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MPT resgata no Rock in Rio 14 trabalhadores em situação de escravidão

O Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (MPT-RJ) e a Auditoria Fiscal do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), informaram nesta quarta-feira (18) que resgataram 14 trabalhadores em condições análogas às de escravo de uma empresa de carregamento de equipamentos que prestava serviço para a produção do Rock in Rio 2024.

Na madrugada do dia 22 de setembro, uma força-tarefa de auditores fiscais e procuradores do Trabalho inspecionou as instalações do evento e encontrou os 14 funcionários dormindo em condições degradantes sobre papelões, sacos plásticos e lonas. As vítimas trabalhavam como carregadores dos mais diversos objetos, como grades, bebidas, barricadas, brindes e estruturas metálicas, atuando na montagem e limpeza de alguns espaços.

Segundo o MPT, os trabalhadores foram contratados com a promessa deo receber diárias que variavam entre R$ 90 e R$ 150, a depender do número de horas trabalhadas. Muitos dos empregados dobravam jornadas por dias seguidos na expectativa de aumento de ganhos, chegando a trabalhar por 21 horas em um dia e voltando a trabalhar após 3 horas de descanso. Apesar da promessa de remuneração, os valores não foram pagos integralmente, constatou o MPT.

A ação foi realizada a partir dos indícios de que trabalhadores da empresa contratada pela organizadora do evento estavam pernoitando no escritório da empresa no interior do festival, na Arena de Tênis do Parque Olímpico, e realizando jornadas em sequência.

Algumas das trabalhadoras resgatadas informaram que tomavam banho de caneca no banheiro feminino e tiravam a maçaneta da porta do sanitário para que os homens não entrassem no local.

Os trabalhadores disseram que permaneciam no local após o término das escalas durante a madrugada para dobrarem, ou seja, para iniciarem novas jornadas na manhã do mesmo dia e após já terem trabalhado por mais de 12 horas. Há relatos de funcionários que trabalhavam por dias seguidos sem ir para casa ou com intervalos de três horas entre as jornadas, trabalhando das 8h às 5h e reiniciando o trabalho às 8h na mesma manhã.

A equipe verificou o banheiro e constatou que o local estava muito sujo, com diversas roupas penduradas e com urina no chão, entre outras irregularidades.

Foi constatado o trabalho análogo à escravidão em decorrência das condições degradantes do alojamento, da jornada exaustiva e de trabalho forçado, diz o MPT. 

A Auditoria-Fiscal do Trabalho lavrou 21 autos de infração punindo a empresa contratada e 11 autos de infração em relação à realizadora do evento, Rock World S.A., que foi responsabilizada diretamente pelo trabalho análogo à escravidão, em razão da negligência na fiscalização do cumprimento da legislação trabalhista por parte da empresa contratada.

A fiscalização também emitiu guias de seguro-desemprego pelas quais os trabalhadores podem receber três parcelas de um salário mínimo cada.

O procurador do Trabalho Thiago Gurjão disse que após sucessivas audiências, as empresas não quiseram firmar termo de ajustamento de conduta (TAC) junto ao MPT/RJ. Ele informou que o MPT irá adotar medidas cabíveis para impedir que as irregularidades constatadas voltem a ocorrer, e também para garantir a necessária indenização por danos morais individuais às vítimas, além de indenização por danos morais coletivos.

O MPT requisitou informações à empresa que emitiu o certificado de “evento sustentável” para o Rock in Rio, e cobrou quais providências serão adotadas a partir da constatação de trabalho escravo na edição de 2024. O MPT também questionou as empresas apoiadoras do evento para que informem quais medidas serão adotadas, considerando o possível uso de trabalho escravo na divulgação de suas marcas, inclusive na montagem de estandes, painéis e placas de anúncios.

Segundo o auditor-fiscal do Trabalho Raul Capparelli, o resgate de trabalhadores não é inédito no Rock in Rio. No evento de 2013, 93 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão em uma empresa do ramo de fast food. Na edição de 2015, foram resgatados 17 trabalhadores, também de empresa que atuava com alimentação. 

Este ano, a empresa que organiza e produz o Rock in Rio foi considerada diretamente responsável pela exploração do trabalho em condições análogas às de escravo, pois os trabalhadores atuavam diretamente na produção do evento como carregadores.

