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Calouros 60+ estreiam na Universidade de Brasília em 18 de março

Dia 18 de março, uma segunda-feira, será um dia especial para a Universidade de Brasília. A partir da data, 136 calouros com 60 anos ou mais, os 60+, iniciam ou recomeçam suas vidas acadêmicas. Eles são os estudantes aprovados no fim de fevereiro no vestibular que a UnB realizou especialmente para esse público.

Os novos alunos têm de 60 a 78 anos. Seis de cada dez estudantes são mulheres e quatro são homens e vão estudar em 37 cursos presenciais, diurnos e noturnos, nos quatro campi da UnB – Asa Norte, Ceilândia, Gama e Planaltina.

Os calouros venceram uma corrida bem afunilada. Mais de 3 mil pessoas se inscreveram, 1.979 realizaram a prova de redação em língua portuguesa no dia 28 de janeiro. Desses, menos de 7% estão entrando na universidade. A graduação com maior número de inscritos foi o curso de psicologia, com 566 candidatos para apenas duas vagas.

A grande procura não foi prevista pela UnB. “Foi uma surpresa muito grande. A gente não esperava realmente essa quantidade”, disse Thaís Lamounier, diretora de Inovação para o Ensino de Graduação, do Decanato de Ensino de Graduação.

Para ela, o convívio diminuirá preconceitos contra idosos e haverá “troca” entre os alunos idosos e os jovens alunos de graduação. “Os mais velhos vão ensinar bastante com a sua experiência. Os mais jovens vão ensinar sobre questões institucionais e ajudar na adaptação do público mais velho à universidade.”

A diretora avalia que a UnB, pioneira na política de ingresso por cotas raciais, vai ficar “ainda mais colorida” com as pessoas idosas de cabelos brancos. “Esses cabelos brancos vão começar a escrever uma nova história da instituição, pode ter certeza.”

Nova história

Brasília(DF) – Valdina Ferreira, caloura de biologia, e sua filha Patricia. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Reescrever a história para qual estava predestinada foi o que sempre fez Valdina Ferreira Paiva, ou apenas Dina, caloura de licenciatura de biologia (período noturno). Ela tem 60 anos, é mãe solo de três filhas e já trabalhou como empregada doméstica e diarista.

Por ter morado em zona rural onde não havia escola, ela parou de estudar. Depois de adulta, recuperou o tempo perdido fazendo supletivo para concluir o ensino fundamental e em seguida cursando a Educação de Jovens e Adultos (EJA) para formar no ensino médio.

A oportunidade de estudar apareceu após passar em um concurso público aos 28 anos para trabalhar no Jardim Botânico de Brasília, onde ainda se dedica ao herbário com mais de 40 mil espécies. Foi no trabalho também que passou a se interessar por biologia e por isso nutre expectativa positiva para a vida universitária. “Acredito que vai ser muito bom. Vou desbravar conhecimentos e reafirmar o que eu já aprendi na prática.”

Dina não vai se afastar do trabalho e pretende ir além. “Pra quem não gosta de ficar parado, eu vou ter muita coisa pra fazer ao longo dessa minha vida. Posso entrar na área de pesquisa”, prevê.

De exatas para humanas

Brasília(DF) – João Aloisio, calouro de história. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

No caso de João Aloísio Vieira, 63 anos, a universidade será a ocupação principal após se aposentar em setembro, como analista de infraestrutura do Ministério das Comunicações. Engenheiro elétrico em sua primeira graduação há 40 anos, João vai cruzar a fronteira entre as ciências exatas e as ciências humanas. Ele é calouro de história (período diurno).

“Talvez eu possa me interessar pela história da matemática, porque está relacionada com as exatas”, especula o novo aluno da UnB. A mudança de território de conhecimento e a expectativa de se relacionar com pessoas bem mais jovem não assusta ao novo estudante. “Olha, eu tenho uma expectativa muito boa, eu sou assim fácil de lidar. Tenho facilidade de conversar com as pessoas, me dou bem com jovens, inclusive. Então, acho que vai ser muito bom,” afirmou.

Brasília(DF) – Augusto Ferraz, calouro de física.  Foto Wilson Dias/Agência Brasil

Já aposentado, Augusto Gonçalves Ferraz, de 63 anos, também está sereno com sua estreia na UnB e o convívio com a mocidade colega. “Talvez seja diferente no começo, mas acredito que é só ali no começo, né? Creio que com o tempo, poucos dias, a coisa vai ficar tão normal, tão natural que ninguém vai mais reparar.”

Bárbara e Carol são campeãs da etapa de Doha e se aproximam de Paris

A dupla brasileira Bárbara Seixas e Carol Soberg faturam neste sábado (9) o título inédito na categoria Elite 16, a principal do circuito mundial do vôlei de praia, na etapa Doha (Catar). De quebra, as cariocas ficaram ainda mais perto de carimbar a segunda vaga olímpica do Brasil nos Jogos de Paris – a primeira foi conquistada na última quinta (7) por Duda Lisboa e Ana Patrícia. 

Ouro para o Brasil! 🎉🥇🇧🇷

Bárbara Seixas e Carol Solberg são campeãs da etapa Elite de Doha do Circuito Mundial de vôlei de praia!👏

No final, venceram as canadenses Melissa/Brandie por 2 a 0 (21/18 e 21/18).

Que começo de temporada! Parabéns! ✨ pic.twitter.com/PLHpO2tSvh

— CBV (@volei) March 9, 2024

Na disputa final valendo a medalha de ouro em Doha, Bárbara e Carol derrotaram as canadenses Melissa Humana-Paredes e Brandie Wilkerson, com um duplo 21/18. Após a conquista de hoje, a dupla brasileira saltou da quinta posição no ranking mundial (6720) para a terceira colocação, ao totalizar 10140 pontos. Outras duas parcerias brasileiras seguem com chances de ir a Paris: Tainá e Victoria (5ª no ranking) e Ágata e Rebeca (9ª). 

“Estou tão feliz e orgulhosa do nosso trabalho, estamos nos preparando para evoluir e jogar o nosso melhor vôlei. Quero parabenizar a Carol, temos uma ótima energia juntas”, disse Bárbara, prata na Rio 2016 ao lado de Ágatha, em depoimento ao site do Comitê Olímpico Internacional (COI).

Já Carol Solberg, filha da ex-jogadora Isabel Salgado, um dos ícones do volêi brasileiro, pode debutar em Olímpíadas ais 38 aos, se carimbar a vaga na edição de Paris.  

“A Bárbara é incrível, é um prazer jogar com ela. Nossa química é especial. Jogamos vôlei porque amamos”, se derramou Carol ao falar da parceira, logo após a vitória contra o Canadá. 

Classificação para Paris 2024

Na corrida olímpica por vaga no vôlei de praia, a dupla que soma mais medalhas no circuito mundial tem mais chances de garantir presença em Paris 2024. No entanto, cabe à Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) a indicação de quais duplas irão representar o país na competição. . 

Outra forma de carimbar a vaga é pelo ranking mundial. Irão à Paris 2024 as 17 duplas mais bem ranqueadas no período de 1º de janeiro deste ano a 10 de junho de 2024.

Estudo mostra como expulsão de negros formou bairro periférico em SP

Uma parte do pátio interno entre os prédios do Conjunto Habitacional Santa Etelvina II foi cultivada com vasos de plantas, com folhagem densa que lembra um quintal. O verde fica logo abaixo da janela do apartamento térreo de Doné Kika de Bessem, que se mudou para a Cidade Tiradentes, extremo leste paulistano, no fim da década de 1980.

Doné Kika vivia de aluguel, como grande parte das pessoas negras que habitavam a região do Bixiga. “Eu morei na Rua Santo Antônio. Lá a gente morava e tinha um salão [de beleza] embaixo, na sala [da casa]. Morava com minha prima e meus filhos. Depois, nós resolvemos ficar só com o salão, que estava tudo bem, estávamos conseguindo pagar e fomos morar na Praça 14 Bis, bem frente à Vai-Vai [escola de samba]”, diz Doné Kika sobre o período em que morou na praça que fica na Avenida 9 de Julho.

Doné Kika de Bessen, que foi removida do Bixiga para um prédio na Cidade Tiradentes – Rovena Rosa/Agência Brasil

Atualmente, o movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai luta pela preservação da memória do bairro, após as obras da construção da Linha Laranja do Metrô terem derrubado a sede que a escola de samba ocupou durante 50 anos. Em 2022, um sítio arqueológico foi encontrado no local. No século 19, o distrito da Bela Vista abrigou o Quilombo Saracura, que margeava um córrego de mesmo nome. No início do século 20 essa parte da cidade era conhecida como Pequena África.

