ser autêntico. E se você é autêntico, é um herói. Um exemplo é a escolha do sobrenome da mãe, ‘Senna’, ao invés do ‘da Silva’. Ele dizia que havia muitos ‘Ayrton da Silva’ no Brasil, mas só um ‘Ayrton Senna’. Outro ponto era o capacete que trazia as cores da bandeira do Brasil, mas ao mesmo tempo de uma forma original, que era dele. Por fim, seu estilo de pilotar, com energia e criatividade. Ele se adaptava a qualquer situação, principalmente à chuva”, descreveu Guzzo.

“O herói clássico representa o excesso. De alguma forma, simboliza o limite que a humanidade pode chegar. E Senna se recusava a essas limitações. Ele se pressionava ao limite, queria ser a melhor versão possível de si mesmo. Ele dizia que corria para vencer, que não sairia da luta e iria até o fim. E há o ato final, que é a morte. Ele morre correndo, morre em batalha, como os heróis antigos faziam”, completou o jornalista.

Em 2012, os especialistas em automobilismo da emissora pública britânica BBC indicaram 20 pilotos como os maiores da categoria. O primeiro colocado na ocasião foi Senna. Além disso, segundo Guzzo, o brasileiro foi capaz de dividir a torcida italiana, reconhecidamente apaixonada pela equipe Ferrari. Na ocasião do acidente trágico, milhares de pessoas cercaram o hospital de Bolonha atrás de notícias e se desesperaram quando a morte foi anunciada.

“O corpo de Senna foi transportado de Bolonha para Paris [na França, de onde veio para o Brasil] no avião oficial da presidência da Itália, honra nunca antes oferecida a um esportista. Senna nunca foi calculista ou quis comprometer alguém. Queria somente vencer, provar a si e aos outros que era o melhor. Isso causava um frenesi nos fãs e realmente será insubstituível”, concluiu o escritor.

Comício da Candelária, 40 anos: o legado sociopolítico das Diretas Já

Ali, no meio de uma multidão que se espremia nas avenidas Rio Branco e Presidente Vargas, no centro do Rio, uma adolescente de 16 anos olhava impressionada para a movimentação ao redor. Era a primeira vez que participava de uma manifestação política, mas já sabia que se tratava de um momento histórico. O Comício da Candelária, segundo jornais da época, reuniu cerca de 1,2 milhão de pessoas. Foi um dos principais atos do movimento das Diretas Já, que fez o povo voltar às ruas depois de 20 anos de repressão violenta da ditadura militar.

Para alguns, o momento era de recuperar a voz de protesto represada durante anos. No caso de Adriana Ramos, que tinha acabado de entrar para a faculdade, era um despertar político.

“Eu não tinha consciência política. Vinha de uma família bem conservadora, de direita. Na escola, praticamente todos os colegas eram filhos de militares. Na época, vi toda a mobilização e os colegas de faculdade se organizando para ir ao comício. Lembro da minha mãe e da minha avó ficarem apreensivas. Mas, até pela ignorância de não saber muito o que significava aquela manifestação, fui na onda”, lembra Adriana. “Foi algo que marcou muito minha relação com a política dali para a frente”.

Lívia de Sá Baião também era estudante universitária na época. Estudava economia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio). Tinha 19 anos e trabalhava como estagiária em um banco próximo à Candelária, quando se encontrou com amigos para assistir ao comício.

“Aquele momento foi um marco na minha vida. Lembro muito da emoção de estar lá, de participar daquele momento, ouvir aqueles líderes falando” disse Lívia. “Ouvi o Brizola, o Tancredo Neves. A gente estava ali em um momento crucial”.

O jornalista Alceste Pinheiro também esteve no Comício da Candelária, mas como manifestante. Ele lembra que ficou na Avenida Rio Branco, onde ouvia os discursos, mas não tinha uma visão tão completa como a das pessoas que ficaram de frente para o palanque.

Rio de Janeiro – O jornalista Alceste Pinheiro, na Igreja da Candelária, local do histórico comício pelas Diretas – Foto Tomaz Silva/Agência Brasil

“Mas lembro dos ônibus superlotados, da cidade toda se movimentando naquela direção. Lembro do êxtase e da confiança das pessoas, do sentido dos discursos, muito bem preparados, bem armazenados na memória, do que se cantou. Lembro do que se gritou: Diretas Já! O Povo quer votar!”.

Cobertura jornalística

O fotógrafo Rogério Reis trabalhava na revista Veja em 1984. Às vésperas do comício, a revista percebeu que o evento prometia ser grandioso, por causa do número de doações espontâneas feitas para os organizadores em uma conta do Banco do Estado do Rio de Janeiro (Banerj).

“Esse foi o primeiro sinal que a gente teve, uma semana antes, de que o público estava disposto a colaborar para um grande evento, com produção de faixas e todo o material que envolve um grande comício”, disse o fotógrafo.

Outro sinal era o fato de o governador fluminense à época ser o gaúcho Leonel Brizola, afinado com a proposta das Diretas Já. Ele se dispôs a interditar toda a Avenida Presidente Vargas para que o evento pudesse ocorrer. Foram colocados balões iluminados com gás hélio.

A revista escalou três fotógrafos para acompanhar o evento: um faria fotos aéreas de um helicóptero alugado, outro ficaria em frente ao palanque e o terceiro, que era Rogério Reis, circularia mais solto entre a multidão, para fazer aspectos de comportamento.

“Eu classifico como uma das coberturas que raramente você, como jornalista, está acostumado a vivenciar. A gente tem certo distanciamento das cenas. Mas, nesse processo de abertura, vi muito profissional trabalhando emocionado. Como ocorreu também na chegada dos exilados. Lembro que na chegada do (Miguel) Arraes (deposto do cargo de governador de Pernambuco em 1964) no (aeroporto do) Galeão, tinha muito repórter e fotógrafo trabalhando chorando”.

Comício

Por volta das 16h do dia 10 de abril, começou o Comício da Candelária. Os manifestantes gritavam palavras de ordem, agitavam bandeiras, faixas e cartazes, vibravam com os discursos de diferentes líderes da oposição ao regime militar, e cantavam em coro músicas dos artistas presentes.

Fafá de Belém conduziu o Hino Nacional e a música Menestrel das Alagoas, que virou um dos hinos da Diretas Já. Em seguida, foi libertada uma pomba branca, que saiu voando, assustada com a multidão. Milton Nascimento levou o público às lágrimas ao interpretar Nos bailes da vida. O advogado Sobral Pinto, aos 90 anos de idade, leu o que se tornaria o artigo 1º da Constituição Brasileira: “Todo poder emana do povo”.

