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Festa Literária das Periferias: líderes negras debatem legado de lutas

A 14ª edição da Festa Literária das Periferias (Flup) começou nesta segunda-feira (11), no Rio de Janeiro, com mais de 90% da programação composta por mulheres negras. Na abertura, o destaque foi o debate sobre as questões das periferias globais e brasileiras, como pautas raciais e étnicas, de gênero e climáticas.

A Flup será realizada entre 11 e 17 de novembro, e terá a participação de escritores nacionais e internacionais, personalidades ligadas à arte e à academia, oficinas formativas, apresentações musicais, saraus, lançamentos de editoras e performances.

O tema deste ano é “Roda a saia, gira a vida”. Segundo os organizadores, há um alinhamento com o conhecido pensamento da filósofa e escritora estadunidense Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.

O evento de abertura da Flup foi a mesa de debates “O que Queremos Para Ontem?”, que tratou das principais demandas e necessidades das pessoas de periferia.

Tanto as do passado, que seguem incompletas, quanto as mais atuais trazidas pelas novas dinâmicas sociais.

Participaram dela a ativista de direitos humanos e direitos LGBTQIAPN+, Neon Cunha, a deputada federal, Benedita da Silva (PT-RJ), e a diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck.

Rio de Janeiro (RJ) 11/11/2024 – A deputada federal Benedita da Silva participa da Flup. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Dentro do tema, elas destacaram a homenageada dessa edição da Flup: a historiadora, poeta e cineasta Maria Beatriz Nascimento (1942-1995), que teve atuação marcante na defesa dos direitos humanos de negros e mulheres no Brasil, e é considerada uma inspiração para a nova geração de escritoras negras.

“A Maria Beatriz foi uma das mulheres fortes que eu tive a sorte de conhecer, que deram as mãos para que pudéssemos vencer as batalhas em nossos quilombos. Porque as nossas favelas nada mais são do que os nossos quilombos. E lá sabemos que temos que extrair força, energia, conhecimento, organização para poder enfrentar o que vier”, disse a deputada federal, Benedita da Silva.

Rio de Janeiro (RJ) 11/11/2024 – A diretora da Anisita Internacional, Jurema Werneck, na Flup. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

“Maria Beatriz criou conceitos que traduziram a nossa experiência como humanos e foi atrás de alternativas. Falou que nós também somos capazes de encontrar respostas em meio à tragédia humana. Seja no quilombo como território de guerra, quilombo para perseguir a paz, quilombo como estratégia de viver bem. Disse que, por vezes, o quilombo também precisa recuar e buscar proteção”, disse a diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck.

 

Festa Literária das Periferias (Flup)

Dias: de 11 a 17 de novembro

Local: Circo Voador

Endereço: Rua dos Arcos, s/n, Lapa – RJ

Entrada gratuita

https://www.flup.net.br/

Grande Prêmio do Brasil celebra o legado de Ayrton Senna

Ayrton Senna será o grande homenageado do Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1, que será disputado neste final de semana no circuito de Interlagos, em São Paulo. Por ocasião dos 30 anos da morte do tricampeão mundial, várias ações serão realizadas para celebrar o legado do brasileiro.

Uma das que mais chama a atenção será realizada pelo heptacampeão mundial Lewis Hamilton. O britânico, que é da equipe Mercedes, irá pilotar, no próximo sábado (2) após o treino de classificação para o GP do Brasil, a McLaren com a qual Senna conquistou o seu segundo título mundial, no ano de 1990.

“Acho que a ideia inicial era que fosse uma surpresa. Eu usaria um macacão todo branco e seu capacete [de Senna] e sairia e faria a volta, e pareceria que era ele lá fora. Porém, de alguma forma isso foi divulgado”, declarou Hamilton em entrevista coletiva.

“Nunca, em um milhão de anos, pensei que algum dia dirigiria o carro de Senna aqui. Lembro que alguém me contatou, meu gerente me contou sobre isso e eu aproveitei a oportunidade. Antigamente, quando eu estava na McLaren, tive a chance de dirigir o MP4/4 [modelo da McLaren da temporada de 1988 usado por Senna] em Silverstone, o que foi incrível […]. Lembro das corridas em que ele esteve, quando ele finalmente venceu aqui e segurou a bandeira. E sim, com certeza será uma experiência muito emocionante e espero que as pessoas estejam aqui para ver”, afirmou o britânico.

A escolha de Hamilton para pilotar o icônico carro de Senna se deu pela grande admiração que o britânico sempre teve pelo brasileiro. Admiração esta que é destacada até mesmo por adversários do britânico, como o argentino Franco Colapinto: “É claro que Lewis é a pessoa certa para ter essa chance, e fazer isso aqui em Interlagos em um ano tão especial para Ayrton é um momento único para os fãs brasileiros, para Lewis, para todos nós, como pilotos, aproveitarmos o momento juntos e continuarmos fazendo essa homenagem ao Ayrton, que merece”.

Outra homenagem foi liderada pelo tetracampeão mundial Sebastian Vettel. O alemão, que após se aposentar das pistas se dedica à promoção da sustentabilidade e da preservação do meio ambiente, participou, na última quinta-feira (31), de uma ação com catadores de lixo em São Paulo que teve como um de seus resultados a confecção, com materiais recicláveis, de uma réplica gigante de um capacete de Ayrton Senna.

A obra, que foi elaborada com a colaboração dos artistas Matthias Garff e Thiago Mundano, está em exposição no autódromo de Interlagos.

Cineastas, ex-alunos e amigos lembram legado de Vladimir Carvalho

O cineasta Vladimir Carvalho será velado nesta sexta-feira (25) no Cine Brasília, das 9h30 às 13h30. O enterro será no Cemitério Campo da Esperança, às 14h30, na área destinada ao sepultamento dos pioneiros da capital federal.

Em nota, a Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, onde Vladimir foi docente por mais de duas décadas, afirmou que ele “é admirado por sua generosidade, conhecimento e dedicação ao ensino.” Essas virtudes são unanimidades entre cineastas, ex-alunos e amigos ouvidos pela Agência Brasil.

“Ele tinha um séquito de alunos. Até gente que não teve aula com ele o admirava. Era uma admiração por osmose, passada por outras pessoas”, lembra Bruno de Castro que trabalhou na UnB com intermédio de Vladimir.

“Um dia eu comentei com ele que queria tentar trabalhar um pouco em uma universidade. O Vladimir, na hora, foi atrás das pessoas para abrir caminho. ”Bruno de Castro trabalhou na UnB por cerca de oito anos por intermédio de Vladimir. “Foi fantástico, fizemos a UnB-TV.  Ele deu muita força”, recorda-se. “Vladimir não poupava esforço para ajudar a fazer coisas interessantes.”