Com base em documentos de licenciamento ambiental, a reportagem da Agência Brasil mostrou que as regiões do Bixiga e da Liberdade, também com história ligada à população negra da capital paulista, foram os únicos pontos do traçado da Linha Laranja em que não foram feitos estudos arqueológicos prévios. A concessionária Move São Paulo, à época responsável pelas obras, solicitou, em 2020, ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a dispensa de estudos nesses locais.

Para os ativistas, esse processo é mais uma tentativa de expulsar a população negra e apagar a história dos bairros centrais paulistanos. Segundo dados da Rede Nossa São Paulo, 21,6% da população da Bela Vista é negra.

Extremo leste

A mudança da família de Kika para o bairro, a mais de 30 quilômetros do centro da cidade, ocorreu como parte de uma política iniciada na década de 1970. Em pouco mais de 20 anos, foram construídos pela Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab) 42 mil apartamentos e casas na região que, até então, era uma área rural. Parte das terras, inclusive, pertencia a uma fazenda que usou mão de obra escravizada.

Foram levadas para o bairro, que inicialmente não tinha nenhum tipo de infraestrutura, tanto pessoas que tinham dificuldades de pagar aluguel nas partes mais centrais da cidade quanto famílias que eram removidas de favelas, ocupações e cortiços, muitos demolidos para dar espaço a projetos de alargamento e expansão de ruas e avenidas.

“No começo dos anos de 1980, a cidade Tiradentes tinha 8 mil habitantes e, no fim dos anos 1990, estava ultrapassando os 200 mil habitantes. Então, a Cidade Tiradentes é considerada o maior fenômeno de crescimento urbano dentro da cidade de São Paulo, que é o maior fenômeno de crescimento urbano do mundo, segundo muitos autores”, explica o historiador e urbanista do Instituto Bixiga Edimilsom Peres Castilho, que tem uma tese de doutorado sobre a política habitacional do período da ditadura militar.

População negra

Os deslocamentos provocados pelas políticas urbanas no período afetaram especialmente a população negra, como a que vivia no bairro do Bixiga. Isso fez com que a Cidade Tiradentes se tornasse um dos distritos com maior proporção de pessoas negras na capital paulista. Segundo levantamento da Rede Nossa São Paulo com base em dados de 2019, são pretos e pardos 56,1% dos moradores do bairro.

As investidas contra a população negra que vivia na região do Bixiga começam antes, com o plano de avenidas radiais, que saem do centro para as extremidades da cidade, proposto na década de 1920 e executado a partir da década seguinte. “A Avenida 9 de Julho vai ser a primeira construída nessa proposta de criação de avenidas de fundo de vale [sobre rios e córregos canalizados]. Vai ser construída sob a justificativa de interligar, de reurbanizar o Vale da Saracura, mas interligar também o centro da cidade aos bairros da Companhia City [empresa que planejou diversos bairros paulistanos], que estavam sendo construídas do outro lado da Avenida Paulista”, detalha Castilho.

A Avenida 9 de Julho corta o bairro da Bela Vista, onde está inserido o Bixiga, que não é reconhecido nos mapas oficiais. A Avenida Paulista separa a Bela Vista dos bairros dos Jardins.

Nesse momento, segundo o historiador, a remoção das pessoas negras de uma parte da cidade que começava a se valorizar já estava entre as intenções dos administradores municipais.

“O primeiro motivo de canalizar o rio era evitar o contato da água com essa população que dependia da água. Tirando a água, você tira a população ribeirinha, tira as bênçãos da cultura negra, tira a pessoa que usava água para produzir os seus quitutes, tira a lavadeira, que lavava a roupa dos barões do café na [Avenida] Paulista”, relaciona o historiador com base em declarações de autoridades da época.

Ao longo do século 20, o bairro recebeu imigrantes portugueses e italianos, que também ajudaram a mudar gradualmente a composição populacional do bairro.

Despejos e demolições

Bairro da zona leste teve crescimento urbano acelerado nos últimos anos – Rovena Rosa/Agência Brasil

Na década de 1960, o plano da prefeitura de São Paulo de alargamento de vias previa a extinção da Rua da Assembleia e a demolição de diversos casarões na Rua Jandaia, parte do Bixiga. As obras permitiram a ligação da Avenida 23 de Maio com a Radial Leste. Com as desapropriações, diversos imóveis ficaram vazios e acabaram ocupados por famílias com dificuldades de pagar por moradia na região central.

“Quando eu era bem pequenininha, acho que com 1 ano, 2 anos [de idade] no máximo, eles vieram morar na Bela Vista. Então meu pai tava trabalhando na Bela Vista, nessa rua mesmo, se não me engano, que é a Rua da Assembleia”, conta a vereadora paulistana Elaine Mineiro (PSOL), que, na época havia acabado de chegar com a família, que veio de Guarulhos, na Grande São Paulo.

Assim, o pai de Elaine pôde gastar menos tempo nos deslocamentos diários. “Meu pai começou a trabalhar ali, era muito ruim para ele ficar indo e voltando de Guarulhos todo dia”, conta. Em 1987, a prefeitura conseguiu a reintegração de posse dos imóveis e demoliu os casarões. Debaixo das construções foram descobertos os arcos que tinham sido construídos por imigrantes italianos e podem ser vistos atualmente na Praça dos Artesãos Calabreses.

Com a remoção, foram oferecidas opções de moradia para a família em Cidade Tiradentes, na zona leste, ou no Parque Santo Antônio, na zona sul da cidade.

“Só que eles escolheram sem ter a mínima ideia do que era a Cidade Tiradentes. Só falaram que era na zona leste. Depois que eles descobrem o que é a Cidade Tiradentes. Meu pai tinha que andar 40 minutos até conseguir pegar um ônibus e vir para o centro. A gente também. A primeira série, eu fiz andando 40 minutos para ir e 40 minutos para voltar todos os dias”, lembrou Elaine, ao falar sobre como a mudança impactou a vida da família.

Além enfrentar a distância e a falta de transporte, a família de Elaine foi morar em uma das casas padronizadas, que não tinha infraestrutura básica. “Quando a gente chega, não tem nada. Inclusive a gente buscava água numa bica. Depois começou a passar caminhão-pipa, que passava acho que duas vezes por semana”, lembra. Os novos moradores esperaram mais de um ano para ter água e luz em casa. “Asfalto demorou bastante. Pelo menos uns 5, 10 anos ali sem asfalto.”

Da escravidão ao cortiço

De acordo com Edimilsom Castilho, os projetos de reformulação viária na capital paulista coincidem com um período de dificuldades econômicas para as pessoas mais pobres. “Ocorre, então, um aumento de custo muito grande, que vai dificultar a permanência de muitas famílias no centro da cidade de São Paulo, nas regiões centrais”, enfatiza sobre os efeitos das políticas econômicas da ditadura.

Muitas pessoas que moravam no bairro estavam inscritas nos programas de habitação. Kika diz que foi chamada para morar em Cidade Tiradentes pelo cadastro que sua mãe tinha feito dez anos antes. “Minha mãe já tinha morrido. Não era mais a casa para que a gente fez a inscrição, era apartamento”, ressalta Kika, ao lembrar quando decidiu mudar para o imóvel de 42 metros quadrados em que vive até hoje, aos 75 anos.

“Vim morar aqui com o sonho da casa própria”, diz sobre o sentimento que a levou a mudar para o extremo leste da cidade. “Eu cheguei aqui era muito mato. Não tinha tanto apartamento, tanta casa como tem agora. Não tinha feira não, tinha hospital, não tinha padaria.”

A região apresentava muitas diferenças de infraestrutura em relação à parte central da capital paulista. “Quem passava aqui eram os cavalos. Ainda tinha a vaca que andava no meio do caminho”, afirma, ao lembrar os problemas de transporte enfrentados pela família para ir trabalhar e estudar. Hoje ainda se veem cavalos ou galinhas em alguns terrenos do bairro.

A família de Kika havia chegado à região do Bixiga vinda de Campos do Jordão, no interior paulista. “Minha avó era uma religiosa de matriz africana. Ela era uma mulher nascida na escravidão”, diz Kika sobre a história da família. Apesar de legalmente libertada pela Lei do Ventre Livre, que tornava livres as crianças nascidas a partir de 1871, a avó de Kika não escapou da servidão. “Ela foi uma escrava do trabalho doméstico”, acrescenta a neta, que também se tornou líder religiosa.

A bisavó de Doné Kika veio escravizada, segundo ela, da região do Abomei, onde atualmente fica o Benim, na África. Por isso, ela segue o candomblé de tradição Jeje-Mahi. A família se instalou no local onde vivia a população remanescente do Quilombo Saracura. “Juntou-se um grupo que já era aquilombado com o êxodo dos irmãos pretos que eram escravizados nas fazendas”, explica sobre como a existência da população negra no local atraia pessoas pretas recém-chegadas à cidade.