“A gente recebe muitas denúncias de matéria trabalhista, sobretudo no pré-evento, quando a estrutura está sendo montada. Já em algumas edições a gente percebeu a recorrência do recebimento de denúncias de trabalhadores, há também fraudes trabalhistas, trabalhadores sem carteira assinada, e contratos de pessoa física como empresa ou microempreendedor. As irregularidades se repetem. A gente quase não vê avanço”, disse Isabel Maul, vice-procuradora chefe do MPT-RJ.

Nota do Rock in Rio

A Rock World, empresa organizadora do Rock in Rio, declarou enorme estranhamento à divulgação do Ministério Público de fatos tão graves que sequer foram julgados. 

“Tais acusações ainda precisam ser esclarecidas para que, dessa forma, medidas cabíveis possam ser tomadas. A Rock World repudia qualquer forma de trabalho que não siga as regras de respeito ao trabalhador. Destaca também o compromisso em instruir todas as empresas terceirizadas e fornecedores a realizarem os processos de contratação dentro da legislação brasileira. Por fim, informa que atua de forma transparente e que integrantes do Ministério Público do Trabalho acompanharam todas as etapas de contratação”, diz a nota.

O comunicado informa que ao longo de 24 edições, 300 mil empregos diretos e indiretos foram criados e milhares de pessoas fora da Cidade do Rock foram beneficiadas por meio dos projetos sociais que o festival apoia, “reafirmando os valores de pluralidade, comunidade, sustentabilidade e seu compromisso com a construção de um mundo melhor para todos”.

“Apenas na última edição do Rock in Rio de 2024, foram gerados mais de 32 mil postos de trabalho. Tais contratações foram distribuídas por 160 projetos de marcas e mais de 320 projetos de fornecedores, todos realizados e apresentados em mais de 30 mil documentos apresentados e analisados pelos órgãos competentes”, finaliza a nota.

MPF cobra do Banco do Brasil reparação por apoio à escravidão

O Ministério Público Federal (MPF) no Rio de Janeiro reforçou nesta semana a cobrança para que o Banco do Brasil (BB) apresente ações de reparação à população brasileira afrodescendente. A medida funcionaria como uma indenização pelo apoio da instituição financeira à escravidão no Brasil, no século 19.

A cobrança se deu em audiência pública realizada na última terça-feira (22), comandada pelo procurador regional dos Direitos dos Direitos do Cidadão Julio José Araujo Junior, com representantes do Banco do Brasil, do Ministério da Igualdade Racial (MIR) e do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

A atuação do MPF faz parte de um inquérito aberto contra o BB em setembro de 2023. A investigação é baseada no estudo de 14 pesquisadores de universidades brasileiras e americanas. Eles revelaram ligações do BB com o comércio de africanos escravizados.

Os pesquisadores apontam que havia “vínculos diretos entre traficantes e o capital diretamente investido em ações do Banco do Brasil”. Além disso, acrescenta que “a instituição também se favoreceu da dinâmica de circulação de crédito lastreada na propriedade escrava que imperou ao longo de toda a primeira metade do século XIX”.

O Banco do Brasil reconhece que a instituição teve ligação com a escravidão e, em novembro, emitiu um pedido público de desculpas à população negra.

Apesar do reconhecimento do BB, o MPF emitiu ao banco estatal e ao Ministério da Igualdade Racial (MIR) recomendações para que fossem indicados recursos específicos para as ações de reparação, assim como a definição de medidas prioritárias, de modo que o pacto pela igualdade racial não se tornasse “mera carta de intenções”.

“As respostas apresentadas pelas autoridades nada trouxeram de acréscimo. A gente ainda não teve indicações concretas dessas medidas”, criticou o procurador Julio Araujo no início da audiência pública.

O também procurador dos Direitos do Cidadão Jaime Mitropoulos acrescentou que o pedido formal de desculpas do BB não é uma ação suficiente.

“Medidas simbólicas não nos bastam. O pedido de perdão, por si só, não é suficiente. A política pública que já vem sendo levada adiante pelo próprio Banco do Brasil também não é suficiente”, declarou.

“É necessário que a gente comece a delinear quais são, efetivamente, as reparações que o Banco do Brasil vai propor, quais são aquelas que, em conjunto com a sociedade, nós poderemos concretizar”, completou.

Sociedade civil organizada

Em dezembro de 2023, o MPF abriu uma consulta pública para receber da sociedade civil sugestões de reparação que possam ser realizadas pelo banco estatal.

Foram obtidas mais de 500 propostas, apresentadas por 37 entidades, entre elas o Movimento Negro Unificado (MNU), a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), a União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora (Uneafro Brasil), universidade e grupos culturais e religiosos.