Expert em documentários

Castro teve oportunidade de produzir um making off da produção do documentário “Barra 68” (2000) e ver Vladimir Carvalho atuando como diretor. “O Vladimir vinha de uma escola de documentaristas, que tinha o Eduardo Coutinho [1933-2014] como grande referência. Eles tinham um modelo de trabalho. Era um negócio assim: muito de sentar e conversar com o entrevistado até arrancar o que precisava. Sabiam exatamente o que queriam”, compara.

A admiração pelo trabalho de Vladimir Carvalho fez com que o cineasta Marcio de Andrade produzisse o documentário “Quando a coisa vira outra” (2022) sobre Vladimir e seu irmão, também cineasta, Walter Carvalho. “O meu desejo de trabalhar com ele se transformou num documentário a seu respeito e à sua trajetória”, conta Andrade.

O documentário foi bem acolhido por Vladimir. “A reação dele foi uma grande alegria. A gente fica tenso, né? Afinal, ele era um expert de documentários, né? Sabia fazer como ninguém. E foi ótima a proximidade com ele. Desde sempre o Vladimir foi uma referência pra gente.”

A gentileza de Vladimir Carvalho também é lembrada pela atriz e diretora Catarina Accioly que postou em suas redes sociais imagens de uma conversa com Vladimir logo após a exibição do seu documentário “Rodas Gigante” no Festival de Brasília de 2023.

“Ele fez uma baita declaração ao filme, sabe? Foi muito especial. Tinha acabado a sessão e eu estava super emocionada. Recebi estímulos de ‘ter acertado” de ‘que aquilo era documentário’. Quanto maior o artista, mais generoso é”, declara Catarina.

Aprendiz curioso

A servidora pública aposentada Mercês Parente foi aluna orientada por  Vladimir no início dos anos 1970 na UnB. Ao longo do tempo tornou-se amiga e compartilha profunda admiração pelo cineasta. “Ele tinha uma visão analítica de mundo. Fazia umas correlações incríveis. Mas sempre se portou como um aprendiz”, afirma.

“A faísca impressionante é a curiosidade. Quanto mais velho, mais ficava curioso e atento”, concorda o cineasta Marcus Ligocki que produziu o último documentário de Vladimir Carvalho “Rock Brasília – Era de Ouro” (2011).

“Conectar com a emoção de vida e brilho nos olhos foi fundamental para mim. Aprendi muito com ele sobre paixão, narrativa e método de filmar. Ele estava 100% imerso na produção dos filmes. Pesquisando e arquivando informação para os próximos filmes. Havia cinema correndo nas veias dele. Nunca foi um prestador de serviço do audiovisual, filmou seus pensamentos e suas emoções em relação ao mundo e em relação a Brasília.”

Pablo Gonçalo Martins, professor de audiovisual da UnB, também percebia em Vladimir Carvalho “paixão por tudo que cercava sua vida.” O acadêmico conheceu Vladimir em uma sessão de cinema de um filme do diretor Roberto Rossellini [1906-1977], do neorrealismo italiano, uma das influências do cineasta brasileiro.

Martins se recorda de um punhal de cangaceiro que Vladimir mostrou, guardado entre as suas coleções que também incluíam filmes, máquinas fotográficas, câmeras, equipamentos de produção cinematográfica – uma parte da memória do cinema brasileiro que o cineasta doou à Universidade de Brasília.

“Rei”, “futebol” e “craque”, as palavras que resumem o legado de Pelé

Se estivesse vivo, Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, completaria 84 anos nesta quarta-feira (23). Apesar de ter se despedido dos gramados em 1977, o legado que o Atleta do Século deixou impacta, inclusive, gerações que não o viram em campo. É o que mostra um levantamento realizado pelo Museu do Futebol em parceria com a Agência Galo que identificou mais de 300 termos utilizados pelo público, em diferentes faixas etárias, para se referirem ao camisa 10. As menções foram captadas entre os dias 23 de julho e 22 de agosto deste ano.

O apelido “Rei do Futebol”, pelo qual Pelé é mundialmente conhecido, reflete-se no levantamento. A palavra “Rei” aparece em 59% das menções, sendo a mais utilizada entre todas as gerações, seguida, justamente, pelo termo “futebol”. Já a terceira lembrança mais citada pelos brasileiros, de acordo com a pesquisa, é “craque”.

No recorte específico das pessoas de até 25 anos, o destaque são os termos “Brasil” e “Santos”. Pela camisa da seleção canarinho, Pelé foi tricampeão mundial, enquanto vestindo a camisa do Peixe o camisa 10 conquistou 24 títulos, entre eles dois Mundiais Interclubes e duas Libertadores, além de marcar 1.091 de seus 1.283 gols. Já entre aqueles com mais de 60 anos, portanto que puderam ver o Rei do Futebol jogar, os termos em evidência são “gol” e “melhor”.

O levantamento também foi estratificado pelas cinco regiões do país. No Sudeste há menções como “gênio”, “lenda” e “melhor do mundo” No Nordeste, “campeão” e “fenômeno”. No Sul, “gol” e “craque”. No Norte as palavras mais lembradas são “ídolo” e “único”. Por fim, no Centro-Oeste, “seleção” e “sucesso” foram os termos associados a Pelé, que faleceu em dezembro de 2022 em decorrência de um câncer de cólon.

Há algumas referências curiosas a momentos da vida de Pelé. Casos de “Xuxa”, alusivo ao relacionamento do Atleta do Século com a artista, “ministro”, recordando a passagem do Rei do Futebol pela pasta de Esportes no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso entre 1995 e 1998, e até “Maradona”, por conta da rivalidade com o ídolo argentino pelo posto de maior jogador de futebol da história.

Sala Pelé

Inaugurado em setembro de 2008, o Museu do Futebol passou por sua primeira grande reformulação no final do ano passado, sendo reaberto em julho. Uma das novidades foi a criação de uma sala dedicada a Pelé. Recentemente o espaço recebeu a camisa do New York Cosmos utilizada pelo Rei do Futebol no último jogo da carreira, um amistoso entre a equipe dos Estados Unidos e o Santos (o Cosmos ganhou por 2 a 1, sendo um dos gols marcados pelo próprio Atleta do Século, que atuou meio tempo por cada time).

“Pelé parou de jogar há 50 anos e segue na memória brasileira do futebol, pois ele nos habita, representa o desejo, o instinto, possibilidades”, afirmou Leonel Kaz, um dos curadores do projeto de renovação do Museu, com Marcelo Duarte e Marília Bonas.

O Museu do Futebol fica no Estádio do Pacaembu, na Praça Charles Miller, em São Paulo. O local funciona de terça-feira a domingo, das 9h (horário de Brasília) às 18h, com acesso permitido até 17h. Os ingressos custam R$ 24 (inteira) e R$ 12 (meia), sendo que a entrada é gratuita para crianças de até sete anos e para todos às terças.