Violência e reação pela cultura

Parte das edificações de antiga fazenda abriga hoje a Casa de Cultura Hip-Hop Leste – Rovena Rosa/Agência Brasil

A falta de infraestrutura e de laços comunitários acabou por propiciar o crescimento da violência urbana em Cidade Tiradentes. De acordo com a Rede Nossa São Paulo, o distrito tem 16 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes, enquanto a média na cidade é de 6,6 homicídios. A idade média ao morrer em Cidade Tiradentes é de 61 anos – na capital paulista, de 71 anos, chegando a 82 anos no Jardim Paulista, na zona oeste.

Quando Elaine tinha 5 anos, a família foi ‘cortada” por essa realidade. “Meu pai continuou trabalhando na mesma empresa. Ele foi para uma festa de fim de ano da empresa e não voltou mais”, conta a vereadora. “A gente encontrou ele baleado no hospital em Itaquera, na zona leste, e não sabe o que aconteceu, não houve nenhum tipo de investigação.”

Para não ficar exposta à violência das ruas, Elaine foi incentivada pela mãe a frequentar um espaço cultural mantido por uma entidade católica. Assim, ela acabou envolvida na cena artística do bairro, que floresceu em reação aos problemas estruturais. “Aos 15 anos, entrei no [Espaço Cultural] Honório Arce, um coletivo que naquela época fazia o que hoje se chama de sarau: a gente chamava artistas da região e também fazia discussões políticas.”

A região que, segundo Elaine, ficava fora do mapa dos incentivos culturais públicos acabou desenvolvendo diversos grupos artísticos. “Um dos pontos que continuam é uma militância mais progressista e com questões novas, que fazem o debate racial de uma forma diferente do que era debatido antes dentro dos partidos, que são os coletivos de cultura.”

Em 2004, parte das edificações da fazenda Santa Etelvina foi transformada em uma Casa de Hip-Hop, preservando a memória da região. Alguns imóveis da sede da fazenda já haviam sido demolidos para construção de um terminal de ônibus.

Pertencimento

Reunindo três coletivos de teatro e cinco artistas independentes, a Cooperativa de Artistas de Cidade Tiradentes busca, desde 2015, disputar recursos de editais públicos e instituições culturais. Uma das integrantes das Filhas da Dita, um dos grupos que integram a cooperativa, Ellen Rio Branco ressalta que a cultura abre outras possibilidades para se relacionar com o bairro. “A questão cultural foi nos dando noção de pertencimento, de pertencer a algum lugar, a um território.”

“Você também tem aí uma disputa de imaginário, que vai ser o tempo inteiro explorado pelas mídias hegemônicas, que vão colocar a gente sempre nesse lugar do bairro periférico, carente como qualquer outro bairro do país com essas condições”, destaca a atriz, referindo-se às narrativas sobre a Cidade Tiradentes. “Mas a gente quer disputar esse espaço, [mostrar] que esse também é um bairro de muita produção artística, de muita resistência.”

“Um bairro onde as pessoas fecharam a rua para poder reivindicar o transporte público. Sequestraram o fiscal [da empresa de ônibus] e só devolveram quando firmaram uma linha de transporte”, lembra Ellen, ao recontar histórias marcantes das lutas sociais da região.

Apesar das melhorias conquistadas, viver no extremo da cidade é superar obstáculos cotidianos, enfatiza Ellen. “É quase irreal a distância. A gente está a 39 quilômetros do Marco Zero, da Praça da Sé. Pensando no transporte público, isso dá em torno de duas horas – às vezes, é o tempo de você chegar a outra cidade.” Desde 2011, existe um projeto para levar o monotrilho (trem suspenso) à Cidade Tiradentes.

Ellen acrescenta que, ao mesmo tempo, a contínua expansão do bairro sem planejamento traz de volta problemas do passado. “O que era mata, agora, por uma necessidade de moradia da população, vai se tornando cada vez mais ocupações sem nenhum respaldo do Estado. Tem espaços aqui na Tiradentes em que essas pessoas ainda vivem o que foi a Cidade Tiradentes nos anos 1990, que era a questão da luz, que era uma violência extrema, que era uma série de ausências mesmo.

A atriz, que se define como “cria dos predinhos”, ou seja, moradora de um dos apartamentos dos conjuntos habitacionais, conta que é filha de mãe solteira e que deixou, ainda muito pequena, uma moradia alugada na Avenida Angélica, importante via que corta os valorizados bairros centrais de Higienópolis e da Santa Cecília.

Pesquisadora brasileira recebe Prêmio Internacional de História

A pesquisadora Laura de Mello e Souza foi escolhida pelo Conselho do International Commitee of Historical Sciences (ICHS) para receber o Prêmio Internacional de História. A historiadora, que começou seus estudos na área em plena ditadura militar, é a primeira mulher e a primeira pessoa do continente sul-americano a ganhar o prêmio.

Laura lecionou no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) de 1983 a 2014. Ocupou também a cátedra de história do Brasil na Universidade de Sorbonne, em Paris.

Em entrevista no Dia Internacional da Mulher, Laura ressaltou as dificuldades que as mulheres enfrentam ainda hoje em suas carreiras, tanto por causa do tempo disponível quanto pelo reconhecimento profissional, em uma sociedade marcada pela desigualdade de gênero.

“As conquistas obtidas pelas mulheres são fruto sobretudo da luta e do sofrimento delas, e a luta tem de ser cotidiana, pois o mundo ainda é dos homens”, disse Laura à Agência Brasil. 

O prêmio deve ser entregue em outubro deste ano, em Tóquio, durante cerimônia que marcará a Assembleia Geral do Comitê Internacional de Ciências Históricas.

Leia a entrevista da pesquisadora

Agência Brasil – Como você decidiu estudar história? 

Laura Souza – Sempre gostei de história, desde pequena, mas hesitei muito em seguir o curso quando estava para terminar o ensino médio. A ditadura militar investira pesado contra as ciências humanas, e muitos professores da USP e de outras universidades, que ensinavam nessa área, tinham sido cassados ou haviam deixado o país. Pensei em arquitetura, medicina e psicologia, mas o amor pela história falou mais forte, e entrei no curso de história da USP em 1972. 

Agência Brasil – Quais foram as suas referências?

Laura Souza – Eu gostava muito de ler sobre a Grécia antiga, me interessava pela cultura clássica e adorava romances históricos. Mas creio que foi a leitura de Caio Prado Jr (História Econômica do Brasil), ainda no ensino médio, e a de Jacob Burkhardt, no mês que antecedeu minha entrada na USP (Cultura do Renascimento na Itália), que me marcaram decisivamente.
Uma vez na universidade, fui muito influenciada pela historiografia francesa da revista Annales, por autores como Jacques Le Goff, Marc Bloch e Philippe Ariès e pelos historiadores da micro-história italiana, como Carlo Ginzburg. Dentre os brasileiros, sempre Caio Prado Jr, mas sobretudo Fernando Novais e Sérgio Buarque de Holanda. 

Agência Brasil – Em que tema você começou suas pesquisas? 

Laura Souza – Comecei com a história contemporânea: escrevi um texto de pesquisa oral sobre o lazer em São Paulo no entre-guerras, e fiz a pesquisa histórica para um documentário de Lauro Escorel sobre o movimento operário brasileiro no primeiro quartel do século 20, Libertários.
Depois, mudei de período e comecei a pesquisar a pobreza e a marginalidade em Minas Gerais no século 18. Esta foi a minha porta de entrada na pesquisa acadêmica, ali me fiz historiadora.
Desde então, mudei muito de tema. Meu doutorado foi sobre a feitiçaria e a religiosidade popular entre os séculos 16 e 18. Em trabalhos posteriores, estudei as visões negativas que incidiram sobre a América Hispânica; a administração colonial e a trajetória dos governadores portugueses que iam para as conquistas ultramarinas; escrevi a biografia de um poeta do século 18 que se envolveu na Inconfidência Mineira, Cláudio Manuel da Costa, e meu último livro publicado tratou das visões de natureza no século 18, em Minas Gerais. Organizei ainda um volume sobre o cotidiano e a vida privada no Brasil colonial. 

Agência Brasil – Atualmente que tema você pesquisa? 

Laura Souza – Tenho dois projetos em andamento. O mais antigo aborda o deslocamento de três cortes europeias cujos países foram invadidos pelos exércitos revolucionários franceses entre os últimos anos do século 18 e o início do século 19. O mais recente estuda três escritos literários sobre regiões diferentes do império português no século 17.

Agência Brasil – Quais dificuldades você encontrou na carreira de pesquisadora e de professora?