Durante seis horas, diferentes personalidades alternaram-se no palco. Entre os políticos estavam Leonel Brizola (PDT-RJ), Franco Montoro (PMDB-SP), Tancredo Neves (PMDB-MG), Ulisses Guimarães (PMDB-SP), Luís Inácio Lula da Silva (PT-SP) e Fernando Henrique Cardoso (PMDB-SP), que dividiram o mesmo palanque.

Entre os artistas, Chico Buarque, Maria Bethânia, Lucélia Santos, Cidinha Campos, Chacrinha, Cristiane Torloni, Erasmo Carlos, Ney Matogrosso, Paulinho da Viola, Bruna Lombardi, Maitê Proença, Walmor Chagas. Também havia famosos como o jogador de futebol Reinaldo, o cartunista Henfil, a apresentadora Xuxa e a atleta de vôlei Isabel. E na apresentação principal, a voz do “locutor das diretas”, o radialista esportivo Osmar Santos.

Luta por democracia

O evento na Candelária era parte de uma série de manifestações de rua que tomaram conta do país em 1983 e 1984. Os governos militares começam a enfrentar crises econômicas mais agudas na década de 70, com endividamento externo e inflação alta. Na gestão de Ernesto Geisel (74-79) fala-se pela primeira vez em abertura política, mesmo que “lenta e gradual”. Na gestão de João Batista Figueiredo (79-85) são restabelecidas as eleições diretas para os governos estaduais. Em 1982, a oposição conquista o governo de nove estados, com destaque para São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Em 2 de março de 1983, o deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT) apresenta emenda à Constituição, assinada por 199 congressistas, para restaurar a eleição direta para presidente a partir de 1985. Nos meses seguintes, muitos atos públicos foram feitos em defesa da pauta. O primeiro comício com articulação centralizada ocorreu em Goiânia, com 5 mil pessoas, em 15 de junho.

Cidades de todas as regiões do país passam a ter manifestações. O destaque é para a chamada Caravana das Diretas, em fevereiro de 1984, que percorre cidades do Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Em 24 de fevereiro, Belo Horizonte registra até ali o maior público de um comício, cerca de 400 mil pessoas. Esse número só seria superado pelo comício do Rio de Janeiro, na Candelária, e pela passeata de São Paulo, que saiu da Praça da Sé até o Vale do Anhangabaú. Ambos, ocorridos em abril, ultrapassaram a marca de 1 milhão de pessoas.

Apesar de toda essa mobilização popular, semanas depois, em 25 de abril, é votada a Emenda Dante de Oliveira no Congresso. A derrota vem por diferença de 22 votos. O primeiro presidente da República depois da ditadura militar, Tancredo Neves, seria escolhido por eleição indireta no Colégio Eleitoral.

Frustração

Já naquela época, o jornalista Alceste Pinheiro acreditava que a emenda constitucional não passaria, por todas as circunstâncias e pressões que existiam de vários lados. Havia os que não queriam a aprovação e os que preferiam adiar para uma situação que, politicamente, fosse mais favorável.

“Eu achava isso e falava para algumas pessoas. Mas, entre as pessoas da minha relação, todas tinham esperança muito grande de que a emenda passaria. Eu desconfiava. Mesmo assim, fui à Cinelândia quando se votou a emenda, que foi derrotada. Foi absolutamente distinto do que ocorreu na Candelária”, disse Alceste.

Para quem alimentou por meses a esperança de que poderia escolher finalmente o ocupante do cargo mais alto do país, a euforia deu lugar à frustração.

“Foi uma grande decepção quando a Emenda Dante Oliveira foi rejeitada na Câmara, poucos dias depois do comício. Fiquei arrasada. E aí deu no que deu. Só tivemos eleições em 1989”, disse Lívia de Sá.

“Uma mobilização daquele tamanho e, no final, a emenda não foi aprovada? Foi um balde de água fria, de mostrar um limite da mobilização da sociedade. Mas, sem dúvida, tinha esse entendimento de que a gente estava entrando em nova época. Com mais demandas e mais possibilidades de participação da sociedade”, afirmou Adriana Ramos, que hoje é ambientalista.

Legado democrático

Para o historiador Charleston Assis, da Universidade Federal Fluminense (UFF), é importante olhar além dos objetivos imediatos do movimento das Diretas Já e entender o significado mais amplo dele no contexto de redemocratização do país.

Assis lembra que apenas três anos antes aconteceu o atentado do Riocentro, em que um grupo de militares tentou intimidar, ferir e matar jovens em um show para retardar a abertura política. A tentativa terminou em fracasso, mas mostrou os perigos que esse grupo representava. Assim, voltar às ruas e pedir eleições diretas para presidente era um ato de coragem e de resistência ao silêncio imposto pela ditadura.

“O movimento das Diretas Já tem inúmeros ganhos. Essa emergência popular vai fazer com que o povo se torne um ator político muito decisivo. A partir daquele momento, as demandas não podem mais ser ignoradas. O país vai ter conquistas como a ampliação da rede de proteção social, do acesso à casa própria, mais tarde do acesso à universidade pela juventude preta e indígena. Isso tudo estava ali nos anos 80, e a luta pelas Diretas trazia uma série de sonhos coletivos desse povo enquanto nação”, diz o historiador.

Charleston entende que, por causa das recentes tentativas de golpe de Estado e do fortalecimento de discursos retrógrados, lembrar da mobilização popular da década de 1980 é importante para valorizar as conquistas sociais das últimas décadas.

“É muito necessário que a gente rememore essa campanha por conta daquilo que ela traz de oposição ao autoritarismo e de defesa da democracia. A ditadura militar foi uma tragédia social, política e econômica. Basta lembrar que nossa dívida externa passou de R$ 3 bilhões em 1964 para R$ 100 bilhões no fim do governo militar. As Diretas Já mostraram que o povo brasileiro se colocou decididamente contra a ditadura e a rejeitou em bloco”.

Favela-Bairro, 30 anos: legado do programa desaparece aos poucos

Os caminhos que cruzam o Morro do Andaraí, na zona norte do Rio, têm sinais de deterioração e de abandono. Em determinado ponto, o chão está afundando. No anel viário, que percorre as áreas mais altas, quando é dia de chuva e tudo alaga melhor nem tentar passar de carro.

A comunidade foi a primeira a ter um plano de urbanização em 1994, quando surgiu o programa Favela-Bairro. Trinta anos depois, as melhorias de infraestrutura, habitação e serviços sociais são lembranças distantes de um raro momento de intervenção do Poder Público. Sem manutenção e novos investimentos, os problemas se multiplicam no ritmo de crescimento da população.