Novo herói da pátria, André Rebouças deixou legado antirracista

Quando se pensa em engenharia, uma obra de qualidade é aquela estruturalmente forte e estável, capaz de resistir aos efeitos do tempo. Esse critério bastaria para qualificar o engenheiro negro André Rebouças (1838-1898) como um dos nomes mais importantes do país.

Busto dos irmãos André e Antônio Rebouças, na Praça José Mariano Filho, na Lagoa, esculpido por Edgar Duvivier. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Mas a obra dele vai além de pontes, docas, estradas de ferro e sistemas hídricos. Ele se destacou como um intelectual crítico, abolicionista, que viajou pelo mundo colhendo experiências em sociedades segregadas e projetou um Brasil onde todos pudessem ser iguais, sem distinções raciais.

O currículo credenciou André Rebouças a ser reconhecido oficialmente nesta semana como um “herói da pátria”, o que lhe garantirá um espaço no livro que reúne as principais personalidades do país.

Historiadores ouvidos pela reportagem da Agência Brasil celebraram a inclusão de Rebouças no documento. Em primeiro lugar, por entenderem que o engenheiro precisa ser mais conhecido no Brasil. Em segundo, por um resgate e revisão de sua memória, alvo de críticas por ter apoiado Dom Pedro II.

“Embora seja um reconhecimento tardio, essa inclusão no livro de heróis vem corrigir a imagem de André Rebouças como um monarquista que desistiu do país e fez um autoexílio, ao sair junto com a família imperial no fim do Segundo Reinado. Ele sai por entender que a República nasce de um movimento revanchista, de uma elite escravocrata, que não aceitou o fim da escravidão sem indenização no Brasil. E a gente teve desdobramentos muito ruins para a projeção dessa figura histórica. Tenho certeza que ajuda, em parte a corrigir isso. Existe ainda todo um trabalho a ser feito de recuperação dessa memória”, avalia Antonio Carlos Higino da Silva, historiador e autor dos livros André Rebouças no Divã de Frantz Fanon.

Fachada do prédio do Armazém Docas Dom Pedro II, obra do engenheiro André Rebouças, na região portuária do Rio. Foto – Tânia Rêgo/Agência Brasil

“A inclusão dele no livro é um fato muito importante, porque durante muito tempo o documento só tinha a presença de heróis brancos e excluía outros grupos sociais, como negros, indígenas e mulheres. E é um passo importante nesse processo de revisão histórica, em que aqueles antes excluídos ou apresentados como passivos ou coadjuvantes da história do Brasil, agora são vistos como protagonistas e agentes históricos potentes de transformação dos 500 anos de história do nosso país”, diz o historiador Jorge Santana, professor do Instituto Federal do Paraná.

Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria

O primeiro passo é entender do que se trata o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Ele foi criado em 1992 e reúne personalidades do tidas como “protagonistas da liberdade e da democracia”, por terem dedicado parte da vida ao país. A obra também é conhecida com Livro de Aço, por ser feita com páginas desse material, e fica no Panteão da Pátria, na Praça dos Três Poderes, em Brasília.

A inscrição de um novo personagem depende de lei aprovada no Congresso. Entre os heróis e heroínas brasileiros, estão Tiradentes, Anita Garibaldi, Chico Mendes, Zumbi dos Palmares, Machado de Assis, Santos Dumont, Luís Gama e Joaquim Nabuco.

A Lei nº 15.003 , que oficializa a homenagem a André Rebouças, foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e publicada nesta quinta-feira, 17 de outubro, no Diário Oficial da União. As ministras Macaé Evaristo (Direitos Humanos) e Anielle Franco (Igualdade Racial), além do ministro Ricardo Lewandowski (Justiça e Segurança Pública) também assinam a medida.

Biografia de Rebouças

André Pinto Rebouças nasceu no município de Cachoeira, na Bahia, em 3 de janeiro de 1838. Era filho de Antônio Pereira Rebouças e Carolina Pinto Rebouças. O pai, filho de ex-escravizada e de um homem branco, foi um advogado autodidata, deputado pela província da Bahia e conselheiro do imperador Dom Pedro I.

Trecho do Túnel Rebouças, que homenageia os irmãos André e Antônio Rebouças. Foto – Fernando Frazão/Agência Brasil

A família Rebouças veio para o Rio de Janeiro em 1846. André e o irmão Antônio, aos 15 e 16 anos, ingressaram na Escola Militar (precursora da Escola Politécnica) e formaram-se engenheiros militares em 1860. Depois de uma viagem pela Europa, (1861-1862) voltaram ao Brasil em 1863 e ficaram responsáveis por reformas nas fortalezas de Santos até Santa Catarina. Em 1864, André projetou o novo porto do Maranhão.

André participou da Guerra do Paraguai, entre 1865 e 1866, no batalhão dos engenheiros e retornou ao Rio de Janeiro por motivo de saúde. Participou das obras do porto da cidade, foi diretor das obras das novas Docas da Alfândega (na atual praça XV) e responsável pela construção das Docas de Pedro II (ao lado do Cais do Valongo).

“Esse armazém é uma grande fonte de inspiração e deve ser pensado como referência de resistência negra. O projeto é todo pensado pelo André Rebouças, em que ele se esforçou em não ter mão de obra escravizada, em constituir proteção social para os seus trabalhadores. Rebouças foi ao encontro de um projeto moderno, de um porto industrial, trazendo referências de um engajamento político e social importante”, diz o historiador Antonio Carlos Higino.

Rebouças nunca foi escravizado, pertencia a uma classe média negra e era protegido por uma rede de amigos poderosos, como a própria família imperial. Talvez isso explique um pouco o porquê de ter demorado a se colocar publicamente como um homem negro e abolicionista. Isso começou a mudar a partir da década de 1870. As viagens para a Europa e para os Estados Unidos, onde presenciou exemplos mais visíveis de discriminação e apartheid racial, foram fundamentais para impactar os projetos políticos e a subjetividade de Rebouças.

Na década de 1880, passa a atuar ativamente no Brasil em projetos contra a escravidão. Foi um dos criadores da Sociedade Brasileira contra a Escravidão, junto com Joaquim Nabuco e José do Patrocínio, em 1880. E participou da Confederação Abolicionista (1883) e da Sociedade Central de Imigração (1883).

“Os mais sanhudos escravocratas confessam hoje publicamente: — a escravidão é um cancro. Já não há mais quem ouse negar que a escravidão é a gangrena nacional; que é a causa primária de todas as misérias e vergonhas que afligem este império; que é o obstáculo máximo à imigração, ao progresso da agricultora, da indústria e do comércio no Brasil”, escreveu Rebouças no texto de abertura do folheto “Abolição immediata e sem indemnisação”, publicado em 1883.