Laura Souza – Encontrei as dificuldades inerentes à época em que vivi. Os documentos não estavam digitalizados, era preciso viajar para consultá-los, a consulta era difícil, sobretudo quando os arquivos eram privados. Enfim, nada estava informatizado, e eu sempre trabalhei muito e ainda trabalho com documentos manuscritos e não publicados.
Por outro lado, pertenço a uma geração privilegiada, que teve bolsas de pesquisa porque as agências mais importantes de financiamento já existiam, como a Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo], em nível estadual, a Capes [Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] e o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], no âmbito federal. Nesse sentido, foi mais fácil para nós do que tem sido para as gerações posteriores, que viveram recentemente um período tenebroso, com ameaça e corte de verbas para a educação e a pesquisa. 

Agência Brasil – Como foi receber o Prêmio Internacional de História? 

Laura Souza – Foi uma grande honra e sobretudo uma grande surpresa. Há grandes historiadoras e historiadores no mundo, certamente mais merecedores do que eu. Mas fiquei feliz porque mostra a força da historiografia brasileira, que é cada vez mais reconhecida em nível internacional, e conta com excelentes especialistas.
Além disso, recebi muitas mensagens afetuosas de mulheres historiadoras, que se sentiram incentivadas e prestigiadas com essa premiação, porque sabem que é bem mais difícil ter tempo disponível para a pesquisa e reconhecimento profissional quando se é mulher, já que as tarefas domésticas e a criação de filhos ainda recaem mais sobre elas do que sobre os parceiros.

Agência Brasil – O que você considera importante ressaltar no Dia Internacional da Mulher?

Laura Souza – Que as conquistas obtidas pelas mulheres são fruto sobretudo da luta e do sofrimento das mulheres, e que a luta tem de ser cotidiana, pois o mundo ainda é dos homens. As mães têm de educar filhos homens que respeitem as mulheres e sejam solidários a elas. A lei tem que garantir igualdade entre os sexos em todos os sentidos. As agressões e assassinatos têm de ser severa e implacavelmente punidos. É muito triste que ainda estejamos longe disso.
Torço para que os avanços se tornem cada vez mais significativos. Afinal, minha descendência é totalmente feminina: tenho três filhas e três netas, e espero que o mundo seja mais acolhedor para elas.

Empreendedoras gastam 3 vezes mais tempo que homem em serviços de casa

Para 80% das mulheres empreendedoras do estado do Rio, os cuidados com os filhos são a principal influência ao decidir abrir a sua empresa. Esse percentual cai para 51% quando perguntado para os homens. Para 5% das mulheres influenciou um pouco e 16% consideram que não teve interferência nessa decisão.

Em comparação aos homens, as mulheres empreendedoras gastam quase três vezes mais tempo diário com a família e afazeres domésticos. Por terem que dispender mais tempo cuidando da casa e da família do que os homens, 66% das mulheres acreditam que enfrentam mais dificuldades para ter um negócio do que os homens. É uma sensação que 48% dos homens compartilham. 

As informações estão na pesquisa Características dos Empreendedores: Empreendedorismo Feminino, do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresa (Sebrae), feita com base em dados disponibilizados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No Rio de Janeiro, quando uma mulher resolve abrir um negócio, pais, clientes, fornecedores e cônjuges são os principais incentivadores. No caso dos homens, amigos, cônjuge e clientes e fornecedores são os que mais orientam na abertura do negócio. Em relação a manter o negócio, homens e mulheres recebem mais incentivos dos seus cônjuges.

Equilíbrio

“A pesquisa reforça o que ouvimos em rodas de conversa e em nossas capacitações. As mulheres possuem uma dupla jornada de trabalho e procuram equilibrar com maestria tudo o que fazem. Apesar das dificuldades, a família é um dos pilares dos seus negócios e a força que elas precisam para continuar em frente”, afirma Carla Panisset, gerente de Empreendedorismo Social do Sebrae Rio.

“São as mulheres quando os filhos necessitam, ou a casa necessita que se abandone as tarefas da empresa são elas que abandonam. Menos de 40% dos homens o fazem. Assim, as duas maiores dificuldades têm a ver com a divisão das tarefas domésticas e a autoestima e liderança à frente dos negócios.”

Em relação ao preconceito de gênero, 83% das mulheres acreditam que não sofreram ao longo da carreira, enquanto 17% já sofreram preconceito por ser mulher no seu negócio. Já em relação de presenciar essa situação com outras mulheres, 55% não viram, 42% assistiram e 3% não sabem opinar

“No que diz respeito à confiança e segurança de si enquanto donos de negócios, os homens apresentam melhor desempenho que as mulheres. Entretanto, a pesquisa indica que elas são mais dispostas a buscar ajuda quando se sentem ansiosas e angustiadas. Dentro do Sebrae, as mulheres são as que mais procuram apoio para os seus negócios. Elas são resilientes, não desistem, constroem, buscam se aperfeiçoar e buscam conhecimento”, disse Carla.

Apesar dos desafios e da desigualdade ainda existente no mundo empreendedor, muitas mulheres encontram no empreendedorismo a única alternativa de conciliar a geração de renda e cuidado com seus familiares. “A necessidade de cuidar dos filhos e de estar perto de suas famílias influenciou mais as mulheres: 68% das empreendedoras dizem que consideraram isso para abrir seus negócios. Em relação aos homens esse número é de 56%. Empreender é sim uma alternativa de gerar renda e cuidar dos que estão próximos.”

Marianna com os filhos. Foto:  Arquivo pessoal/Divulgação

Pensando estar mais próxima dos dois filhos pequenos, Marianna da Silva Macedo, moradora da zona norte do Rio de Janeiro, começou a empreender com bolos e doces para festas. Ela conta que trabalhava com carteira assinada e começou a fazer doces como hobby. “Em 2020, veio minha filha mais nova que é neuroatípica. Foi quando começaram a vir os diagnósticos e eu precisei me ausentar com frequência do meu trabalho, e acabei sendo desligada. E aí a confeitaria foi minha principal fonte de renda e é assim até hoje”.

Segundo ela, o mercado de trabalho é mais difícil para mães com filhos pequenos. “A saída que eu tive foi continuar empreendendo. Como desafio ela aponta que sua agenda de trabalho fica refém da demanda dos filhos. “Fico sozinha com eles em tempo integral. Só à noite é que tenho um respiro, que é a hora que consigo produzir. Meu marido fica com as crianças. Deixo tudo organizado de comida, banho, medicações, para ele olhar as crianças e eu conseguir dar conta da produção.”

Apesar dos desafios do empreendedorismo, Marianna diz que não troca sua vida atual pela segurança de um trabalho com carteira assinada. “Segurança nenhuma paga ‘eu acompanhar o desenvolvimento e o crescimento’ dos meus filhos.”

Vanessa Ribeiro tem um salão de beleza em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. É formada em engenharia civil, mas optou por empreender, porque tem uma filha de 4 anos e está grávida de um menino. “Ser empresária, apesar de ter bastante trabalho, a gente consegue administrar o tempo para ficar mais com a família e com os filhos. Tenho meu dia de folga exclusivo com a minha filha, tenho os meus dias de atendimento na parte da tarde. Consigo dedicar tempo também para a minha casa.”

Joyce Dias tem um salão de beleza, em Comendador Soares, na Baixada Fluminense, e passou a empreender para cuidar do filho autista de 8 anos. “Desde que eu tive meu filho, tive que mergulhar nesse universo de uma forma mais profunda porque eu não tive mais tempo de trabalhar fora. O meu filho faz terapias, ele estuda. Sou dona de casa também. Preciso conciliar meu tempo com as atividades do meu filho e o meu trabalho. Trabalho muito para sustentá-lo, principalmente finais de semana. Sou casada. Ele não é o pai biológico, mas me ajuda no que pode.”

Seis em 100 mulheres do país enfrentavam extrema pobreza em 2022

As mulheres vivendo na extrema pobreza, ou seja, com até R$ 200 por mês, somavam 6,1% da população brasileira em 2022, segundo dados divulgados nesta sexta-feira (8) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O percentual é superior ao dos homens (5,7%), de acordo com o instituto.

Considerando-se aquelas na pobreza, ou seja, que vivem com menos de R$ 637 por mês, o percentual chega a 32,3%. Nesse recorte de renda, a parcela dos homens também é menor (30,9%).

A pobreza separa mais negros dos brancos do que homens de mulheres. As brancas que convivem com a extrema pobreza e a pobreza representam 3,6% e 21,3% da população feminina dessa cor/raça. Já as negras nessa situação são 8% e 41,3% de sua população, ou seja, cerca do dobro.

Esses são alguns dos dados divulgados pelo IBGE, em publicação especial para o Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março. O levantamento mostra, por exemplo, que o rendimento recebido pelas mulheres equivale a 78,9% dos homens. A desigualdade aumenta com a idade, passando de 87,9% na faixa de 14 a 29 anos para 65,9% para 60 anos ou mais.