“O plano piloto de 94 foi desenhado para uma comunidade que tinha cerca de 5 mil pessoas. No último levantamento, de 2010, já eram 30 mil. Agora, deve ter muito mais que isso, uns 40 ou 50 mil. Tudo ficou completamente defasado. As vias estão sobrecarregadas, as partes de esgoto e pluvial nunca foram modernizadas. Nada teve manutenção e, com esse crescimento desordenado da comunidade, tudo foi só piorando”, analisa Fernando Pinto, presidente da Associação de Moradores e Amigos do Morro do Andaraí (Amama).

A cozinheira Maria Elisabete conta que, em meio à situação precária, é o espírito de coletividade que ajuda a comunidade a se manter de pé.

“O maior problema aqui é a falta de água. É a reclamação que mais ouço. Felizmente, tenho a sorte de morar em um lugar onde quase nunca falta. E as pessoas vão tentando se ajudar. Eu ofereço a minha casa para o pessoal tomar banho e resolver outras coisas. Sem falar nas questões de esgoto. Quando cai qualquer chuvinha, os ralos entopem”, disse Elisabete.

Ela mora ao lado da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). O edifício, que hoje parece uma fortaleza cravada na parte baixa da favela, já foi um Centro Municipal de Assistência Integrada (Cemasi), com quadra esportiva onde as crianças passavam o dia jogando bola. Desde 2010, esse ambiente foi substituído por viaturas, homens fardados e fuzis. Além de perder um espaço de assistência social e lazer, moradores não tiveram cumprida a tão prometida melhoria na segurança. Há poucos metros dali, os traficantes circulam tranquilamente.

“O Estado entrou só com armamento e policiamento. Isso não veio agregado de outras ações que seriam muito mais importantes, como educação, saúde, lazer, esporte. Essa é uma reclamação que a gente ouve muito dos moradores”, disse Fernando Pinto.

Programa Favela-Bairro

O Favela-Bairro trazia no próprio nome a promessa de transformação do status das favelas em bairros e a integração delas com as regiões vizinhas. No senso comum, favela normalmente foi vista como lugar de desordem, informalidade e ilegalidade.

“Sempre pareceu que era muito interessante para o Poder Público manter as favelas numa espécie de lugar indeterminado. Entre o legal e o ilegal. Entre o tolerado e o que deve ser expulso. Isso acontecia para que as pessoas ficassem numa situação de vulnerabilidade, que favorecesse práticas clientelistas, vindas de um parlamentar ou de determinado grupo político que adotava certa favela”, analisa Tarcyla Fidalgo, doutora em planejamento urbano e regional e pesquisadora do Observatório das Metrópoles.

Durante boa parte do século 20, o Poder Público olhava para as favelas como problemas a serem erradicados. A palavra de ordem era a remoção. Um exemplo é o Código de Obra da Cidade do Rio de Janeiro, de 1937, que proíbe a construção de novas moradias, melhorias nas que já existiam e, progressivamente, a eliminação delas.

Também é conhecido por essa mentalidade o governo de Carlos Lacerda (1960-1965), que adotou política forte de remoção de favelas, principalmente na zona sul. E a ditadura militar, com destaque para o período de maior repressão (1968-1973), quando cerca de 60 favelas e 100 mil habitantes foram removidos, principalmente de áreas mais nobres, de interesse do setor imobiliário.

A situação começa a mudar com a chegada do período democrático. São marcos desse período o Projeto Mutirão (1981-1989), com a retomada de intervenções urbanísticas em favelas, e o Plano Diretor do Rio de Janeiro de 1992, que previa políticas públicas nas favelas e a inclusão delas nos mapas e cadastros da cidade.

Em 1993, a gestão municipal de César Maia cria o Grupo Executivo de Assentamentos Populares (Geap), para centralizar a política habitacional. Entre os programas previstos, está o Favela-Bairro. No mesmo ano, surge a Secretaria de Habitação. A ideia começou a sair oficialmente do papel no dia 28 de março de 1994, quando é aberto oficialmente o edital para escolha de arquitetos e projetos, organizado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil do Rio de Janeiro (IAB-RJ).

“Favela-bairro é o primeiro grande programa de urbanização de favelas que a gente tem aqui no Rio de Janeiro. Tem uma importância fundamental no sentido de marcar a possibilidade de que o Estado reconheça um território e possa agir para melhorá-lo. Ele rompe um pouco com a visão da favela como algo a ser combatido, a ser exterminado, como um lugar que não tem salvação”, diz Tarcyla.

Inicialmente, 16 favelas foram contempladas na primeira fase do programa. Foram priorizadas as de médio porte, na época, caracterizadas assim por ter entre 500 e 2.500 domicílios. As obras da prefeitura começaram com recursos próprios em 1995. No fim do mesmo ano, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) assina um convênio com a prefeitura. O total combinado de recursos aplicados nas duas fases do programa foi de US$ 600 milhões.

Calcula-se que, no total, mais de 150 comunidades foram contempladas por algum tipo de obra nas duas fases. O modelo foi vendido pelo mundo para ser adotado em regiões periféricas e inspirou ações semelhantes em países da América do Sul.

“Os serviços prestados durante esse período, sem nenhum exagero, revolucionaram a vida dentro dessas comunidades. As pessoas passaram a ter um padrão superior. Vários estudos acadêmicos foram encomendados que atestaram isso. Os resultados sociais e econômicos foram enormes”, afirma Sérgio Magalhães, que foi secretário municipal de Habitação do Rio entre 1993 e 2000 e responsável pelo programa durante a maior parte da existência dele.

“As favelas não tinham recolhimento de lixo, limpeza das águas fluviais, creches, serviços de saúde. Passaram a ter escritórios da prefeitura em todas elas, além de centros esportivos, iluminação pública, uma série de serviços de interesse social que valorizaram a cidadania. Tudo era muito precário antes do programa nas favelas”, complementa Sérgio.

O programa terminou em 2008 e, apesar do reconhecimento de que trouxe avanços importantes, não está livre de críticas.

“Os moradores historicamente construíram soluções muito criativas e inventivas para solucionar problemas como falta de água, enchente, pavimentação, drenagem. O programa de urbanização partiu de uma visão técnica construída em gabinete. Uma perspectiva de que a favela precisava se tornar a cidade formal, um bairro igual aos outros. Foram ignoradas soluções desenvolvidas no próprio território, e aplicados modelos que não necessariamente se adequavam àquela realidade”, diz Tarcyla Fidaldo.