Monarquista, por considerar que o republicanismo brasileiro era liderado por antigos senhores de escravizados, Rebouças partiu para o exílio em 1889 junto com a família imperial. Depois da morte de Dom Pedro II em 1891, partiu para a África, para trabalhar e ajudar no desenvolvimento do continente. Foi nesse período que Rebouças passou a ver a África como “terra de origem” e a se declarar como homem negro, meio brasileiro e meio africano. Mas decepcionou-se com as dificuldades encontradas, como a pobreza decorrente da exploração de nações europeias. Morreu em Funchal, Portugal, em 9 de maio de 1898, em circunstâncias incertas, tendo sido encontrado no pé de um precipício, aos 60 anos.

Como legado para a realidade social dos negros pelo mundo, deixou textos e análises críticas, focados na construção de um país mais igualitário.

“O André Rebouças apontava como principal preocupação o 14 de Maio, ou seja, o dia seguinte à abolição. O que teria de ser feito, como a distribuição de terras, uma reforma agrária, para que os ex-escravizados pudessem ter um meio de sustento, de sobrevivência, e pudessem ser integrados à vida econômica do país”, diz o historiador Jorge Santana.

“Ao fim movimento abolicionista e a libertação dos escravizados, André Rebouças propôs para o orçamento do ano de 1890 um aporte, parte dos recursos de orçamento, para investimento nas pessoas libertas. Ele pensou o Brasil do futuro, da proteção social, escolarização, estradas, portos, tudo que poderia esse país um lugar moderno e melhor. Ele é uma grande referência para os que querem um Brasil melhor e mais unido”, diz o historiador Antonio Carlos Higino.

“Mãe Bernadete, presente”: comunidade defende legado um ano após crime

As marcas de tiros ainda estão na parede que foi pintada de verde claro. Antes, era rosa. Os vestígios do assassinato de Maria Bernadete Pacífico, de 72 anos, líder do Quilombo Pitanga de Palmares, na cidade de Simões Filho, na Bahia, significam mais do que lembranças da dor. “É para que ninguém esqueça. São cicatrizes de uma cena de terror”, diz o neto, Wellington Santos, de 23 anos, que estava em casa quando, por volta das 20h40 do dia 17 de agosto de 2023, dois homens dispararam pelo menos 25 tiros contra a idosa.

O neto, uma irmã e um primo adolescentes foram trancados nos dois quartos. Um ano depois, a família e a comunidade enlutadas buscam honrar o legado de “Mãe Bernadete”, uma mulher que passava seus dias tentando melhorar as condições das pessoas e do lugar em que morava.

A morte da avó, praticamente diante dele, não foi o primeiro trauma na vida de Wellington. Em 2017, o pai dele, Flávio Pacífico, 36 anos, também líder quilombola e defensor de direitos humanos, foi assassinado em uma rua próxima de casa. “Quando a minha avó foi assassinada, eu vi o ciclo se repetir. Eu saí do emprego para poder dar atenção às questões comunitárias”. Ele, hoje, passou a lutar por políticas públicas para a comunidade. “Como minha avó e meu pai fizeram, eu quero continuar a lutar”, diz o rapaz, que tem produzido documentos em nome da comunidade em causas como o pedido para concessão de crédito rural. A comunidade de Pitanga dos Palmares conta com 2.638 pessoas e 598 famílias.

Legado e ameaças

A ideia de que o “legado continua” não sai do coração e das palavras também do filho de Bernadete, Jurandir Pacífico. “Todos nós sabemos que ser de comunidade quilombola é resistir todos os dias”, afirmou, na sexta-feira (16), em evento na comunidade em homenagem à memória de Bernadete. 

“A gente tem essa responsabilidade de continuar com esse legado tão lindo e corajoso”. Ele traz na memória o ideal da mãe de que o legado precisava continuar.  Ele enfatiza que adeptos de religião de matriz africana são perseguidos e que existe temor na comunidade. “Há 40 dias, eu fui ameaçado. Ouvi que eu seria o próximo (a ser vítima)”. Jurandir enfatizou que já denunciou ameaças para as autoridades.

Mesmo enlutados e com temor, família e comunidade resolveram realizar nesse período – que poderia ser apenas de dor – mais um ato de resistência com o 7º Festival de Cultura e Arte Quilombola. São promovidas, até domingo (18), rodas de conversas e debates, oficinas e  apresentações culturais e dos produtos que as pessoas da comunidade aprenderam a fazer. 

Cuidado

Entre as oficinas lembradas e que receberam importante atenção de Mãe Bernadete, houve apresentação do Projeto “Resistência Quilombola”, que tem como motivações a proteção e o autocuidado nos territórios.

O projeto é da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e trabalha com protocolos de segurança. “Passou a ser uma das bandeiras de luta também da Mãe Bernadete. O projeto trata de temas sensíveis à realidade. A gente mexe um pouco com a memória afetiva de cada um. Nós participamos do festival, mas nós iremos retornar novamente para trabalharmos”, diz o coordenador, Maximino Silva. O projeto tem atuação em sete estados.

Além dos diálogos, o festival mostrou como as ações e incentivos de Bernadete são a chave da história da comunidade. A hoje artesã Edna Batista, 56 anos, diz que foi a amiga de longa jornada que a incentivou a criar uma nova possibilidade de renda quando ensinou a fazer bonecas e outros artigos com pano e areia. Ela recorda que a amiga sempre cobrava participação de todos. “Antes dela, não tinha luz nem água aqui”, conta Edna.

O artesão Francisco Celestino, 53 anos, afirma que faz parte da primeira família que se instalou no lugar. E que, desde que Bernadete chegou, há 15 anos, houve uma transformação. Foi a idosa que estimulou ele e a esposa, Claudicéa, a aprender a fazer artes com a piaçava, extraída pelos agricultores da própria comunidade.  

O casal faz de brincos a telas, de vasos e adornos. Os dois vendem os produtos nas feiras na cidade e até pela internet. Francisco é o presidente da associação dos artesãos (33 pessoas, só ele de homem) e tenta manter a comunidade empolgada. “Ela nos ajudou muito. Precisamos reconhecer que mudou a vida de todos por aqui”. Trata-se de uma ligação já antiga. Francisco recorda que era professor da creche do distrito e que Bernadete chegava a dormir no local para organizar o atendimento às crianças no dia seguinte.

Perto de onde o casal de artesãos mostrava as artes em piaçava, um grupo de agricultores lembrava que foi Bernadete também que conseguiu equipamentos para uma fábrica de farinha de mandioca. Pedro Almeida, de 60 anos, disse que foi com “imensa felicidade” o dia que recebeu da amiga, há dois anos, a notícia que poderiam trocar a atividade em manufatura por máquinas que tornaram possível fabricar 30 sacos de 50 kg por dia. “Vendemos nas feiras e mais agricultores entenderam o que poderíamos fazer”, afirma.  