Entre os profissionais de ciências e intelectuais, o salário das mulheres representa apenas 63,3% do que recebem os homens.

Entre as mulheres de 25 a 54 anos, 63,3% estão ocupadas, enquanto entre os homens da mesma faixa etária, a taxa de ocupação é de 84,5%. Além do nível de ocupação menor, as mulheres inseridas no mercado também precisam enfrentar mais a informalidade (39,6%) do que os homens (37,3%). 

Comparando-se a taxa de informalidade das mulheres pretas ou pardas (45,4%) e dos homens brancos (30,7%), a diferença é ainda maior.

A presença de crianças de até 6 anos de idade em casa desfavorece a participação das mulheres no mercado de trabalho, mas favorece os homens. Enquanto o nível de ocupação de mulheres que vivem com crianças nessa faixa etária cai para 56,6%, o de homens sobe para 89%. As pretas e pardas nessa situação são mais afetadas (51,7% de ocupação) que as brancas (64,2%).

Não são só as crianças que impactam o acesso das mulheres ao mercado de trabalho. A realização de afazeres domésticos também desfavorece esse público. 

As mulheres dedicavam, em média, 21,3 horas semanais a afazeres domésticos ou cuidado de pessoas, em 2022. Isso representa quase o dobro do tempo que os homens gastavam nas mesmas tarefas (11,7 horas).

“Pede-se para estimar o conjunto de horas que foram dedicadas naquela semana de referência [a essas atividades]. A pesquisa pergunta se precisou levar ou buscar uma criança na escola, se ajudou a fazer tarefas de casa, se cuidaram de pessoas com deficiência ou idosos. E pede-se para estimar a quantidade de tempo que a pessoa dedicou a essas tarefas”, explica a pesquisadora Bárbara Cobo.

Segundo ela, desde 2012 não há mudança significativa no tempo dedicado por homens ou mulheres nessas tarefas. “A diferença entre homens e mulheres diminuiu pouco, continuam as mulheres mais ou menos fazendo o dobro de horas na semana em trabalho doméstico não remunerado que os homens”.

Ainda segundo o IBGE, as mulheres pretas ou pardas gastavam ainda mais tempo (22 horas) que as brancas (20,4) nas tarefas domésticas ou cuidado de pessoas, ou seja, 1,6 hora a mais.

O trabalho doméstico acaba representando dupla jornada para muitas mulheres que, fora de casa, têm empregos remunerados. Somando-se o tempo de trabalho remunerado e não remunerado, o público feminino também trabalha mais (54,4 horas) do que os homens (52,1 horas).

As tarefas domésticas também são um dos motivos que fazem com que mais mulheres tenham que assumir apenas trabalhos com carga horária menor, os chamados trabalhos parciais. Segundo o IBGE, 28% da população feminina ocupada estão em trabalho parcial. Entre os homens, o percentual é de apenas 14,4%.

As pretas e pardas têm percentual maior do que as brancas, em termos de população ocupada em trabalhos parciais: 30,9% ante 24,9%.

“Como o dia só tem 24 horas e as mulheres se dedicam mais a cuidar dos afazeres [domésticos], sobram menos horas para elas se inserirem no mercado de trabalho. Isso é histórico”, afirmou Bárbara.

Luta permanente

A sergipana Antônia do Perpétuo Socorro dos Santos chegou ao Rio de Janeiro aos 20 anos para ser empregada doméstica na casa de um casal em Ipanema, na zona sul da cidade. Passava o dia inteiro na residência, onde também dormia de segunda até a tarde de sábado, quando ia para casa.

Já casada, passou a trabalhar cuidando de duas crianças em uma casa no bairro do Flamengo, também na zona sul. Lá, também dormia no emprego e só se encontrava com o marido, que trabalhava em obras, no fim de semana, na comunidade de Rio das Pedras, na zona oeste. Quando Priscila, a primeira filha, hoje com 39 anos, nasceu, resolveu parar de trabalhar. Não levou muito tempo e aceitou o convite feito pela dona da casa para voltar ao serviço. Dois anos depois, se separou do marido que, conforme disse, “era muito sem responsabilidade”. A luta aumentou e deixou novamente o serviço de empregada doméstica para começar a trabalhar como diarista.

“Nessa época, eu morava em Caxias. Acordava às 4h30, pegava o trem, trabalhava e voltava de noite”.

Quando a filha completou três anos, foi morar na Rocinha. A comunidade era mais perto da creche no Jardim Botânico, onde Priscila passava o dia. “Eu trabalhava como diarista. Saía às 6h com ela e voltava às 18h. Quando chegava, era o período que tinha para lavar roupa, arrumar a casa e preparar a janta para a gente”, disse, ao descrever a rotina pesada de dupla jornada de muitas mulheres.

Para reforçar a renda, entre 1991 e 1993, arranjou um emprego de carteira assinada entre segunda e sexta-feira, no Jardim Botânico, sendo que na quinta, em acordo com a dona da casa, saía no início da tarde para um trabalho de diarista, que se juntava com outra casa no sábado. Também lá a filha passava o dia todo na escola no Humaitá, bairro próximo. “Precisei trabalhar mais ainda”, contou, revelando que, pelo período de dez meses, passou a dormir durante a semana na casa para conseguir juntar dinheiro para comprar uma casa na Rocinha.

Em 1997, com Antônio, o segundo marido, teve Yasmin, a filha mais nova. “A batalha era a mesma. Saía para trabalhar. Tinha a correria porque ela ficava na creche e tinha horário para pegar. Ao chegar em casa, a luta era maior porque tinha duas filhas, marido, tinha que passar roupa, arrumar a casa. Aquela lida de sempre”.

Hoje, aos 65 anos, Antônia disse que valeu a pena tudo que fez na sua trajetória. “Valeu a pena por eu ter me esforçado tanto, valeu a pena pelo que fiz pelas minhas filhas e como criei. Valeu a pena porque consegui comprar uma casa. Teve um período em que morei com a Priscila em um quarto e acordei um dia com três ratazanas que subiram pelo vaso. Então, toda essa batalha que passei vi resultado, porque tenho a minha casa”, completou.

O orgulho é de ver as filhas encaminhadas na vida. “Minhas filhas estudaram. Uma filha é enfermeira e tem outros cursos além da enfermagem. Hoje em dia trabalha em um hospital. A outra está se formando em fisioterapia, mas tem um trabalho maravilhoso. Tudo que fiz valeu a pena. Todo esforço de acordar cedo e dormir tarde, hoje em dia eu coloco a cabeça no travesseiro e agradeço a Deus por tudo que tenho, como agradeço a todas as pessoas com quem trabalhei que me deram a maior força”.

Casamento de meninas de até 17 anos de idade diminui 65% em uma década

O país registrou 17 mil casamentos de meninas com até 17 anos em 2022, ou seja, 1,8% do total dos matrimônios brasileiros naquele ano. Isso representa uma queda de 65,1% em relação a 2011, segundo dados divulgados nesta sexta-feira (8) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Rondônia foi o estado com maior proporção de casamento de adolescentes do sexo feminino em relação ao total (6,1%), em 2022.

Arte/Agência Brasil

Entre os meninos dessa faixa etária, houve menos casamentos no Brasil do que entre as meninas, em 2022: 1.915, o que representa 0,2% do total.

“É um fenômeno que impacta muito mais a vida de meninas do que de meninos”, destaca a pesquisadora Bárbara Cobo. “Mas a gente também só está tratando do casamento formal, aquele que é registrado no Registro Civil. Tem uma subnotificação, aí [que não é captada por essa pesquisa]”.

A pesquisa revela também que o nascimento de bebês filhos de mães com idade entre 10 e 19 anos reduziu 30,8% de 2018 para 2022, passando de 456,1 mil para 315,6 mil no período. “A gente chama a atenção para a importância disso, porque são mulheres que ainda estão estudando, terminando seu ciclo educacional, começando a pensar no mercado de trabalho”, diz a pesquisadora.

Segundo o IBGE, o uso de contraceptivos por mulheres casadas ou em união estável, com 18 a 49 anos, reduziu-se 82,6%, em 2013, para 79,3% em 2019.

Gestação tardia

A pesquisa do IBGE também mostra um aumento na maternidade de mulheres com 40 a 49 anos. O número de nascidos vivos a partir de mães nessa faixa etária cresceu 16,8% no período, passando de 90,9 mil para 106,1 mil no período.

A gravidez da filha Fernanda não estava nos planos, mas a surpresa foi bem recebida pela jornalista Luciana Valle, apresentadora do programa É Tudo Brasil, da Rádio Nacional do Rio (87,1 FM), hoje com 57 anos. Na época, Luciana já era mãe de Caetano e tinha 44 anos. Ela e o marido estavam passando por dificuldades no casamento e perto da separação, o que acabou ocorrendo há sete anos.