Algumas das instituições que contribuíram com propostas participaram da audiência pública desta semana.

A ativista e estudante de ciências sociais Brenna Vilanova representou o MNU do Distrito Federal e Entorno.

“A gente precisa garantir que todas as sugestões que os movimentos negros enviaram sejam implementadas e acompanhadas, que esse plano de ação tenha prazos definidos”, pediu.

Júlia Mota, que participou representando o Fundo Agbara, que reúne mulheres negras, fez uma ligação entre as desigualdades sociais atuais e a histórica desigualdade racial.

“As desigualdades sociais do Brasil têm as suas gênese na desigualdade racial e no capitalismo racial. É de responsabilidade de um banco, como o Banco do Brasil, atuar pelo fim de violências econômicas, oferecendo renda básica para as populações negras, bem como um fundo de reparação para investimentos em territórios, empreendimentos, organizações, ações de pessoas negras, além de investimento para o desenvolvimento de territórios quilombolas e tradicionais”, elencou.

Banco do Brasil

O Banco do Brasil foi representado na audiência pelo consultor jurídico João Alves e pela gerente de Relações Institucionais Nivia Silveira da Mota. Eles lembraram que o banco já realiza uma série de ações para busca da equidade racial e de outras minorias representativas, como pessoas com deficiência.

Pela primeira vez na história, o BB é presidido por uma mulher negra, a administradora e funcionária de carreira Tarciana Medeiros.

Eles informaram que o banco lançará no dia 4 de dezembro de 2024 uma série de ações relacionadas com a reparação à população negra. No entanto, acrescentarem que parte das propostas sugeridas pela sociedade civil não pode ser realizada pelo banco, por estarem fora da alçada de atuação. Um exemplo, citou Alves, é o pagamento de renda básica, que depende de iniciativas e orçamento autorizado pelo Congresso Nacional.

Nivia Mota destacou que a instituição leva em consideração as demandas propostas, e que dez diretorias do banco participam da elaboração do plano de ação.

“Estamos tentando traduzir e levar para o nosso plano de ação, com o máximo de aproximação que pudermos fazer, considerando o orçamento que for disponibilizado”, afirmou ela, acrescentando que foram realizadas oficinas, escutas e consultas a pesquisadores e estudantes da temática racial.

O consultor jurídico do BB avalia que acreditar que apenas uma única instituição, por maior que seja, vai resolver o problema de exclusão de afrodescendentes ou outras populações excluídas é “fora da realidade”.

“A avaliação que a gente tem é que precisamos unir forças”, disse. “O banco não é o melhor, é uma das instituições que têm tecnologia, tradição e intervenção suficiente para ajudar outras instituições”, completou, enfatizando a entonação da expressão “uma das”.

Ministérios

O Ministério da Igualdade Racial foi representado pela coordenadora de Ações Governamentais, Isadora de Oliveira Silva. Ela informou que o MIR ainda não tem pronto um plano de ação e que está comprometido em ouvir a sociedade para elaborar as medidas.

“O pacto teve momentos de escuta da sociedade civil, como de outros órgãos públicos e diferentes parceiros para coletar subsídios, sugestões para esse conteúdo do pacto. É isso que está passando por sistematização”, disse.

A coordenadora-geral de Erradicação do Trabalho Escravo, Andreia Figueira Minduca, representou o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Ela explicou que, na pasta, as contribuições para o pacto pela igualdade racial são tratadas em conjunto pela Coordenação-Geral de Memória e Verdade da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Pessoas Escravizadas.

Ela afirmou que o tema reparação é transversal a outros problemas atuais do país, como a existência do trabalho escravo doméstico, que tem as mulheres negras como 92% das vítimas.

“Que esses processos venham, a cada dia, somar e tentar garantir o mínimo de dignidade para trabalhadoras e trabalhadores”, disse.

Polícia resgata 6 pessoas em condições análogas à escravidão no RJ

Ação da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) em Paty do Alferes, na região do Vale do Café, encontrou na última quarta-feira (24) seis pessoas em condições análogas à escravidão. Os trabalhadores, todos paraguaios, estavam alojados em uma fábrica de cigarros clandestina e enfrentavam jornadas excessivas, sem descanso semanal.

Segundo o comando do 10º Batalhão da Polícia Militar, ao entrar no local, os agentes foram recebidos com disparos de armas de fogo. Dois suspeitos que efetuaram os disparos fugiram em direção à mata. 