Outras políticas de urbanização

Em 2007, o governo federal criou o Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) para investir na urbanização de favelas. Foram quase R$ 3 bilhões investidos em 30 favelas ou complexos. Críticos do projeto apontam que ele priorizou “obras faraônicas” pouco efetivas, não combatendo os problemas reais de infraestrutura. O teleférico do Complexo do Alemão é citado como exemplo.

Em 2010, a gestão do prefeito Eduardo Paes criou o Morar Carioca, considerado continuação do Favela-Bairro. A meta era urbanizar todas as favelas até 2020, o que não aconteceu. Por outro lado, conforme pesquisa de Lucas Faulhaber e Lena Azevedo no livro SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro Olímpico, pelo menos 60 mil pessoas foram removidas de comunidades. O caso mais famoso é o da Vila Autódromo. Em 2017, o então prefeito Marcelo Crivella chegou a anunciar a volta do programa Favela-Bairro, mas o projeto não foi adiante.

“Houve um esvaziamento da política habitacional e não houve manutenção das obras que foram feitas nas favelas. As que tinham sido contempladas no programa passaram a perder qualidade de vida. Sem investimentos, os indicadores sociais e de segurança nas comunidades pioraram bastante”, analisa Sérgio Magalhães.

Eduardo Paes, eleito para novo mandato, decidiu retomar o Morar Carioca em 2022, com plano de investimento de R$ 500 milhões. O atual secretário municipal de Habitação, Patrick Corrêa, disse que o objetivo é que o Rio volte a ser “vanguarda na construção de habitação de interesse social” e prometeu desenvolver programa específico para manutenção das favelas.

“O Morar Carioca é uma evolução natural do Favela-Bairro frente aos novos desafios urbanos, diante de nova realidade que já são favelas urbanizadas. Aprimoramos o programa, porque o conjunto e o contexto são diferentes para que ele possa responder às necessidades atuais. O combate ao déficit habitacional se dá em duas vertentes no programa: qualitativo – para levar infraestrutura (saneamento, drenagem, pavimentação) ao entorno das casas que já existem – e quantitativo – com a construção de unidades habitacionais”, diz o secretário.

A promessa é de que o programa também contemple outras áreas de interesse das comunidades.

“Estamos sempre trabalhando em conjunto com outras secretarias como a RioLuz, Ordem Pública, Infraestrutura, Meio Ambiente, Ação Comunitária e Comlurb, por exemplo. Com a Ação Comunitária, temos o Favela Com Dignidade, que leva diversos serviços públicos para várias comunidades. Como cada uma das comunidades tem sua peculiaridade, se faz necessário esse diálogo constante com outras secretarias, que nos apoiam na implementação do Morar Carioca”, acrescenta Corrêa.

Participação e integração

Entre os principais objetivos anunciados pelo Programa Favela-Bairro no edital de 1994, estavam a integração das comunidades com o restante da cidade e participação ativa dos moradores nos planos de urbanização. Algo que, para especialistas e moradores, está longe de ser realidade.

“A participação tem que ser efetiva e não só um aceite, uma exigência administrativa. Normalmente, técnicos da prefeitura vão até a comunidade, apresentam um monte de plantas e documentações de topografias. Os moradores não têm muita condição de compreender aquilo. E a gente sabe que vai ser aprovado, seja por essa falta de conhecimento técnico, seja porque os moradores precisam muito de intervenções que melhorem as condições do território”, diz Tarcyla Fidalgo.

“Favela, na cabeça das pessoas, continua sendo favela. Não mudou nada”, afirma Bete. “As autoridades não se importam. Fazem uns serviços pequenos, uma maquiagem e só. Teve uma vez aí que um desses políticos pintou meia dúzia de casas só para dizer que fez algo”, diz a moradora do Morro do Andaraí, Maria Elisabete.

“A gente sabe que a maior parte da população que mora no ‘asfalto’ tem preconceito com o pessoal da comunidade. Pensam, mesmo que de forma velada, que todo mundo aqui é bandido. Eles não assumem isso publicamente mas, no fundo, pensam isso. Não querem integração, nem que a gente desça o morro. Querem que a gente continue aqui. A não ser quando é para as nossas mães serem domésticas ou os nossos pais serem porteiros. Isso é o que eles querem”, diz Fernando Pinto.

Seis anos após assassinato, instituto mantém legado de Marielle vivo

Após a noite de 14 de março de 2018, a família da vereadora assassinada Marielle Franco se viu envolvida por uma junção de sentimento: a dor, o luto, a indignação que – até hoje – serve como combustível para a busca por justiça, e a necessidade de não deixar morrer a luta da ativista por uma sociedade melhor.

A comoção causada pelos assassinatos de Marielle e do motorista Anderson Gomes, por si só, potencializou em todo o país o nome da carioca negra, bissexual e criada na favela da Maré.

Advogada Marinete da Silva, mãe de Marielle – Tomaz Silva/Agência Brasil

Mas era preciso institucionalizar toda a comoção e os sentimentos vivenciados pela família de Marielle. Assim nasceu o Instituto Marielle Franco.

“O instituto traz esse resgate da história. A resposta tem que ser dada para mim, enquanto mãe e para a família. O mundo inteiro quer saber quem e por que mandaram matar Marielle”, disse à Agência Brasil Marinete da Silva, mãe da vereadora e conselheira fundadora do Instituto Marielle Franco.

“Quem mandou matar Marielle mal podia imaginar que ela era semente, e que milhões de marielles em todo mundo se levantariam no dia seguinte”, diz o instituto em seu site.

A organização da sociedade civil é financiada por meio de patrocinadores e também recebe doações de pessoas físicas. As principais atuações são a cobrança por justiça, a defesa da memória de Marielle – tão atacada por notícias falsas, e a personificação do legado político, atraindo e estimulando novas lideranças periféricas, principalmente mulheres negras e faveladas.

“É esse o papel do instituto, trazer essa mulher para essa centralidade, dizer o quanto é importante ocupar. A mulher tem que estar onde ela quiser, e a Marielle traz isso, com esse recorte da periferia”, explica Marinete.

Inspiração

Até 2022, o Instituto Marielle foi dirigido pela irmã da vereadora, Anielle Franco. Ao ser nomeada ministra da Igualdade Racial do governo Lula, em 2023, o cargo foi ocupado por Lígia Batista. A também mulher negra e periférica conhecia Marielle desde antes de ela se tornar vereadora. A defesa dos direitos humanos foi o que uniu as duas. Lígia trabalhava com o tema na organização não governamental (ONG) Anistia Internacional Brasil.