“Foi totalmente inesperado, mas não tive medo algum. Primeiro porque eu não bebo, não fumo, não uso drogas. Na época era até menos sedentária. O corpo e a cabeça estavam preparados para essa maternidade, por isso ela vingou. A Fernanda é uma criança linda. Teve uma dificuldade inicial na amamentação, mas a gente tirou de letra. Se desenvolveu super bem e vai fazer 13 anos agora no dia 14 de março”, contou à Agência Brasil.

Para a apresentadora, a situação poderia ser diferente caso fosse a primeira gestação. “O primogênito aos 44 é mais complicado e não era o meu caso. Já tinha o primeiro filho em uma gestação super tranquila também. Eu tinha 34 anos”, completou.

Segundo Luciana, a idade nunca foi problema até entrar na menopausa. “Não tenho nenhuma questão com idade. Estou começando a ter agora, para falar a verdade, mais por causa da menopausa, do que da maternidade tardia. Eu entrei na menopausa depois. Tem mulheres que entram na menopausa aos 44 e aos 44 eu estava tendo uma filha”.

Mãe ou avó?

Rio de Janeiro (RJ), 07/03/2024 – A apresentadora na Rádio Nacional, Luciana Valle Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

“Lidei com isso [maternidade tardia] tranquilamente. Óbvio que a gente passa por situações do tipo: você é a mãe ou a vovó? Na escola também eu sou a mãe mais velha. Da turma das meninas que regulam de idade com a Fernanda eu sou mãe mais velha e no prédio também. Isso foi problema? Não, porque a amizade entre as meninas fortalece também o vínculo entre as mães. Nunca me senti colocada de lado”.

Mesmo com 10 anos de distância, a apresentadora não sentiu diferenças entre uma gravidez e outra. “A única coisa que eu senti na da Fernanda foi azia no começo, mais nada. Fiz com o mesmo obstetra. Moro no Rio e os dois [filhos] nasceram em Niterói [região metropolitana do Rio]”.

Luciana disse que o nascimento da filha é uma grande realização. Embora considere que se fosse hoje seria uma gravidez tardia seria problemática, a jornalista trata a questão da idade de forma leve. “Brinquei com as pessoas. Quando tinha 54 anos eu falava que estava na hora de engravidar de novo, porque de dez em dez anos, 34, 44, então com 54 está na hora, mas eu já estava na menopausa”, comentou, elogiando a filha. “Ela é uma companheira”.

Mortes

A mortalidade materna voltou a cair em 2022, depois de subir além da meta das Nações Unidas (70 mortes por 100 mil nascidos vivos) em 2020 e 2021, devido à pandemia de covid-19, segundo a pesquisa.

Em 2022, foram registradas 57,7 mortes por 100 mil nascimentos, quase a mesma taxa de 2019 (57,9). Em 2020 e 2021, as taxas haviam ficado em 74,7 e 117,4.

O percentual de mulheres que tiveram acompanhamento pré-natal em partos ocorridos até dois anos antes da pesquisa subiu de 80,7% em 2013 para 84,2% em 2019. O crescimento ocorreu apenas entre as mulheres pretas e pardas (de 75,3% para 83%). Entre as brancas, caiu de 88,9% para 86,8%.

Violência

A pesquisa destacou ainda dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, que mostravam que, em 2019, das mulheres com 18 anos ou mais que sofreram violência psicológica, física ou sexual, 6% consideraram o parceiro ou ex-parceiro como o principal agressor.

As mulheres pretas e pardas sofreram mais esse tipo de violência (6,3%) do que as brancas (5,7%). E o grupo etário mais vitimado é o de mulheres de 18 a 29 anos (9,2%).

Homens ocupam seis em cada dez cargos gerenciais, aponta IBGE

As mulheres são maioria entre os estudantes que estão em vias de concluir o ensino superior, no entanto são minoria em relação a posições de poder. Dados divulgados nesta sexta-feira (8) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram, por exemplo, que apenas 39,3% dos cargos gerenciais no país são ocupados por mulheres.

As mulheres só são maioria nas gerências e coordenações das áreas de educação (69,4%) e saúde humana e serviços sociais (70%).

“As mulheres ocupam mais posições de gerência justamente onde elas estão também mais colocadas de uma forma geral, que é na área de educação, na área de saúde e serviços sociais, ou seja, áreas relacionadas a cuidados”, constata a pesquisadora Bárbara Cobo.

A menor participação feminina é percebida no setor de agricultura, pecuária, engenharia florestal, aquicultura e pesca (15,8%).

A disparidade é observada não apenas no percentual dos cargos como também na remuneração. O rendimento das executivas femininas é apenas 78,8% dos pagos para os homens.

Em apenas três áreas, o rendimento feminino supera o masculino: agricultura, pecuária, engenharia florestal, aquicultura e pesca (128,6%), água, esgoto e atividades de resíduos (109,4%) e atividades administrativas e serviços complementares (107,5%).

São curiosamente atividades em que os homens predominam. “A gente imagina que isso esteja associado a elas estarem entrando nesses setores caracteristicamente ocupados por homens com uma especialização profissional maior, que leve a esse rendimento maior”, explica Bárbara.

As maiores desigualdades estão nos setores de transporte, armazenagem e correio e de saúde humana e serviços sociais. Nesses setores, os rendimentos das mulheres correspondem a 51,2% e 60,9% dos homens, respectivamente.

Outros cargos

As mulheres são minoria também em cargos de poder no serviço público, tanto na política como na Justiça, mostra a pesquisa. Em relação ao parlamento, por exemplo, apenas 17,9% dos deputados federais eram mulheres em novembro de 2023.

Apesar de apresentar um avanço em relação a setembro de 2020, quando as deputadas federais representavam 14,8% do total, o Brasil ainda está na 133ª posição entre 186 países, no que se refere à participação parlamentar das mulheres.

Em 2020, somente 12,1% dos municípios elegeram prefeitas – das quais dois terços eram brancas. Do total de parlamentares municipais eleitos naquele ano, 16,1% eram vereadoras.

Em relação aos ministérios, apenas nove dos 38 cargos com status ministerial eram ocupados por mulheres em novembro de 2023.

Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que houve um avanço na parcela de magistradas no país de 1988 (24,6%) para 2022 (40%), mas as mulheres ainda são minoria. Na Justiça estadual, as mulheres são 38%, enquanto no Superior Tribunal de Justiça (STJ) são 23%.

Educação

Se, no mercado de trabalho formal, os homens levam vantagem, na educação são as mulheres que mais se destacam.

Entre os estudantes que estão no último ano da faculdade, 60,3% são mulheres. A maior parte delas está concentrada nos cursos de graduação relacionados à área de bem-estar (91% são mulheres).

“Elas concluem o ensino superior numa proporção maior do que os homens, então supostamente deveriam ter uma média salarial maior, mas quando você olha as áreas em que elas têm participação maior, são as áreas menos valorizadas”, ressalta a pesquisadora Betina Fresneda.

Nos cursos de ciência e tecnologia, que incluem as áreas de ciência, tecnologia da informação, matemática, estatística e engenharia, as mulheres são apenas 22% dos concluintes.

“Apesar de elas estarem em ampla vantagem no acesso ao ensino superior, e isso não mudou muito em 10 anos, elas ainda enfrentam barreiras para ingressar em determinadas áreas do conhecimento, especialmente naquelas ligadas a ciências exatas e à esfera da produção”, destaca Betina.

Segundo a pesquisa, entre as mulheres com 25 anos de idade ou mais, 21,3% tinham completado o ensino superior, contra 16,8% dos homens. Percebe-se, no entanto, desigualdade maior quando se compara as mulheres brancas (29%) com as pretas ou pardas (14,7%). A disparidade de cor ou raça pode ser observada também no quesito frequência escolar: 39,7% das mulheres brancas de 18 a 24 anos estudavam, contra apenas 27,9% das mulheres pretas ou pardas.

 

CEO

Milena Palumbo, primeira mulher CEO da GL events Brasil – Foto: GL events Brasil/Divulgação

O sonho de adolescente era ser jogadora de vôlei. Passado algum tempo, pensou em fazer faculdade de medicina. Enquanto não chegava esse momento, o rumo mudou e foi em um curso de turismo na Faculdade Federal do Paraná que Milena Palumbo encontrou o caminho na área de planejamento, que a levou atualmente a ser a primeira mulher a ocupar o cargo de CEO da GL events Brasil, uma das unidades do grupo espalhado em mais de 20 países de cinco continentes com a matriz na França.

O grupo, no qual está há 17 anos, é líder mundial do mercado de eventos culturais, esportivos, institucionais, corporativos ou políticos e congressos e convenções, além de feiras de negócios e exposições. “O caminho feminino é muito mais complexo. Tem mais obstáculos, alguns sprints maiores. Tem que estar mais bem preparada, tem que estar com preparo físico muito melhor. A mulher para chegar em funções ela precisa entregar mais e ser mais preparada do que os homens”, avalia em entrevista à Agência Brasil.