Além dos reféns, mais de um milhão de cigarros falsificados foram encontrados no local. Segundo a Polícia Militar, a fábrica passará por perícia, e a 96ª Delegacia de Polícia Civil foi acionada para registro da ocorrência.

*Estagiária sob supervisão de Vinícius Lisboa

MPT resgata 13 jovens de situação análoga à escravidão em SP

O Ministério Público do Trabalho (MPT) da região de Campinas, em São Paulo, resgatou 13 adolescentes de uma fazenda na cidade de Cerquilho, interior do estado, onde se encontravam em situação de trabalho análogo à escravidão. A operação ocorreu na segunda-feira (22) e hoje o MPT informou que, por meio das informações obtidas da Polícia Civil, Conselho Tutelar, Guarda Municipal e Polícia Federal, vai instaurar um inquérito para apurar em detalhes o que acontecia com os adolescentes.

Ainda nesta terça-feira (23), o Ministério do Trabalho multou a fazenda em R$ 120 mil, mas esse valor pode ser majorado após uma nova visita ao local, que será realizada nos próximos dias pelas polícias Civil e Federal e integrantes do Ministério do Trabalho e do Ministério Público.

Os adolescentes enfrentavam uma jornada de trabalho extenuante, que começava de madrugada e seguia até o anoitecer. Eles faziam a colheita de batatas, porém, não tinham acesso a banheiros, alimentação digna ou equipamentos de proteção. Luvas, se quisessem, deviam comprar do arrendatário da área. Foram presas três pessoas.

O MPT informou que somente no ano passado foram registradas 2.176 crianças em situação de trabalho infantil no estado de São Paulo. No município de Sorocaba, próximo a Cerquilho, 99 crianças foram resgatadas.

Operação resgata 12 pessoas em condições análogas à escravidão

A Polícia Federal (PF), em parceria com o Ministério Público do Trabalho e o Ministério do Trabalho e Emprego, informou nesta terça-feira (2) que resgatou 12 trabalhadores em condições degradantes em uma fazenda localizada na cidade de São Raimundo das Mangabeiras (MA).

A operação aconteceu no período de 17 a 26 de junho e incluiu ainda fazendas nos municípios de São Domingos do Azeitão, Pastos Bons e São João Dos Patos, todos no Maranhão, após denúncia da existência de trabalhadores em condições análogas à escravidão.

Em nota, a corporação informou que, nas demais fazendas, apesar de não terem sido encontrados trabalhadores em condições degradantes ou precárias, a fiscalização constatou o descumprimento da legislação trabalhista, de normas de segurança e de saúde no ambiente de trabalho.

Os estabelecimentos, segundo a PF, foram notificados e autuados por descumprimento das normas trabalhistas.

 

Violência contra idosas: quando o trabalho doméstico vira escravidão

A falta de um olhar para o trabalho do cuidado de pessoas de famílias empregadoras ou doméstico, realizado por idosas que desempenharam funções análogas à escravidão em áreas rurais, dificulta a identificação de violência contra esta parcela de mulheres. A conclusão é da procuradora do Ministério Público do Trabalho, Juliane Monetti, que atua na área de combate a este tipo de trabalho há 15 anos.

Segundo a procuradora, anteriormente era comum encontrar nas operações de fiscalização, em áreas rurais, homens em condições análogas à escravidão. Mas, no caso de mulheres, não havia resgates. De acordo Juliane Monetti, elas estavam desempenhando funções na cozinha das próprias casas para alimentar os trabalhadores da propriedade. Segundo a procuradora, a justificativa era de que essas mulheres não estavam prestando serviços para as famílias e, por isso, não eram incluídas na condição de trabalho análogo à escravidão.

“Um trabalho exercido no âmbito doméstico também é um trabalho. Tem uma questão de gênero muito forte, porque mulheres que estão trabalhando com as famílias e são levadas pequenas para trabalhar de babá, depois viram faxineira, cozinheira e no final da vida fica cuidando dos mais velhos, isso era muito naturalizado”, explicou, indicando que, hoje, os casos de trabalho do cuidado já estão sendo mais foco de atenção.

De acordo com a procuradora, neste caso, a defesa das pessoas é dizer que a mulher é como uma pessoa da família, mas, na verdade, “ela não está no inventário, não vai ser herdeira, não foi para a escola, não tem uma profissão, não tem liberdade para fazer uma viagem de férias. Essa pessoa está ali apenas para servir fazendo o trabalho do cuidado. Acho que a sociedade amadureceu esse olhar e passou a perceber que essas mulheres nessa condição, a maioria é de idosas, é exploração do trabalho”, afirmou.