“Ver Marielle falar para as pessoas, como ela conseguia romper bolhas, conseguia comunicar as suas causas foi algo definitivamente muito inspirador pra mim. Sou muito feliz por ter tido a oportunidade de conhecer a Mari ainda em vida”, conta Lígia.

Lígia crê que ao defender a memória e semear os ideais de Marielle, o instituto consegue mudar realidades no país.

“A gente acredita na possibilidade de criar futuros para que pessoas como Marielle possam não só acessar, mas também permanecer em espaços de poder e tomada de decisão e, efetivamente, conseguir transformar a nossa democracia e, de fato, seguir lutando por justiça, dignidade e bem viver para todo mundo”.

Diretora-executiva do Instituto Marielle Franco, Ligia Batista – Tomaz Silva/Agência Brasil

O instituto é um catalisador de ações como cursos de formação em direitos humanos, organização de seminários e proposição de articulação entre outras organizações da sociedade civil e coletivos, notadamente de populações periféricas e minorias representativas, como negros e a comunidade LGBTQIA+.

“É fundamental poder inspirar as novas gerações a entender como nossa vida é atravessada pelas desigualdades de gênero, de raça, de classe, mas também se entender enquanto um ator protagonista nesse processo, porque a gente sabe que as estruturas políticas não têm servido aos nossos propósitos de vida. Então é fundamental a gente seguir inspirando, fortalecendo, formando novas gerações de lideranças políticas para que elas consigam, junto com a gente, transformar essas estruturas de poder”, descreve Lígia à Agência Brasil.

Rede de sementes

O logotipo do Instituto Marielle é a representação de sementes. Uma simbologia que remete a um dos verbos mais conjugados pela iniciativa: semear, ou seja, criar consciência social em jovens periféricos.

Uma integrante da rede de sementes é a professora de cursinho pré-vestibular comunitário Raquel Marte, de Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro. Formada em letras e cursando atualmente produção cultural, foi no instituto que teve mais contato com cursos e articulações em prol da defesa dos direitos humanos.

“Eu tive esse tipo de conteúdo na faculdade. Mas boa parte das participantes [da rede de sementes] são pessoas do povo, pessoas de pouca instrução e, por meio do instituto, elas têm acesso também a conhecer os seus direitos de cidadãos. Por meio do acesso a informações corretas é que a gente pode fazer qualquer tipo de mudança na sociedade civil”, diz Raquel, acrescentando que o conhecimento é uma espécie de antídoto para campanhas de desinformação e fake news.

Professora de cursinho pré-vestibular comunitário Raquel Marte – Tomaz Silva/Agência Brasil

Agenda Marielle

O instituto busca também ter diálogo com outra ponta do processo político: os representantes eleitos. Por meio da Agenda Marielle – um conjunto de pautas e práticas antirracistas, antiLGBTfóbicas, feministas e populares – há uma busca por articulações que funcionam como uma espécie de cobrança por ações políticas.

“Essa relação se dá, fundamentalmente, a partir de uma provocação que a gente faz, tanto para candidaturas, mas também para aquelas que são eleitas, para que se comprometam com as nossas pautas e as nossas práticas. A gente convoca as candidaturas progressistas, candidaturas que se inspiram nesse símbolo de luta que a Marielle se tornou, a assinarem e defenderem essa agenda durante a sua atuação enquanto parlamentares. Acho que esse é um caminho que a gente tem explorado que é bem potente”, conta Lígia.

Para o professor de ciência política João Feres, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o diálogo com parlamentares precisa atingir um maior espectro político para ter mais resultado.

“As organizações da sociedade civil têm investido muito nas relações com o Legislativo, atividade muito difícil de executar, mas de suma importância. Os donos do capital têm recursos abundantes para contratar escritórios de lobby que se dedicam a esse trabalho diuturnamente. Já as organizações, para competir, precisam promover a profissionalização dessa atividade, algo que não é barato. A questão é que não basta estreitar contatos com políticos já alinhados, é preciso exercer pressão sobre aqueles que se encontram nas bordas do tema, por assim dizer, isto é, os que não têm interesses muitos intensos contrários à agenda e que poderiam ser ‘ganhos’ para a causa”, avalia.

Violência Política

Apesar do entusiasmo pela participação política, Lígia ressalta que o maior desafio do instituto atualmente está justamente na representação política. Mas especificamente na violência política.

“O maior desafio é justamente o quanto a violência política não só afasta as pessoas de quererem disputar a política institucional, mas também o quanto a violência política de quem está lá dentro, de quem vive esse dia a dia, acaba minando possibilidade de construção de outros mundos possíveis”, aponta.

“Para nós, o combate à violência política de gênero e raça é fundamental porque esse fenômeno atravessa muito a vida de mulheres negras, pessoas LGBT, pessoas de favela e periferia. A gente acha que o fim da violência política vai fortalecer a democracia brasileira”, complementa.

Sociedade civil

Fotobiografia conta trajetória de Marielle Franco – Fernando Frazão/Agência Brasil

O Instituto Marielle é mais uma organização no arco de movimentos da sociedade civil que busca levar protagonismo para cidadãos.

“Sem participação não há cidadania, sem participação não se realiza o jogo de forças necessário para criar, implementar medidas, monitorar e exigir a realização das responsabilidades dos Estados nacionais em matéria de direitos humanos, sociais, culturais, políticos”, disse à Agência Brasil a diretora executiva da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck.

“Marielle era fruto dos movimentos de mulheres negras e, em sua geração, deixou sua contribuição para amplificar as vozes das populações historicamente silenciadas”.

Jurema entende que a luta por justiça para Anderson e Marielle vai além de uma resposta a um crime específico.

“Diz respeito, sobretudo, a garantir que mortes brutais como a dela e de Anderson não se repitam – como já tem se repetido – em completa impunidade em todo o Brasil”.

A diretora da Anistia Internacional Brasil acredita que o assassinato da ativista serviu como um potencializador do alcance de Marielle.

“O ativismo de Marielle como mulher, negra, bissexual, mãe, sempre foi algo inspirador, com muita potência. Após o assassinato, somamos toda essa trajetória ao desejo de justiça para continuarmos a luta que é não só a defesa dos direitos humanos, mas também dos defensores e defensoras de direitos nesse país” avalia.

Na avaliação do professor da Uerj João Feres atuações de instituições da sociedade civil como o Instituto Marielle conseguiram “uma transformação cultural no Brasil sem precedentes, que é colocar a desigualdade racial e de gênero como pauta de grande importância”.