A descoberta da área de planejamento foi fundamental para a carreira de Milena. A medicina perdeu uma médica e o mercado ganhou uma administradora. Milena reconheceu que nem sempre outras mulheres conseguem o apoio que recebeu tanto dos pais, ao resolver o seu destino profissional, quanto, depois, do marido, quando precisou se transferir de Curitiba, no Paraná, para assumir um cargo em uma unidade da empresa no Rio de Janeiro. Naquele momento estava casada há 3 anos e chegou a ficar insegura, até pensando em não aceitar a transferência.

“No mundo masculino seria uma coisa positiva, porque a mulher acompanha, não tem tantos dramas, não passa por um dilema como eu passei. Embora a pauta seja feminina, um dos meus maiores suportes é o meu lado masculino em casa, porque ele foi a pessoa que mais me deu força e disse ‘vai’”, disse, acrescentando que em nenhum momento houve a sensação de ficar devendo ao marido. “Nunca fui devedora desse movimento profissional, e esse movimento foi onde minha carreira alavancou”.

A referência dos pais que são ortodontistas, e sempre tiveram juntos uma vida profissional, ajudou na sua evolução profissional. Após a chegada ao Rio de Janeiro, foi um longo aprendizado em áreas onde não tinha exercido qualquer função e o conhecimento ainda não era completo.

Preconceitos

Conforme foi evoluindo e alcançando cargos, foram surgindo também as diferenças. Em uma viagem acompanhando um presidente de uma empresa, foi perguntada se era secretária dele, mas, na verdade, era diretora da empresa. Em outro momento, um diretor com o qual trabalhava precisou dizer a um executivo estrangeiro que se dirigisse a ela, porque era a diretora do projeto. “O cara continuou falando com ele. Esse é o direto, é um choque, mas aí estou falando de cultura”, disse, defendendo que não se pode normalizar situações deste tipo.

Milena apontou ainda a questão dos elogios à aparência, como mais um fator cultural. Nesse caso, é como se as mulheres precisassem ser agradecidas. “Eu não saio de um almoço de trabalho e falo ‘nossa como você está bonito’ [se dirigindo a um homem]. ‘Nossa essa roupa te cai muito bem’. As mulheres não fazem isso. Você aceita um elogio se está em uma situação social diferente. Não em ambiente profissional”.

A CEO tem duas filhas, uma de 11 e a outra de 8 anos de idade. “Tive momentos difíceis. Na primeira gravidez, eu estava no meio da Rio+20, um evento super complexo, extremamente estressante. Eu já era diretora e a gente entregou tudo para a Rio+20. Foram 156 países representantes em um evento com mais de 20 mil pessoas, que exigiu 6 meses. O evento acabou, dei à luz 3 semanas depois. É possível, mas você é exigida. Na segunda filha, eu estava de licença e precisei voltar porque a gente ia entrar em concorrência de um mega projeto para o grupo no Brasil”.

Para as filhas, Milena quer que façam boas escolhas na vida. “A primeira coisa do fundo do meu coração é que elas façam boas escolhas. Em relação à vida profissional, que seja em alguma coisa que tenham muito prazer. Vai ser difícil, mas que elas saibam que 70% do tempo vão ser de coisas que não gostam e 30% que gostam em qualquer decisão profissional que tenham”, desejou, lembrando de como é a realidade. 

Baixada Santista tem violência institucional crônica, diz Defensoria

As comunidades da Baixada Santista têm vivenciado situação de violência institucional crônica, por meio de reiterados abusos policiais. A conclusão é da Defensoria Pública de São Paulo, a partir de relatos colhidos nas regiões afetadas pela violência policial praticada no âmbito das Operações Escudo e Verão, do governo do estado.

“[Os abusos] vão desde xingamentos, a invasões de domicílio, uso inadvertido e desproporcional de armamento de fogo pesado em meio a aglomeração de pessoas, limitação de circulação no espaço público até mortes praticadas por intervenção policial com características de execução sumária”, diz relatório da Defensoria produzido a partir de visitas realizadas em três comunidades, no dia 22 de fevereiro deste ano, e divulgado ontem (5).

No total, foram ouvidas 24 pessoas atingidas pela violência institucional na Vila Teimosa e Vila Sonia, em Praia Grande; Vila dos Pescadores, em Cubatão; e Vila dos Criadores, em Santos. Além disso, o órgão tem recebido relatos de violência policial pelo atendimento virtual.

Desde o ano passado, a Baixada tem sido alvo de grandes operações policiais, após policiais militares serem mortos na região. O número de pessoas mortas por PMs em serviço na região aumentou mais de cinco vezes nos dois primeiros meses deste ano. Em janeiro e fevereiro, os agentes mataram 57 pessoas, segundo dados divulgados pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP). No primeiro bimestre de 2023, foram registradas dez mortes por policiais em serviço na região. 

“Os relatos aqui mencionados, longe de constituir casos isolados de desvios de conduta individuais de policiais, ilustram o quadro contínuo e sistemático de violações de direitos fundamentais dos moradores das comunidades periféricas da Baixada Santista”, apontaram as defensoras públicas Fernanda Balera, Cecilia Ferreira e Surrailly Youssef, no relatório.

A situação, segundo avaliaram, é fruto tanto da precariedade de planejamento nas ações policiais que levem em consideração a proteção de seus moradores, quanto de uma cultura permissiva de variadas violações de direitos humanos e desrespeito em relação a população residente de favelas e territórios periféricos.

A Defensoria verificou ainda a maior vulnerabilidade de crianças e adolescentes aos excessos do uso da força policial. Houve relatos descrevendo mudança da dinâmica de vida, incluindo a frequência escolar, de crianças e adolescentes, especialmente com limitações do direito ao brincar e maior exposição a abordagens policiais seletivas.

Depoimentos

Mãe de uma criança de 12 anos com paralisia cerebral, uma das testemunhas contou que as crianças não têm mais liberdade de ficar na rua ou brincar no parquinho e que os policiais militares não respeitam os menores de idade.

“Faz duas semanas, estava voltando da escola com meu filho quando iniciou um tiroteio. Na sequência, eu estava passando por uma rampa, um policial da rota impediu que eu continuasse a passar pela rampa. Ele me disse que se eu quisesse eu que esperasse passar o tiroteio ou que me deitasse no chão”, relatou aos defensores.

Outra testemunha contou que policiais militares apontaram fuzis ao seu filho de dez anos e mais três amigos, que estavam brincando em frente a uma associação de moradores, em Praia Grande. A moradora contou também que policiais sem identificação e armados com fuzis invadiram a comunidade e entraram em algumas casas.

Segundo a testemunha, uma mulher foi abordada, pegando-a pelas costas e sentaram-na no chão, na chuva. Usando palavrões, os agentes pediam que ela informasse onde era o ponto do tráfico. Como respondeu que não sabia, quebraram o celular dela, jogaram gasolina em seu rosto e a mandaram subir sem olhar para trás.

Segundo a Defensoria, os relatos colhidos descrevem buscas domiciliares generalizadas, em que não há situação de flagrante delito ou determinação judicial, ou seja, fora dos limites constitucionais e legais impostos à atividade de segurança pública. Uma mulher relatou que, em fevereiro, estava em casa lavando roupas quando os policiais entraram em sua casa e colocaram o fuzil na cara da sua filha de 10 anos.

“Eles chamam de operação, mas é matação. Eles chegam atirando e falam que é troca de tiro. Eles entram na comunidade, invadem o barraco (…). As crianças estão apavoradas, pois a polícia entra com tudo e com a viatura. Desconsideram que tem crianças e idosos”, relatou outra moradora. “Para eles é uma favela perigosa, mas para nós é uma comunidade”, acrescentou.

Segundo relato de uma jovem de 17 anos, policiais estavam correndo atrás de um menino e entraram na casa da mãe dela procurando por ele. Perguntaram se elas o conheciam e, quando responderam que não porque tinham acabado de se mudar, os agentes as ameaçaram.

“Os policiais começaram a questionar e intimidar, falando que iam verificar se ela tinha se mudado mesmo, falaram que iam ‘forjar’ – ‘vou colocar 1kg de droga na sua casa’. Eles dizem que quem está em casa ‘tá guardado’, mas não está. A gente tá mais seguro na rua, com outras pessoas vendo, do que em casa”, contou a jovem.

Transparência

O Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos do órgão avalia ainda que é necessário e urgente uma maior transparência, controle e responsabilidade em relação às operações policiais no local, mediante o fornecimento de informações às instituições do Sistema de Justiça, sendo a Defensoria Pública e o Ministério Público.