Caso Maria de Moura

Uma situação de violência contra idosos que chamou muita atenção quando foi descoberta é a de Maria de Moura, de 87 anos. Em 2022, depois de uma operação do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro (MPT-RJ) em conjunto com o Ministério do Trabalho e Emprego, ela foi resgatada da casa de uma família, para a qual, por 72 anos, desempenhou funções de doméstica. Os fiscais, que chegaram ao local depois de uma denúncia, constataram que a idosa estava em situação análoga à escravidão.

Ana Luiza de Moura Lima, de 42 anos, sobrinha de Maria, disse que a história da tia começa quando, aos 12 anos, ela foi trazida de Vassouras com o argumento de que faria companhia à filha dos patrões dos pais de Maria que também estava se mudando para o Rio. Eles trabalhavam na fazenda daquela família, no município do centro-sul do estado do Rio. Com o passar dos anos, a promessa de que teria uma vida igual à da menina não foi cumprida e, na verdade, Maria era doméstica da casa, no bairro de Maria da Graça, na zona norte da capital fluminense, e nem mesmo frequentou escolas.

“O mesmo tratamento da menina, dariam para a minha tia. Escola, alimentação, eram duas crianças. Minha avó, vendo, pelo menos, um filho ter educação, deixou a minha tia vir. Minha tia, negra, longe da família e pobre ficava em casa enquanto a outra ia estudar e, ali, aconteceu, virou empregada do lar. A minha tia não tem escolaridade, muito mal sabe escrever o nome”, revelou Ana Luiza à Agência Brasil.

A menina cresceu, e quando casou se mudou para o bairro do Méier, também na zona norte, levando Maria, que continuou com os trabalhos de doméstica e cuidando da família da patroa. Ana Luiza suspeita que a tia era induzida a esconder a condição de vida. “Sempre que a gente entrava no assunto carteira assinada, benefícios, ela falava ‘isso é comigo, eles fazem tudo direitinho’. Nunca deu espaço para a gente brigar por ela sobre isso”, relatou, acrescentando que o patrão acuou a tia no carro, no momento em que ela estava sendo resgatada. “Uma pessoa que fez isso na frente das autoridades, imagina o que fazia quando estavam só ela e eles”.

Os parentes ainda conseguiam ter algum tipo de contato com ela, que, quando era mais nova, chegava a se encontrar esporadicamente com a mãe, em Vassouras, nas vezes em que os patrões iam à fazenda e, quando podia ir sozinha, permanecia no máximo por dois dias. No entanto, durante a pandemia, as dificuldades de falar com a tia se agravaram, e ela nem atendia o celular.

“Na pandemia, perdemos o contato total, e quando eu ligava, o telefone só tocava e ninguém atendia”, disse acrescentando que isso aconteceu até o dia em que o patrão, neto do casal que trouxe Maria para o Rio, atendeu, e ao ser questionado por Ana Luiza sobre o que estava ocorrendo, respondeu que não estava acontecendo nada.

Segundo a sobrinha, quando a tia foi resgatada no Méier, ela apresentava sinais de demência e de comprometimento da visão no olho direito, em consequência de uma cirurgia de catarata malsucedida e com o outro já não enxergava. Foi assim que a idosa chegou à casa da sobrinha, na Cidade de Deus, zona oeste do Rio, onde passou a morar com a família. A idosa perdeu as forças nas pernas e atualmente não consegue caminhar.

“Hoje o meu sentimento é de revolta. Tenho hoje uma escrava viva dentro do meu lar. Infelizmente é triste, mas essa é a realidade. Ela abdicou da vida dela, trabalhou a vida toda para brancos. Uma negra que, desde lá de trás, trabalhou para branco a vida toda. Ela recebeu todos os maus tratos que um escravo recebia lá atrás dos patrões. Eles diziam que ela fazia parte da família. Isso não acontecia, porque quando se faz parte da família, usa todos os cômodos da casa, todos os veículos. Ela só era empregada, e sempre foi. Nós, os parentes, não podíamos chegar lá sem avisar, porque a casa não era dela”, desabafou Ana Luiza.