“Essa transformação cultural se deu em conjunto com as instituições públicas e privadas cada vez mais sensíveis a essa pauta” destaca. Para o cientista político, isso só foi concretizado durante anos de governos progressistas, mais abertos à participação da sociedade civil do que os governos de direita.

“O Instituto Marielle surge em uma fase 2.0 dessa luta, por assim dizer. É notável o fato de que tenha surgido e ganhado força no contexto nada propício de extrema direita do [ex-presidente Jair] Bolsonaro”, considera Feres.

Março por justiça

Estátua da ex-vereadora Marielle Franco, no Buraco do Lume, centro da cidade – Fernando Frazão/Agência Brasil

O Instituto Marielle organiza e divulga diversas ações (inclusive organizadas por terceiros) previstas para o marco de 6 anos do assassinato de Anderson e da vereadora. Na manhã desta quinta-feira (14) haverá uma missa na Igreja Nossa Senhora do Parto, no centro do Rio de Janeiro.

O local é emblemático, pois fica a poucos metros do Buraco do Lume, uma praça pública em que Marielle costumava fazer discursos. Inclusive, atualmente há uma estátua da vereadora na praça.

Às 17h começará o Festival Justiça Por Marielle & Anderson, na Praça Mauá, também no centro do Rio. A atração será de graça e contará com apresentações artísticas e exposições com obras em homenagem à Marielle.

O crime

Marielle Franco e Anderson Gomes foram mortos em uma noite de terça-feira. Ela tinha saído de um encontro no Instituto Casa das Pretas, no centro do Rio. O carro dela foi perseguido pelos criminosos até o bairro do Estácio, que faz ligação com a zona norte carioca. Investigações e uma delação premiada apontam o ex-policial militar (PM) Ronnie Lessa como autor dos disparos. Treze tiros atingiram o veículo.

Lessa está preso, inclusive tendo já sido condenado por contrabando de peças e acessórios de armas de fogo. O autor da delação premiada é o também ex-PM Élcio Queiroz, que dirigia o Cobalt usado no crime.

Outro suspeito de envolvimento preso é o ex-bombeiro Maxwell Simões Correia, conhecido como Suel. Seria dele a responsabilidade de entregar o Cobalt usado por Lessa para desmanche. Segundo investigações, todos têm envolvimento com milícias.

No fim de fevereiro, a polícia prendeu Edilson Barbosa dos Santos, conhecido como Orelha. Ele é o dono do ferro-velho acusado de fazer o desmanche e o descarte do veículo usado no assassinato. O homem já havia sido denunciado pelo Ministério Público em agosto de 2023. Ele é acusado de impedir e atrapalhar investigações.

Apesar das prisões, seis anos após o crime ninguém foi condenado. Desde 2023, a investigação iniciada pela polícia do Rio de Janeiro está sendo conduzida pela Polícia Federal.

Filhos, ex-jogadores e fãs celebram legado de Zagallo

Alegria, simplicidade e amor à seleção. Essas são as palavras mais usadas por aqueles que compareceram neste domingo ao velório do tetracampeão Mário Jorge Lobo Zagallo. Familiares, jogadores, jornalistas esportivos, dirigentes de clubes e admiradores compareceram à sede da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro para prestar as últimas homenagens a um dos maiores nomes do futebol no Brasil e no mundo.  

Na fachada do edifício e nas paredes internas onde era realizado o velório, muitas imagens da carreira de Zagallo preenchiam os espaços e dezenas de coroas de flores enfeitavam o caminho. Zagallo estava lá, ao lado de troféus e taças, muitos dos quais ele ajudou a conquistar. 

No velório, o filho de Zagallo, Paulo Zagallo, estava muito grato a todo o carinho recebido tanto no Brasil quanto no exterior. “Para mim, é uma satisfação de ter sido filho do meu pai, por tudo que ele representou para o futebol brasileiro e mundial”, diz.

Ele conta que Zagallo sempre foi um pai presente, que reunia a família para almoços aos domingos. Nessas ocasiões, eles evitavam de falar de futebol e tentavam concentrar nos assuntos de família.

“Meu pai tinha um carisma muito grande em relação aos atletas. Todos os atletas gostavam muito do meu pai, da maneira dele se dirigir aos atletas, de conduzir um grupo até mesmo de atletas de várias estrelas não só na seleção como em clubes. Meu pai dava liberdade aos jogadores, de falar, de opinar. Ele conversava a parte tática do time juntamente com os atletas”, diz Paulo.  

No final da vida, Zagallo estava morando com o outro filho, Mário Cesar Zagallo, e segundo Paulo, estava totalmente lúcido. “Foi da vontade de Deus ele descansar”. 

A família recebeu do presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, réplicas das taças das Copas do Mundo das quais Zagallo participou da conquista seja como atleta ou treinador. Rodrigues ressaltou o carinho que Zagallo tinha pela seleção e disse que isso deve servir de inspiração para os novos atletas. “É um momento importante para que possam novamente aproveitar desse legado de vontade e de determinação, tanto como atleta, quanto como treinador e torcedor. Que cada um desses atletas possa resgatar o trabalho que o Zagallo desenvolveu e se inspire nele para saber que a camisa da seleção brasileira tem que ser uma camisa honrada, abençoada e sempre defendida com muita altivez.” 

Carinho pela seleção  

Ex-jogadores e dirigentes de clubes prestaram homenagens e relembraram, com carinho, momentos vividos com o treinador. Para o ex-jogador da seleção brasileira e vice-presidente da Federação Paulista de Futebol. Mauro Silva, Zagallo deixa um trabalho para além dos campos e da parte técnica, deixa a alegria e o carisma. “Você encontrar um monstro, um ícone do futebol brasileiro, tão simples, com tanta energia e com tanto carisma, isso foi contagiante e ajudou muito. Me ajudou a me adaptar e a me sentir bem na seleção brasileira e, consequentemente ajudou, muito na conquista do tetracampeonato”, lembrou.

Mauro Silva diz que o acolhimento que recebeu, fez toda a diferença. “Eu era um garoto saindo do time do interior, chegar na seleção encontrar um monstro como o Zagallo, ver aquela alegria, aquele entusiasmo, a forma como ele acolhia os jogadores mais jovens, para mim me fez um bem danado e me fez me sentir muito feliz e muito à vontade na seleção brasileira e, consequentemente, isso faz você entrar no campo mais feliz e render mais para conquistar cada vez mais”.