Titulação

Sejam os avanços comunitários ou os riscos por quais passam comunidades quilombolas, quem atua na defesa dos territórios enfatiza a necessidade da titulação das terras que pode deixar as populações mais amparadas. “O governo federal vem ajudando a comunidade e acelerou o processo de titulação”, diz Jurandir Pacífico. Em abril, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) declarou as áreas situadas no município de Simões Filho, na Bahia, como territórios pertencentes à Comunidade Remanescente de Quilombo de Pitanga de Palmares. 

A luta pela titulação, no entender do filho, foi o fator principal para a morte dela. “Entendo que esse crime ocorreu a mando de algum interesse. Alguém pode ter usado o tráfico de drogas para executar a mãe Bernadette, ou seja, pagou o traficante”.  As investigações da Polícia Civil atribuíram o crime ao tráfico. O inquérito policial indiciou seis pessoas pelo envolvimento na morte de Bernardete. 

Crime

De acordo com as investigações, foram dois executores, dois mandantes e mais dois participantes (que facilitaram com informações) identificados como responsáveis pela morte. A mais recente prisão, em julho, foi de Ydney dos Santos. A polícia apontou, em abril, que estavam foragidos Marílio dos Santos e Josevan Dionísio. Três homens já haviam sido presos no ano passado. Para defender a investigação, a Secretaria de Segurança Pública apontou que houve 80 oitivas, 20 medidas cautelares e 14 laudos periciais.

Para a superintendente estadual de Direitos Humanos, Trícia Calmon, a violência contra lideranças, defensoras de direitos humanos em suas comunidades, precisa ser combatida de forma urgente. Segundo ela, existem dois momentos em que os riscos das lideranças são aumentados. 

“O primeiro é quando ninguém está olhando. Ninguém está olhando as dificuldades e as lutas que são postas ali naqueles territórios. O segundo, que foi o caso de Dona Bernadete, é quando todo mundo está olhando para aquele contexto, para aquela situação. E aí as forças interessadas naquele território compreendem que estão diante de um risco iminente de perder espaço”, diz Trícia. 

Ela avalia que o crime organizado emite um recado violento para amedrontar comunidades que, geralmente, são afastadas do meio urbano e que precisam de mais serviços públicos. Por isso, Trícia  defende ações de diferentes instituições. “Foi criada uma força-tarefa para a realização fundiária visando tentar um modelo mais célere para a regularização. Nesse sentido a gente verificou um avanço em relação aos procedimentos de regulação fundiária”. 

Ela afirma que a dificuldade da posse do direito à terra, que é uma questão histórica no país, é um problema porque são comunidades invisibilizadas. Na Bahia, há 1.046 comunidades quilombolas. A respeito da responsabilidade do crime, Trícia concorda com a ideia defendida pela família da vítima, segundo a qual a problemática da disputa da terra é o contexto principal do homicídio. 

Sem arredar o pé

Enfática a esse respeito também é a dirigente da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e assistente social Selma dos Santos Dealdina. “Nós vamos reafirmar hoje e sempre que Dona Bernadete morreu por lutar pela terra, por denunciar vendas de lotes e desmatamento do território. Ela morreu porque cobrava justiça pelo assassinato do filho. A gente não trabalha com essa hipótese levantada pela polícia”.

Selma considera que a situação dos quilombolas não avançou depois do assassinato. “Nós tivemos cinco lideranças executadas nessa luta pela terra. A gente continua com dificuldade porque a lentidão para titular os territórios ainda é muito grande. Não mudou o cenário, pelo contrário”, afirma. 

Ela entende que a ameaça é permanente e contextualiza que há no Incra mais de 1.850 processos para regularização fundiária.

“Estamos aguardando e costuma haver alguma visibilidade para a pauta negra apenas no dia 20 de novembro (dia da Consciência Negra no Brasil). Não dá só para serem entregues portarias e decretos e titulações só no 20 de novembro”. A dirigente diz que as comunidades estão amedrontadas. “Não estamos seguras, mas também a gente não arredou o pé”, confessa.

Bernadete é homenageada na Bahia. Foto:  Alberto Lima/Divulgação

“Agenda nacional”

O secretário nacional de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades, Ronaldo dos Santos, também reconhece que é preciso intensificar os programas de segurança porque essas lideranças ficam realmente muito expostas e vulneráveis. “E também intensificar a política de regularização fundiária. A gente sabe que a regularização encerra ou protege muito as comunidades dessas ações violentas no campo”.

Ele explica que há hoje cerca de 350 títulos de propriedade definitiva quilombola expedidos no Brasil, que correspondem a cerca de 400 comunidades quilombolas. “Nós temos nos debruçado sobre um plano de ação da Agenda Nacional de Titulação. Temos feito a discussão e buscado saída para pensar como fortalecer os programas de proteção, como fortalecer esses territórios quilombolas com a chegada de políticas públicas e fortalecimento das organizações de base quilombola”, acentua.

Presentes

Enquanto esperam a titulação definitiva, familiares de Bernadete se emocionam, mas apresentam um sorriso no rosto quando falam de tudo o que a matriarca ensinou. “Hoje, eu almejo fazer coisas de direito, de pensar direito, conhecer esse mundo jurídico e ter mais opções para defender os interesses da minha comunidade”, observa o neto Wellington que não deseja ir embora do Brasil. 

“Não conseguiria me olhar no espelho. Espero que um dia eu possa ter segurança de viver em minha comunidade novamente”, diz.

Enquanto percorre a casa em que ocorreu o crime, Jurandir, tio de Wellington e filho da liderança quilombola, não esmorece. “A nossa vida mudou depois dessas covardias que fizeram com minha mãe e meu irmão. Mas eles estão presentes em nós”, finaliza.

*O repórter viajou a convite da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) 

Legado de Nelson Mandela serve a todas as nações, diz ex-ministra

“Eu passarei por esse mundo somente uma vez e eu não quero desviar da minha tarefa, que é unir a nação”. Foi assim que Nelson Mandela definiu a sua grande missão de vida e foi assim que recebeu reconhecimento em todo o mundo: como um defensor da paz e da liberdade e como um lutador incansável contra o Apartheid, regime opressor e segregacionista que era adotado pela África do Sul.

É por isso que, desde 2009, a Organização das Nações Unidas (ONU) celebra o dia 18 de julho, data de seu aniversário, como o Dia Internacional Nelson Mandela, reconhecendo sua contribuição para a cultura de paz e para a promoção dos direitos humanos e da democracia em todo o mundo.