Denúncia

A procuradora do Ministério Público do Trabalho, Juliane Monetti, contou que a família de dona Maria tentava contato, mas o patrão a repelia e não deixava. Para estar com ela, tinha que ser na presença dele. Nem para falar no celular, ele deixava. “Realmente era uma violência constante não só pela exploração do trabalho, mas também a violência psicológica. A família [dela] foi denunciando a um órgão e outro, até que chegou ao Ministério Público do Trabalho. Aí, conseguimos fazer uma operação que resgatou a trabalhadora dessa condição de violência. Essa é uma situação que a gente tem verificado, em casos de exploração em trabalho doméstico que se repete”, informou em entrevista à Agência Brasil.

A procuradora identificou que o caso tem componentes de gênero e de idade, comuns em condições em que a trabalhadora já convive com a família nessa situação de trabalho doméstico há muitos anos. Situação que acaba se repetindo porque a sociedade vai naturalizando.

“O que é importante é que a gente divulgue os casos que existem para que as pessoas percebam que isso é irregular, é ilegal, é um crime e que a sociedade possa denunciar situações como essa. Quando você percebe que existe uma pessoa convivendo com uma família e está ali apenas para prestar serviço e servir, os direitos trabalhistas e a cidadania não são respeitados”, completou.

Ressarcimento

Como se trata de uma grave violação de direitos humanos, e foi configurado trabalho análogo à escravidão, não incide a prescrição. Por isso, o MPT propôs uma ação em que pede o pagamento das verbas trabalhistas de todo o período desde que foi morar com a família. “Além disso, a gente também pede indenizações por danos morais causados para a trabalhadora pela vida toda dedicada a este trabalho sem dignidade, com desrespeito aos direitos mais básicos de cidadania e direitos humanos. Mas, infelizmente, por maior que seja a indenização que ela venha a receber, isso não repara uma vida toda nessa situação”, disse a procuradora do MPT.

Depois de denúncia do Ministério Público Federal, em março de 2024, a Justiça tornou réus mãe e filho. Os dois eram patrões de dona Maria. “A gente está buscando os direitos trabalhistas dela e toda essa documentação, toda a configuração do crime, tudo isso foi encaminhado ao Ministério Público Federal, que entrou com ação penal contra os réus. Eles estão respondendo na Justiça Federal como réus pela exploração de crime de submissão de trabalhador à condição análoga à escravidão”, completou Juliane Monetti.

Em 2017, a procuradora atuou em outro caso, no interior de Minas Gerais. Dessa vez, uma senhora de 67 anos, que o cartão da aposentadoria ficava na mão da patroa e, ainda, era obrigada a comprar a sua comida na venda do pai da empregadora. Ela também não podia sair nos fins de semana, porque tinha que cuidar dos netos da família. “Era uma senhora viúva que não tinha para onde ir e acabou caindo nessa situação de exploração deste trabalho”, relatou, defendendo a divulgação dos canais de denúncias para incentivar a sociedade a fazer os registros.

Dívida histórica: como Portugal pode reparar escravidão

Durante a semana, o discurso do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, sobre a responsabilidade do país pela escravidão no Brasil repercutiu em diferentes setores da sociedade nos dois lados do Atlântico. Entidades civis de defesa de direitos humanos, acadêmicos e autoridades políticas receberam positivamente o discurso, mas cobraram um projeto concreto de reparação pelo conjunto de crimes e violações cometidos durante o processo de colonização.

Foi a primeira vez que um presidente de Portugal reconheceu a responsabilidade de forma mais contundente, apesar de a posição não ser compartilhada pelo conselho de ministros do governo português.

“Temos que pagar os custos. Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso”, disse Marcelo Rebelo de Sousa.

Negres a fond de calle (Navio negreiro) – Tela de Johann Moritz Rugendas (1830) – Johann Moritz Rugendas

E como quantificar exatamente “custos” e prejuízos causados por um sistema de exploração e opressão que durou séculos? Seria possível chegar a um valor em dinheiro? Ou faria mais sentido falar em compensações políticas, sociais, culturais? Especialistas ouvidos pela Agência Brasil indicam uma série de medidas e caminhos que deveriam ser tomados pelo Estado português – e brasileiro – para reparar crimes cometidos contra africanos, indígenas e descendentes.

Formas de reparação

Naiara Leite, coordenadora-executiva do Odara – Instituto da Mulher Negra, participou do Fórum de Afrodescendentes na Organizaçãod as Nações Unidas (ONU), em Genebra, uma semana antes da declaração do presidente português. Na ocasião, representantes de Portugal discursaram contra o racismo, mas foram criticados por entidades brasileiras de mulheres negras, que cobraram posicionamento mais contundente sobre responsabilidade pela escravidão e propostas de reparação.