O ex-jogador Iomar do Nascimento, mais conhecido como Mazinho, conta que ele foi o grande beneficiado por ter conhecido e trabalhado com Zagallo. “Fui beneficiado de poder entrar no time, de poder jogar uma Copa do Mundo, de poder me encaixar numa situação tática que ele determinou junto com o Parreira. Eu fui um dos beneficiados de tudo isso. Então, um legado importante que tenho dele é o respeito e saber que essa camisa amarela é muito importante para todos os jogadores que passam por aqui.”.  

Questionado sobre a grande presença de ex-jogadores e a ausência de muitos jogadores atuais, Mazinho disse que acredita que eles gostariam muito de estar presentes. “Eu acho que há outras situações que se tem de não poder vir, alguma coisa que passa na vida de cada um. No do Pelé, eu lamentei muito de não ter ido. Estava fora do Brasil. Eu não vivo no Brasil. Acho que cada um tem uma razão, mas acredito que todos gostariam de estar presentes”. 

Momentos marcantes  

O ex-jogador Leandro Ávila estava no Flamengo quando Zagallo, e quando conquistou o título do campeonato Carioca e a Copa dos Campeões de 2001. Segundo ele, o que fica é a simplicidade. “Ele simplificava tudo. Tudo que a gente fazia dentro do treino era exatamente que fazia dentro de campo. Então, todo mundo se entendia. A simplicidade que ele tinha com a gente, isso tudo vai ficar guardado, e não é qualquer treinador que tem isso, ele transmitia isso muito facilmente para a gente”, diz.  

Ele conta também que Zagallo era mais “emoção do que razão”. Na conquista da Copa dos Campeões em 2001, ele lembra de olhar para o treinador durante o jogo: “E ele estava meio que passando mal, parecia que ia ter um treco. Um cara totalmente emoção, às vezes mais que razão. E isso ele demonstrava. [A gente] sentia essa coisa boa vindo dele, essa simplicidade”, lembra. 

Para o presidente do Fluminense, Mário Bittencourt, o momento mais marcante de Zagallo foi na Copa de 1998, na disputa de pênaltis entre Brasil e Holanda. “A maneira como ele se entregou naquele dia ao time, pegando jogador por jogador, olhando no olho e dizendo que a gente ia passar. Acho que, para mim, é a imagem que mais me marca, de amor, de perseverança, de acreditar no resultado, de que ia chegar em mais uma final de Copa do Mundo, aquela imagem me marcou muito. Eu tinha 20 anos de idade na época e nunca esqueci aquele momento”, conta. 

Já o presidente do Botafogo, Durcesio Mello, diz que um dos motivos que passou a torcer pelo time foi Zagallo. “Ele foi jogador e técnico do Botafogo no time mais vitorioso que o Botafogo já teve, que é a geração de 1967/1968. Então é de uma importância. Vai deixar uma saudade enorme para a gente enquanto botafoguense”.   

Segundo ele, Zagallo foi um revolucionário do futebol. “Como jogador, ele foi o primeiro ponta recuado e, depois, colocou cinco camisas 10 para jogar juntos na seleção brasileira de 1970. Ele é um revolucionário, amante da seleção, da amarelinha, como ele chamava. E um botafoguense como eu. Conheci Zagallo há muito tempo e devo muito a ele. Sou botafoguense um pouco por causa dele”, conta. 

Dor e legado revolucionário: morte de Chico Mendes completa 35 anos

“Se descesse do céu um anjo e dissesse que a minha morte ajudaria a salvar a Amazônia, morreria de bom grado. Mas a história tem nos mostrado que não são atos públicos numerosos e concorridos que vão salvar a Amazônia. Por isso, eu quero viver”. As frases de Chico Mendes são declamadas e não saem da memória do grande amigo, companheiro de luta e assessor, o engenheiro agrônomo Gomercinco Rodrigues, o Guma. 

Hoje, aos 64 anos de idade, ele lembra com detalhes, ainda emocionado, sobre a conversa que teve no dia do assassinato do ecologista, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, no Acre, há exatos 35 anos, e também sobre o legado imensurável do líder seringueiro. 

Afinal, foi na tarde daquele 22 de dezembro de 1988 que Guma havia encontrado Chico Mendes e conversado sobre o futuro dos trabalhadores rurais, mas também sobre preocupação com a segurança do ativista. “Eu estive com ele minutos antes do assassinato na casa dele. Eu falei para ele que estava preocupado (por causa de movimentação de pistoleiros)”,  relembra.

Depois que deixou a casa, Guma soube que o amigo havia sido alvejado por um tiro de espingarda no peito quando saía para tomar banho. A investigação levou às prisões de Darcy Alves da Silva, que teria cometido o crime a mando do pai, o fazendeiro Darly Alves da Silva.

Quando Guma retornou à casa de Chico Mendes (minutos depois), ele estava sendo socorrido. “Na cidade (de Xapuri), havia poucos carros. Eu voltei correndo e saí de moto pela cidade procurando ajuda”, recorda. Foi em um veículo de um vereador de cidade que Chico foi resgatado. Mas morreu logo depois no hospital. “Comecei a ligar para as pessoas para dar informação. Eu estava chorando”.

Investigação

Com receio da impunidade, naquela mesma noite, ele e outros ativistas criaram, no Acre, o Comitê Chico Mendes para cobrar das autoridades uma investigação célere e punição aos culpados. “Eu acompanhei a reconstituição. Eu fiquei com dúvidas. Havia provas contra os envolvidos, mas existia gente que apoiava e que financiava. Nesses, nunca se chegou”, observa.

A atual coordenadora do Comitê Chico Mendes é a filha dele, a ativista e militante socioambiental Ângela Mendes. “A ideia do comitê surgiu, na verdade, na noite do assassinato do meu pai, como uma estratégia de mobilização da sociedade para pressionar pela punição dos criminosos. Havia um cenário de medo e impunidade”, argumenta. Um cenário, aliás, que vigora até hjoje, 35 anos depois. 

Em setembro de 2023, a organização não governamental Global Witness divulgou que – um em cada cinco assassinatos de defensores da terra e do meio ambiente no mundo (crimes registrados no ano passado) – ocorreram na Amazônia. No Brasil, foram 34 assassinatos no ano passado (incluindo o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips) e 26 em 2021. Na década, 376 ativistas morreram no Brasil. Leia mais aqui.

“Naquela época, não era diferente. Para que isso não ficasse no esquecimento, os companheiros e companheiras, na noite do assassinato, criaram esse espaço de mobilização, mas também de acompanhamento de casos como o do Chico Mendes e do seringueiro Wilson Pinheiro (assassinado em julho de 1980)”, afirma Ângela Mendes. Desde então, entre 15 de dezembro (data de aniversário de Chico) e o dia 22, o comitê realiza uma semana de mobilização para tratar sobre a situação atual dos trabalhadores da floresta.  