“O legado de Nelson Mandela serve a toda e qualquer nação, a todo e qualquer país, a toda e qualquer pessoa porque a paz é necessária globalmente”, disse nesta quinta-feira (18) Matilde Ribeiro, docente da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e ex-ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

São Paulo SP 18/07/2024 Ex-ministra professora Matilde Ribeiro. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Na tarde de hoje, a ex-ministra participou de uma mesa de debate no Centro Cultural São Paulo (CCSP), na capital paulista, para celebrar a vida e o legado de Nelson Mandela. “Eu costumo dizer que ele era um homem lutador, porque quando designamos as pessoas como heróis parece que elas deixam de ser gente. Ele era um homem visionário que defendia a liberdade, lutou contra a apartheid, foi preso e julgado como sendo terrorista, e o terrorismo dele era lutar pela paz no mundo”, disse ela em entrevista à Agência Brasil.

Morto em dezembro de 2013, aos 95 anos, Mandela lutou incansavelmente pelo fim do regime de segregação racial (apartheid) na África do Sul. Ele foi também o primeiro presidente negro da África do Sul, de 1994 a 1999, e recebeu o Prêmio Nobel da Paz, em 1993.

“Mandela nos deixou um legado imenso e multifacetado. Talvez o principal elemento que se sobressaia disso seja a possibilidade da reconciliação, a capacidade de unir em torno de si um país muito diverso, muito complexo e muito machucado pelos acontecimentos da história”, falou o embaixador Antonio Augusto Martins Cesar, diretor do Departamento de África do Ministério das Relações Exteriores, que falou com a reportagem da Agência Brasil antes de participar da mesa de debate com a ex-ministra.

“Comunidades que sofreram muito foram unidas por ele em torno de um projeto de reconciliação que correu sérios riscos ao longo dos seus momentos iniciais de execução e é um trabalho em curso até hoje. E a figura do Mandela e a inspiração que ele trouxe por meio da sua vida, por meio da sua luta e por meio dos anos em que esteve à frente do país, permanecem como um farol, como um modelo, um ideal, um exemplo de virtude, de equilíbrio, de resiliência e de esperança no futuro”, acrescentou o embaixador.

Legado

Para a ex-ministra brasileira, o legado de Mandela continua sendo importante em todo o mundo principalmente porque as marcas da exploração e da segregação racial continuam presentes não só na África do Sul. 

“O Apartheid acabou oficialmente, mas as marcas continuam. O Apartheid é um regime nefasto, que impõe por lei o separatismo. E o Mandela sempre disse que a humanidade é única e defendeu imensamente que a educação é uma saída para a construção de justiça e democracia. Tem uma fala dele que é muito importante, que é refletindo sobre o ódio racial. Ele dizia que, se as pessoas são educadas a odiar, elas também podem ser educadas a amar. Isso é muito forte, é muito potente. No Brasil, nós temos um racismo que, às vezes, as pessoas querem dourar a pílula, dizendo que ele é ameno ou cordial, mas de cordial não tem nada. Racismo é racismo. Não se pode investir na superioridade de um povo em detrimento de outros”, falou.

Embora a Constituição brasileira seja uma das mais democráticas do mundo, destacou a ex-ministra, a luta contra o racismo no país ainda se torna necessária. E esse problema só será superado, segundo ela, por meio de políticas públicas inclusivas e que envolvam a inserção do negro nas universidades, a perspectiva de salário igual para trabalho igual, a necessidade da qualificação profissional para a população pobre e a construção de caminhos para a segurança pública e para as políticas de igualdade racial e de gênero. 

Para Matilde Ribeiro, também é necessária uma política de reparação. “O Brasil tem 524 anos de vida oficial e 400 anos de escravização. Então, nesses quase 130 anos, não houve uma ação do Estado efetiva para incluir esse contingente de ex-escravos”, falou.

Mandela e a polarização

“Mandela é atemporal”, destacou Duncan Chaloba, professor de Economia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em Campinas (PUC-Campinas), e que mediou a mesa de debates. Para ele, a luta de Mandela continua sendo importante nos dias de hoje, principalmente quando a democracia vem sendo posta em risco em várias partes do mundo.

“Tudo o que Mandela falou – ou viveu falando – está acontecendo hoje. A polarização em todo o mundo vai exigir algumas lideranças do naipe de Mandela de novo. Qual o modelo de democracia que o mundo deve seguir? Primeiro precisamos quantificar e qualificar as democracias. Nos livros se cita a Índia, mas o que está acontecendo na política indiana? Nos livros se coloca como modelos de democracia os Estados Unidos e o Reino Unido. Mas o que aconteceu nos últimos dez anos no Reino Unido? Quantas vezes o primeiro-ministro foi trocado por lá? E o que está acontecendo hoje nos Estados Unidos? Cadê o Mandela para nos ajudar?”, questionou Chaloba.

Exposição em homenagem a Nelson Mandela – Paulo Pinto/Agência Brasil

Exposição

A vida e o legado de Mandela podem ser visitados pelo público na exposição Mandela, Ícone Mundial de Reconciliação, que fica em cartaz no Centro Cultural São Paulo (CCSP) até o dia 30 de agosto.

A mostra gratuita apresenta 50 painéis fotográficos que foram trazidos ao país pelo Instituto Brasil África (IBRAF) em parceria exclusiva com a Nelson Mandela Foundation, entidade criada por Mandela em Joanesburgo, na África do Sul. Esses painéis não só trazem fotos de Mandela, como também relatam sua história e destacam algumas frases ditas por ele ao longo de sua vida. Entre elas, uma que se transforma em um grande aprendizado: “Eu nunca perco. Ou eu ganho, ou eu aprendo”.

Exposição e seminário em São Paulo celebram legado de Nelson Mandela

No dia 18 de julho é celebrado o Dia Internacional Nelson Mandela, data estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em reconhecimento à contribuição de Mandela para a paz e liberdade em todo o mundo.

Morto em dezembro de 2013, aos 95 anos, Mandela lutou incansavelmente pelo fim do regime de segregação racial (apartheid) na África do Sul.

Ele foi o primeiro presidente negro da África do Sul, de 1994 a 1999, e recebeu o Prêmio Nobel da Paz, em 1993. O líder ficou conhecido como Madiba (reconciliador) devido ao clã a que pertencia e recebeu o título de O Pai da Pátria.

E para celebrar sua história, o Centro Cultural São Paulo (CCSP) está promovendo uma exposição gratuita em homenagem a Mandela. Chamada de Mandela, Ícone Mundial de Reconciliação, a mostra apresenta 50 painéis fotográficos que foram trazidas ao país pelo Instituto Brasil África (IBRAF) em parceria exclusiva com a Nelson Mandela Foundation, entidade criada por Mandela em Joanesburgo, na África do Sul.

A exposição busca apresentar ao público alguns aspectos menos conhecidos sobre sua vida. Entre elas, o fato de Mandela ter fugido de um casamento arranjado e de uma posição de destaque em uma sociedade tradicional para perseguir um futuro político. A exposição também apresenta um Mandela jovem, que corria longas distâncias e praticava boxe.