Com a nova declaração portuguesa, Naiara alerta para a necessidade de incluir os principais prejudicados entre aqueles que vão construir as medidas de reparação. Isso para que elas não sejam atos isolados de políticos.

“Minha grande preocupação é que as organizações da sociedade civil precisam ter uma participação ativa nos grupos de trabalho e nos processos. Caso contrário, não vamos alcançar um projeto de reparação que de fato dê conta de reduzir ou de responder aos impactos do colonialismo e da escravidão”, diz Naiara.

No evento da ONU, as entidades apresentaram demandas sobre o que entendem ser caminhos adequados para o Estado português:

. Criação de museus, centros de memórias e outros equipamentos públicos que reconheçam os impactos da colonização sobre a população afro-brasileira;

. Incluir no currículo oficial da Rede de Ensino portuguesa a obrigatoriedade da temática “História dos Impactos Nocivos do Colonialismo Português para o Contexto Brasileiro”;

. Firmar pactos e acordos de colaboração efetivos com o Brasil – bem como junto a outros países que foram colonizados por Portugal – com o objetivo de promover a reparação a partir de investimentos financeiros, da salvaguarda de memórias e de revisão dos pactos e parcerias de nacionalidade e trânsito entre os países;

. Encorajar todos os países da Europa fundados a partir de sistemas coloniais a adotar medidas reparatórias aos países do Sul Global que se fundaram a partir da exploração colonial;

. Adotar medidas efetivas de combate à xenofobia e ao racismo contra a população afrodescendente em Portugal.

Humberto Adami, que é presidente da Comissão da Verdade da Escravidão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ), destacou o aspecto financeiro da reparação. Ele entende que seria importante a criação de um fundo em dinheiro, com aplicações de todos os Estados responsáveis pela escravidão. Um possível modelo seria aquele constituído para os judeus depois do Holocausto.

Mas a demanda é complexa e, provavelmente, ainda levaria um tempo para acontecer. Por isso, são necessárias ações imediatas.

“É complicado levantar esse dinheiro de forma rápida. Não precisa esperar só a constituição de um fundo e falar em reparação daqui a duas gerações. Pode trabalhar para já alcançar pessoas que estão vivas hoje. Uma forma inicial é fazer pequenas reparações que possam ir mitigando os efeitos devastadores da escravidão negra na sociedade brasileira de hoje. Há várias pautas que apontam nessa direção: a demarcação de terras quilombolas, a questão dos indígenas, as cotas raciais. Todas são medidas reparatórias. Portugal pode atuar em conjunto com o Brasil nessas medidas que já estão em andamento”, diz Adami.

“Custos” da escravidão

Diferentes nações europeias participaram de processos de colonização e escravização, mas quando se fala do tráfico transatlântico de africanos é impossível não destacar a atuação de Portugal. Foi a primeira nação europeia moderna a se apossar de um território africano: Ceuta, no norte do continente, em 1425. Nas décadas seguintes, criou entrepostos na parte Atlântica da África, conhecidas como feitorias, de onde podiam ser organizadas expedições para o interior em busca de bens de valor, como metais preciosos e pessoas.

Acredita-se que a primeira remessa de escravizados para Portugal tenha ocorrido no ano de 1441, quando eram obrigados a fazer trabalhos pesados de agricultura ou mineração. A demanda de trabalhadores forçados aumenta com o estabelecimento de engenhos de açúcar nas ilhas Atlânticas. Com a conquista de um vasto território na América, nativos indígenas e africanos vão se constituindo como principal mão de obra. Uma das estimativas de pesquisadores indica que foram trazidos pelo menos 5,8 milhões de africanos escravizados para colônia brasileira entre os séculos 16 e 19.

Essas pessoas poderiam ser capturadas diretamente à força no continente ou obtidas por meio de negociações com líderes locais. Prisioneiros de guerras entre povos rivais viravam mercadorias de troca por cavalos, armas e outros bens. É nesse ponto que se tornou comum ouvir de revisionistas e grupos de extrema direita que a África é igualmente responsável pela escravidão. Quem não se lembra da frase “o português nem pisava na África, eram os negros que entregavam os escravos”, dita pelo ex-presidente da República?

A historiadora Monica Lima, que é professora de história da África e coordenadora do Laboratório de Estudos Africanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LEÁFRICA-UFRJ), explica que essa é uma falsa equivalência. Apesar de praticada anteriormente por alguns povos do continente africano, a escravização foi multiplicada pela demanda e investimento europeus.