Ângela tinha 19 anos de idade e estava em Rio Branco quando recebeu a notícia da morte do pai. Ela estava na casa dos tios, com quem conviveu mais tempo. Ela foi criada na capital do Acre com os familiares para estudar e acabou se aproximando mais de Chico Mendes no final da adolescência.

“Depois que ele foi assassinado, um amigo do meu pai disse que a intenção dele era que eu fosse para Xapuri trabalhar com ele no sindicato. Nós fomos nos reaproximando e tentando recuperar esse tempo que a gente ficou distante. Ele era um pai muito carinhoso. Ele me tratava muito bem, assim como tratava meus dois irmãos”, recorda.

Enquanto Ângela buscou atuar pela causa ambiental, o amigo Guma fez um curso de Direito para se formar advogado e lutar de outras formas contra a impunidade e violência que atingem os trabalhadores rurais. “Como advogado, eu já atuei muitas vezes em causas que começaram lá naquela época. Atuo até hoje em processos de direito de posse, por exemplo”, exemplifica.

Legado

No entender da filha e de Guma, o legado mais importante de Chico Mendes foi a ideia “revolucionária” da criação de reservas extrativistas, algo que só vigorou após a morte do sindicalista. “É um modelo de área protegida com segurança jurídica e física para as pessoas”, opinam.  

A proposta que nasceu do seringueiro se espalhou pelo Brasil após a morte dele. O Ministério do Meio Ambiente considera Reserva Extrativista como um tipo de unidade de conservação de uso sustentável. “Estão baseadas na agricultura de subsistência e criação de animais de pequeno porte. Tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações (…)”, indica o ministério.

Ângela Mendes entende que as reservas, além de serem eficazes no enfrentamento e no combate à crise climática, também são muito eficazes na manutenção da vida e dos direitos das pessoas em seus territórios.

“Precisa que o poder público cumpra com o seu papel de, através da construção, da criação e da disponibilização de políticas públicas para esses cidadãos, sejam garantidos serviços e qualidade de vida”, diz Ângela. A primeira reserva foi criada em 1990, no Alto Juruá, dois anos depois da morte de Chico Mendes. 

“Oficialmente, são 66 reservas extrativistas sob gestão do governo federal. De gestão estadual, oscilam entre 40 e 50. [Elas] estão nessa média. Essas reservas extrativistas prestam esse papel importante como modelo de desenvolvimento sustentável”, enfatiza. O que começou com os seringueiros ganhou outras características como as reservas extrativistas marinhas”.

Revolução

Para o engenheiro agrônomo Gomercindo Rodrigues, trata-se de uma ação revolucionária. “Eu acho que é esse o grande legado. Não é algo só aplicado à Amazônia. São bens marinhos, ou no mangue ou com as quebradeiras de côco. É um modelo que não propõe que os lugares sejam santuários, mas sim que aqueles locais possam ser explorados pelas populações tradicionais que já conhecem para usá-los sem destruí-los”. Ele recorda que a ideia da reserva extrativista foi lançada no primeiro Encontro Nacional de Seringueiros, de 10 a 17 de outubro de 1985, em Brasília.

Para Rodrigues, que passou a pesquisar os efeitos das reservas, a proposta é de desenvolver sem destruir. “Essa é uma grande discussão das mudanças climáticas. Desenvolver sem aumentar a poluição, sem aumentar a emissão de gases poluentes. Isso foi visionário. Chico sempre foi alguém à frente do tempo dele”, disse Rodrigues, que é autor do livro Caminho da Floresta. Como ativista, participou das técnicas de empate (quando trabalhadores enfileirados ocupam a floresta para tentar evitar o desmatamento). “Eu caminhei muito pelos seringais”, recorda.

O agrônomo Gomercindo elenca ainda outro aprendizado com Chico Mendes: o poder de estabelecer alianças. “Ele sabia que não se conseguia nada sozinho”, relembra. Ele acompanhou a implementação, por exemplo, do projeto Seringueiro, em 1986, que era desenvolvido para alfabetização de adultos e tinha como uma das metas criar cooperativas. 

Preservação da memória

Para a ativista Ângela Mendes, essa habilidade dele em conseguir reunir diferentes grupos fez a diferença. Para ela, empresários conseguiram criar rixas entre trabalhadores, mas o pai era perspicaz em mostrar que todos deveriam atuar juntos. “Indígenas, ribeirinhos, quilombolas, pessoas moradoras das periferias, das cidades, de populações que sempre estiveram à margem dos direitos, sempre invisibilizadas”, enfatiza.

Ela explica que o Comitê Chico Mendes atua, também, na preservação da memória e contra o apagamento da história do líder sindicalista. “Nos últimos anos, tentaram reduzir a importância do Chico Mendes. A casa dele, que é um memorial em Xapuri, ficou fechada, sendo reaberta apenas em 2023. A estátua dele, no centro da cidade, foi deliberadamente jogada ao chão e só voltou a ser erguida por um movimento que nós fizemos”, revela. 

A luta da mãe encanta a filha desde a adolescência. Tanto que Angélica Francisca (em homenagem ao avô) Mendes, de 34 anos, é bióloga e cursou mestrado e doutorado no campo da ecologia. 

Ela atua como analista de conservação na Organização Não Governamental (ONG) internacional WWF. “As reservas extrativistas são um modelo de unidade de conservação de uso sustentável. Mas eu acho que a maior lição que ele deixou para mim é a esperança. Ele foi um agente de luta”, enfatiza. As lições de não desistir, persistir nas dificuldades e conseguir cativar aliados iluminam os olhos da neta.

A pesquisadora lembra que a mãe atuava numa ONG chamada Centro dos Trabalhadores da Amazônia, que fazia assistência de técnica, de saúde e de educação para a região. “Eu tinha muito isso na cabeça. Eu queria fazer alguma coisa parecida. Por isso, resolvi fazer Biologia”.

No trabalho dela, na WWF, participa de um projeto de sensibilização para a Amazônia. “Eu estou trabalhando como coordenadora do projeto Vozes pela Ação Climática Justa. Ele ocorre em sete países e tem vários parceiros aqui no Brasil”.

Pela memória do avô, pela luta da mãe, a bióloga pratica o que foi ensinado em família. “A gente não está sozinha. Nós temos na Amazônia aqui uma juventude também potente que está junto com a gente nessa luta”, finaliza.