“Na exposição, é possível observar não apenas uma faceta de Mandela, mas várias. Madiba era muitos, por vezes uma figura controversa, e o que a exposição nos mostra é que ele era, acima de tudo, uma pessoa normal, com defeitos, assim como eu e você”, disse o professor João Bosco Monte, fundador e presidente do Instituto Brasil África, por meio de nota.

Em cartaz até 30 de agosto, a mostra já passou por Brasília e seguirá por outras cidades brasileiras até 2025. Em São Paulo, ela é gratuita e incluirá uma ação especial que será realizada hoje (18), data em que se celebra Mandela Day. O seminário A vida e o legado de Nelson Mandela acontece no CCSP, na Sala Jardel Filho, e tem início às 16h.

Seminário

Nesse seminário serão realizados debates que vão abordar as estratégias de Mandela para promover a paz, a luta contra o racismo e a discriminação e a educação como ferramenta para o desenvolvimento social e econômico.

Mais informações sobre a exposição e o seminário poderão ser obtidas no site do CCSP.

Plano Real deixa legado de juros altos e câmbio volátil

O plano que trouxe estabilidade para a economia deixou um gosto de amargo para certos setores da economia. Remédios essenciais do Plano Real para derrubar a hiperinflação nos anos 1990, os juros altos e a abertura do mercado financeiro dificultam a sobrevivência da indústria no país e tornam a economia mais vulnerável a volatilidades no câmbio, segundo economistas ouvidos pela Agência Brasil.

Nos últimos meses, a Taxa Selic, juros básicos da economia, tem estado no centro da discussão política, após o Banco Central (BC) interromper o ciclo de queda dos juros, mantidos em 10,5% ao ano na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom). O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem criticado fortemente o presidente do BC, Roberto Campos Neto, levando à volatilidade cambial.

Os debates acalorados sobre os juros e o câmbio são mais estruturais do que aparentam. Desde a criação do real, que completa 30 anos nesta segunda-feira (1º), os juros altos foram usados como instrumento para segurar o consumo. Outro instrumento foi o câmbio sobrevalorizado que tinha como objetivo estimular a entrada de produtos importados para impedir a explosão de preços dos produtos nacionais.

“O Plano Real teve duas âncoras, que são o câmbio e os juros. A taxa de câmbio se valorizou, com o real valendo mais que o dólar nos primeiros meses do plano, porque os juros foram para o espaço. Com isso, entraram importados para competir com os preços locais, então os preços foram jogados para baixo pela competição também. Mas isso começou a criar problemas de déficit na balança comercial”, explica a professora de economia da Fundação Getulio Vargas (FGV) Virene Matesco.

Economista-chefe da Way Investimentos e professor de economia do Ibmec, Alexandre Espírito Santo explica que os juros altos foram essenciais para atrair capital financeiro ao Brasil no início do plano econômico. “Um dos medos que se tinha era que a moeda antiga, que era hiperinflacionada, contaminasse a moeda que estava nascendo. Para isolar esse contágio, [a solução] foi usar o mecanismo da âncora cambial. Ao mesmo tempo, ter juro alto era importante, inclusive para atrair dinheiro estrangeiro e ajudar a manter o dólar baixo”, recorda.

Estouro da âncora

Inicialmente prevista para ser temporária, a âncora cambial ficou por quase cinco anos. De modelo de câmbio fixo, o país migrou para um sistema de bandas cambiais, cujo limite superior subia assim que o dólar atingia o valor máximo da banda. Com poucas reservas internacionais e vítima de ataques especulativos após as crises da Ásia, em 1997, e da Rússia, em 1998, o país liberou o câmbio em janeiro de 1999, criando um sistema de “flutuação suja”, em que o dólar flutua livremente a maior parte do tempo, e o governo intervém em momentos de maior volatilidade.

A âncora cambial foi substituída pelo sistema de metas de inflação, em vigor até hoje e alterado para um modelo de meta contínua a partir de 2025. O dólar saiu de cerca de R$ 1,20 no início de 1999 para cerca de R$ 5,50 atualmente.

Em contrapartida, a dívida pública externa, pilar de crises econômicas no século 20, foi quitada, com o país virando credor externo desde 2006. Isso porque as reservas internacionais dispararam em 25 anos, chegando a US$ 355,6 bilhões no fim de maio deste ano, impulsionada em boa parte pelos superávits comerciais decorrentes do agronegócio.

Complicações para a indústria

Apesar da mudança de regime cambial, o Plano Real deixou heranças ainda observadas na economia brasileira. Os juros altos continuam centrais para manter os preços dentro dos limites da meta de inflação, sendo criticados por economistas heterodoxos, pelo setor produtivo, pelas centrais sindicais e por correntes políticas como inibidor do crescimento econômico.

O economista Leandro Horie, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), diz que os juros altos e a dependência do mercado financeiro incentivam o agronegócio e desindustrializa o país. Segundo ele, a âncora cambial não desapareceu completamente, já que, em diversos momentos nos últimos 30 anos, o câmbio ficou mais valorizado que a taxa de equilíbrio, que não compromete o produtor nacional nem favorece as importações.

“O Plano Real foi baseado em uma sobrevalorização cambial e taxas de juros altas. Isso causou muito problema para a indústria. Porque os juros encareceram o investimento da indústria nacional e baratearam a importação. De fato, a indústria começou a fraquejar no fim da década de 1980, mas despencou na década seguinte. Paralelamente, a globalização aumentou a dependência de insumos importados, o que na prática torna o câmbio uma variável importante, mesmo com a âncora formalmente não existindo.”

Horie, no entanto, reconhece que, desde a pandemia, o real está desvalorizado. “Essa alta do dólar deve-se mais a fatores geopolíticos e aos juros altos nos Estados Unidos e em outras economias avançadas”, explica. “Mas os governos, sempre que podem, atuaram para baixar o dólar por meio da flutuação suja.”

Reformas

Se os economistas heterodoxos atribuem os juros altos à abertura do mercado financeiro, os economistas ortodoxos atribuem as taxas elevadas à falta de reformas que liberalizem a economia. Um dos criadores do Plano Real, Edmar Bacha diz que os juros altos são consequências de desequilíbrios históricos do país.

“A taxa de juros sempre foi alta no Brasil, mas a inflação era tão alta que as pessoas nem notavam. A taxa de juros era muito alta porque o Brasil era um país caloteiro. Estamos, ao longo desses anos, tentando evitar esse problema. Mas para isso é preciso ter contas do governo sob controle. Nós tínhamos essas contas sob controle, mas elas saíram de controle durante a pandemia. E agora está muito difícil o atual governo controlá-las novamente”, argumenta.

Virene Matesco, da FGV, diz que qualquer governo, não apenas o atual, deve comprometer-se com o superávit primário (economia de recursos para pagar os juros da dívida pública) para manter o legado do Plano Real. “Qualquer superávit, nem que seja zero e pouquinho por cento do PIB [Produto Interno Bruto], ajuda a passar uma mensagem correta”, diz.