“Alguns africanos enriqueceram com o tráfico de escravizados, mas foi algo efêmero, de curta duração, ligado a soberanos de determinados locais. Que podiam ser destituídos e se tornar escravizados na sequência. Não há enriquecimento da sociedade africana. Povos foram dizimados e laços familiares rompidos. Por outro lado, há todo um enriquecimento de setores importantes das sociedades europeias e das elites coloniais, que é algo perpétuo, transferido para gerações seguintes. Não é nem possível comparar o tipo de enriquecimento dos grandes traficantes situados no continente europeu ou nas Américas”, diz Monica.

Um outro argumento muito usado é o da ausência de responsabilidades atuais, já que a escravidão teria sido um fenômeno que aconteceu há muito tempo e que não teria mais relação com o presente.

“Há pessoas que falam que a escravidão negra era legal naquela época, que as pessoas escravizadas já morreram e umas que questionam o que elas têm a ver com isso hoje, se elas não escravizaram ninguém. E o curioso é que esses argumentos coincidem com os das pessoas que eram contrárias à abolição da escravidão no século 19. Que pediam para a escravidão continuar mais um pouco, porque era interessante para a cultura da cana-de-açúcar, que ia quebrar o Banco do Brasil, etc.”, diz Humberto Adami. “As pessoas precisam entender que os tratados internacionais garantem não ter havido prescrição. O relógio está valendo até hoje. Os crimes da história da escravidão são imprescritíveis”, diz Humberto Adami.

“A base da prosperidade e da riqueza que permitiu a construção dos Estado nacionais foi o trabalho dessas populações escravizadas. A dívida é enorme. As pessoas foram desprovidas de tudo, foram arrancadas das suas terras e, uma vez abolida a escravidão, escravizados, e descendentes não foram beneficiados por nenhum tipo de política para reconstruir as suas vidas”, diz Monica Lima. “Hoje, nas regiões onde não tem saneamento básico, escolas com piores condições, transporte público sucateado, são justamente as regiões onde vivem majoritariamente descendentes de escravizadas”.

Para Naiara Leite, um dos principais legados da escravidão é o racismo, que atinge com mais intensidade as mulheres negras, que ocupam a base da pirâmide social.

“Um dos impactos até hoje tem relação com a violência do Estado e como o racismo opera nas instituições de segurança pública. É em função dessa carga colonial que a população negra sequer tem direito à vida”, diz Naiara Leite. “Pensando na violência doméstica, o número de feminicídio de mulheres brancas diminui ao longo dos anos e o de mulheres negras aumenta. Outro exemplo é a pauta do trabalho, em que mulheres negras são maioria nas atividades domésticas. E isso é um legado colonial sobre nossos corpos e os lugares que ocupamos. Uma reatualização do papel da mucama”, diz Naiara.

Responsabilidade brasileira

Ao analisar responsabilidades pela escravidão, é importante lembrar que o sistema continuou presente no Brasil depois de separar-se de Portugal em 1822. E que, como Estado independente, o sistema durou até 1888, quando foi o último lugar nas Américas a decretar a abolição.

A fala do presidente português durante a semana pode servir, portanto, de referência para que o próprio Estado brasileira intensifique as medidas de reparação para comunidades e instituições afrodescendentes, dizem os especialistas.

“É preciso que o Brasil avance nessa etapa também, porque os negros brasileiros sofrem no dia a dia as repercussões da escravidão. Não dá para achar que só Portugal é responsável, se aqui não se faz o dever de casa e continuamos praticando o genocídio da população negra, a exclusão social, o racismo no mercado de trabalho, ataques e fraudes às cotas raciais”, diz Humberto Adami.

“O governo de Portugal, do Brasil e de outros países que venham a reconhecer a escravização e o papel no processo de colonização devem compreender que não estão fazendo nenhum favor ao povo negro, aos afrodescendentes, às populações africanas. Isso é um dever, uma obrigação. O primeiro passo é o reconhecimento. Mas que a gente não leve mais anos ou séculos para que os países apresentem qual é o projeto de reparação”, cobra Naiara Leite.

“Reparação também envolve investir na qualidade de vida das pessoas. Isso é pagar uma dívida histórica. Não é nenhum privilégio. É uma reparação e uma possibilidade da sociedade brasileira se reconciliar com a sua própria história”, diz Monica Lima.