Alexandre Espírito Santo, do Ibmec, defende a continuidade de reformas constitucionais. “Ainda temos várias reformas importantes para fazer, como a administrativa, que reduza os privilégios de parte do serviço público”, declara. Ele também cita a regulamentação da primeira fase da reforma tributária, que trata dos tributos sobre o consumo, e da segunda fase, que tratará do Imposto de Renda, como medidas necessárias para reduzir os juros no médio e no longo prazo.

*Colaborou Vanessa Casalino, da TV Brasil

Pesquisadores negros defendem legado antirracista de Machado de Assis

“Machado de Assis me ensinou como ser um homem negro”. A frase é do escritor e professor Jeferson Tenório, vencedor do Prêmio Jabuti de 2021 com o livro O Avesso da Pele. Dentre os muitos significados que “negro” pode ter, o intelectual contemporâneo recusou os que remetem a lugares de inferioridade. É de se esperar, portanto, que tenha como referência aquele que é considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos.

Machado de Assis nasceu há exatos 185 anos. Vida e obra sempre geraram debates dos mais variados, o que prova a complexidade de ambas. Há pelo menos uma década, ganharam proeminência a afirmação de uma identidade negra e a identificação de um tipo menos óbvio de engajamento antirracista. Para pesquisadores negros, é fundamental manter o debate em destaque, por evidenciar questões que ainda têm força no presente.

Jeferson Tenório, autor de O Avesso da Pele. Foto: TV Brasil/Divulgação – TV Brasil/Divulgação

“Causa espanto que em 2024 a gente ainda tenha que provar que ele era um escritor negro”, afirmou Jeferson Tenório, durante participação no seminário Machado de Assis e a questão racial” promovido pela Academia Brasileira de Letras (ABL).

Até o momento, não se conhece documento escrito pelo próprio Machado em que assuma uma determinada identidade racial. Que ele tenha sido negro é uma premissa dos pesquisadores a partir de, pelo menos, quatro questões: ascendência, fotografias, depoimentos de terceiros e contexto sociopolítico.

A mãe era uma mulher branca, portuguesa. O pai, descendente de escravos alforriados. Imagens dele em idade mais avançada, apesar de serem em preto e branco, mostrariam traços e tons mais próximos de uma pele negra. E relatos contemporâneos reforçariam essa característica.

Ana Flávia Magalhães Pinto, historiadora e diretora do Arquivo Nacional, considera como mais emblemático uma carta enviada para Machado em 1871 pelo escritor Antônio Cândido Gonçalves Crespo. O autor escreve: “A Vossa Excelência já eu conhecia de nome há bastante tempo. De nome e por uma secreta simpatia que para si me levou quando me disseram que era de cor como eu”. Não se sabe se Machado teria respondido a essa questão. Nenhuma carta dele para Crespo foi encontrada.

Para a historiadora, também se destaca a maneira como Machado apoiava frequentemente outros homens negros ou “de cor”, como era mais comum chamar à época os que não eram brancos. O que ela avalia como uma “rede antirracista”.

“Machado de Assis, ao longo de sua trajetória, fez-se um grande apoiador de outros homens de cor como ele. Uma forma de desqualificar a postura de Machado em relação à ascendência africana, é justamente dizer que ele teria se afastado de suas origens, que não teria se envolvido com os debates acerca dos destinos dos africanos e descendentes no Brasil”, disse a historiadora em seminário na ABL. “Encontrei José do Patrocínio em seus textos agradecendo a participação de Machado de Assis pelas lutas abolicionistas”.

Ana Flávia diz ser um mito que Machado de Assis quis se passar por branco e não se interessou pelos sentidos da liberdade e do racismo, temas que mobilizaram a sociedade à época. A forma como demonstraria esse engajamento, no entanto, não seria a mesma adota por outros nomes que ganharam protagonismo na luta, como o advogado Luís Gama. Haveria diferentes maneiras de viver a identidade negra e de defender causas abolicionistas e antirracistas.

“Entre aparentes polos opostos, um de discrição e outro de uma desenvoltura pública desconcertante muitas vezes, nós temos uma infinidade de outras possibilidades que fazem com que tenhamos de pensar como que, num país, com uma ampla presença de gente negra na liberdade, essas vidas se fizeram possíveis”, disse a historiadora. “Não era preciso esbravejar um orgulho pela origem africana, relembrar parentes presos à escravidão ou ostentar uma pele em tom de azeviche para ser obrigado a lidar com os constrangimentos gerados a partir da raça.”

 Ana Flávia Magalhães Pinto, historiadora e diretora do Arquivo Nacional. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil – Tomaz Silva/Agência Brasil

Paulo Dutra é professor de literatura e pesquisador de questões raciais na obra de Machado de Assis. Ele endossa a argumentação da historiadora, no sentido de que a luta do escritor no século 19 se dava de outra maneira, nas entrelinhas.

“Cada um usa a sua luta da forma como pode. Nem todas as pessoas vão ter essa iniciativa de ir para uma luta mais aberta. A ele tem que ser dado esse direito de não ter podido falar abertamente como outros falaram por várias razões. A culpa dele ter sido branqueado não é dele. É da sociedade brasileira, que ainda almeja um ideal europeu e branco de civilização”, disse o professor à Agência Brasil.

Jeferson Tenório reforça que Machado de Assis mostra como pensar a literatura a partir de um “devir negro”. A expressão, segundo Tenório, parte de duas ideias. Primeiro, a recusa em aceitar os significados de “negro” impostos por um pensamento colonial. Segundo, a aceitação de ser “negro”, mas sob sentidos por aqueles que foram vítimas da racialização. Para Tenório, é na estratégia discreta de apontar as origens racistas de uma sociedade injusta que Machado atua.

“Pensar o devir negro na literatura significa não esquecer de onde viemos. Não esquecer que a nossa fundação enquanto país se constituiu a partir do sequestro de corpos negros, da aniquilação de povos originários e do roubo de riquezas naturais. Assim, podemos pensar que Machado de Assis nos aponta uma literatura altamente sofisticada e que analisa com precisão as sutilezas da sociedade brasileira. A obra de Machado é uma recusa categoria do que se espera de um homem negro sob a égide da colonização”, disse Tenório.

Nesse sentido, recuperar Machado a partir de identidades e lutas afrodescendentes têm impactos diretos nos processos de autoafirmação da população negra.

“Há pessoas que desejam ser escritoras ao ver que o nosso maior escritor era uma pessoa afrodescendente. Isso produz um impacto social”, analisa Paulo Dutra. “Eu estive em uma comunidade do Rio de Janeiro, a convite de uma biblioteca, e Machado de Assis está grafitado nos muros. Essa recuperação da imagem de afrodescendente está levando Machado para um público menos elitizado. Machado saiu do povão e está voltando para o povão”.