Entre tais informações, deveria constar o responsável pela ordem da operação, o comandante da execução e fiscalização e o objetivo da operação policial; a identificação das pessoas detidas e mortas – policiais ou não; as buscas domiciliares realizadas, com ou sem mandado judicial; a relação de policiais militares que usam câmeras operacionais portáteis, bem como o acesso às imagens em sua integralidade nas ocorrências em que haja morte em decorrência de intervenção policial.

A Agência Brasil solicitou posicionamento à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e aguarda posicionamento.

Guerra na Ucrânia e meio ambiente são temas de mural em São Paulo

Na movimentada esquina da Rua dos Pinheiros com a Avenida Pedroso de Morais, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, duas imagens passaram a conviver nos últimos dias. Na primeira há uma dançarina com o corpo levemente inclinado para um dos lados e mãos delicadamente para o alto. Ela parece estabelecer um diálogo com a parede ao lado, onde está pintada a imagem de um vaso azul e amarelo sendo remendado e reconstruído pelas mãos de duas pessoas.

Cada uma dessas duas imagens que foram pintadas na parede de um mesmo prédio residencial localizado na Avenida Pedroso de Morais, número 144, expressa estilo e linguagens diferentes. Mas elas foram feitas por meio de um trabalho colaborativo e estão lado a lado para lembrar os dois anos da guerra entre a Ucrânia e a Rússia e defender proteção ambiental. Chamado de The Exchange (o intercâmbio, em português), o mural está sendo inaugurado hoje (5) e é uma iniciativa do Instituto Ucraniano no Brasil.

A primeira imagem, a de uma dançarina imitando o movimento de borboletas, foi feita pelo famoso artista ucraniano Sasha Korban, em sua primeira visita ao Brasil. Para vir ao país, ele precisou pedir permissão especial do governo ucraniano. “Eu não estava participando diretamente do campo de batalha, mas como na Ucrânia está tendo guerra, os homens não podem atravessar fronteira [sem autorização]”, disse ele à Agência Brasil.

Korban ficou mundialmente conhecido por sua obra Milana, um mural pintado em setembro de 2018 em um prédio da cidade ucraniana de Mariupol. A pintura, uma menina de três anos abraçada a um urso de pelúcia, homenageou a pequena Milana Abdurashytova, que teve a mãe morta por um ataque de míssil russo enquanto tentava protegê-la. A pintura acabou se tornando um símbolo de resistência no país.

São Paulo – Ukrainian Institute une os artistas Eduardo Kobra Sasha Korban em mural no bairro de Pinheiros – Foto Paulo Pinto/Agência Brasil

A obra ao lado, que mostra borboletas emergindo de um vaso tradicional ucraniano rachado, é do artista brasileiro conhecido no país e no mundo: Eduardo Kobra. Muitas de suas obras, como o mural que pintou para a Organização das Nações Unidas, em Nova York – e que mostra um pai entregando o planeta para sua filha – têm como tema a preservação do meio ambiente e a construção da paz.

“Gosto de tratar de temas que falam de paz, de tolerância, de união dos povos, de respeito, de coexistência. Já venho há muitos anos trabalhando os murais com essas temáticas”, disse o artista brasileiro. “[Achei a ideia do mural conjunto] excepcional justamente para que possamos, juntos, por meio dos nossos pincéis e das nossas tintas – que são as nossas armas – passarmos essa mensagem pedindo o fim dessa guerra, que é um absurdo”.

“Acho que qualquer pessoa percebe o quão absurdo é qualquer tipo de guerra e eu acho que o mundo tem que se mover para que esse tipo de conflito cesse o mais rápido possível”, ressaltou Kobra.

União pelo mural

O primeiro encontro de Kobra e Korban no Brasil ocorreu em Itu, no interior de São Paulo, onde o artista brasileiro recentemente inaugurou seu ateliê. Foi ali que eles pensaram no desenho que estamparia as duas paredes do prédio. O trabalho de pintura teve início na última terça-feira (27).

“[No meu ateliê] pudemos discutir detalhes técnicos de proporção, de tamanho, de estética e de logística, e em como a gente iria fazer para organizar essa pintura”, disse Kobra. “Não é fácil [uma pintura como essa]. A gente pegou agora uma semana, ainda bem que não choveu, mas teve calor intenso, então é um trabalho realmente duro, mas, como costumo dizer, o mais importante não é a pintura em si, mas a mensagem, o argumento”, acrescentou.

Cada um com seu traço e suas cores, eles foram construindo esse mural conjuntamente, lado a lado. As borboletas de Kobra vão de encontro à bailarina de Korban e simbolizam o voo de liberdade que os ucranianos desejam alçar. Já o gesto das mãos, que se destaca em ambos os trabalhos, mostra a reconstrução de um país que foi destruído pela guerra. Com isso, o mural acaba se transformando em um tratado sobre união e paz e um manifesto pela proteção do meio ambiente.

“Quero fazer isso, desenhar algo que dê esperança ao nosso país e aos nossos povos, para que ainda possamos ser como vivíamos antes. Claro, a guerra teve sua influência em todo o povo ucraniano e para mim também. Eu sempre estava desenhando algo que dava esperança, que mostrava a vida e a vontade de viver. Mas depois que a guerra começou, minha arte começou a refletir mais essas ideias de esperança, de desejo de vida e a ideia de que vamos conseguir resistir e termos uma vida normal”, disse Korban. “Meus desenhos não são diretamente sobre guerra, mas mostram a humanidade na condição dessa guerra”.

São Paulo – Ukrainian Institute une os artistas Eduardo Kobra Sasha Korban em mural no bairro de Pinheiros – Foto Paulo Pinto/Agência Brasil

A dançarina, descreveu o artista ucraniano, é um símbolo dessa luta. “A minha parte do desenho é uma moça que está dançando, mas na verdade essa dança é uma luta, uma batalha. Em conjunto com a parte do mural do Kobra, ele demonstra a luta e toda a tentativa de preservar a natureza, porque eu sei que aqui no Brasil vocês também têm esse campo de batalha que é a preservação da natureza. O desenho mostra a tentativa de preservar a integridade da Ucrânia, de salvar a Ucrânia e, ao mesmo tempo, de salvar toda a natureza”, falou Korban.

Projeto

Unir Kobra e Korban no projeto de um mural no Brasil para celebrar a paz e a preservação do meio ambiente foi ideia do Instituto Ucraniano, uma instituição governamental que tem a missão de promover a cultura ucraniana. “Este é o nosso primeiro projeto no Brasil e inclui dois artistas, um ucraniano e um brasileiro, porque por meio da arte nós conseguimos falar não somente sobre os problemas que temos em comum, mas também das oportunidades e poderes que temos em comum”, disse Alim Aliev, diretor-adjunto do Instituto Ucraniano, em entrevista à Agência Brasil.

“Além de destruir muitos artigos de arte, muitas vidas e os destinos do povo, a guerra também está destruindo a ecologia e o meio ambiente. Hoje, a Ucrânia é considerada um dos territórios mais poluentes do mundo. Entendemos que se não nos mobilizarmos com essa tema hoje, juntos e com todo o mundo democrático, então amanhã nos espera um futuro muito difícil”, acrescentou Aliev, que também obteve permissão do governo ucraniano para vir ao Brasil.

Segundo o embaixador da Ucrânia no Brasil, Andrii Melnyk, a guerra transformou milhões de hectares da Ucrânia em campos minados, repletos de projéteis e substâncias químicas tóxicas, e causou uma destruição ambiental generalizada. Além disso, ela tem privado milhares de ucranianos do acesso à água potável. “Dois anos após a invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia, os danos ambientais deliberados causados pela guerra trouxeram consequências devastadoras para infraestruturas essenciais, recursos naturais, ecossistemas críticos e a saúde, meios de subsistência e segurança das pessoas”, disse ele em nota.

Aliev conhece bem essa realidade. “A Ucrânia, em geral, está em guerra. E por isso cada um faz alguma coisa que pode ajudar a criar a paz. Nós estamos perdendo nossas pessoas, perdendo nossos melhores conterrâneos. Eu, por exemplo, tenho amigos que agora estão no campo de batalha. Também tenho amigos e parentes que moram no território ocupado, porque eu sou da Crimeia, então eles estão sofrendo lá com essa situação de ocupação. Eu tenho muitos amigos que foram forçados a migrar para outros países. E por isso é muito importante conseguir alcançar essa paz, para que todo o povo que agora está espalhado pelos outros países possa voltar [para a Ucrânia]”, disse ele.

Para o diretor do Instituto Ucraniano, a arte pode ser importante instrumento nesse caminho de construção para a paz. “O artista é muito importante porque qualquer povo, qualquer país, sempre se une ao redor dos valores. A arte é muito importante porque podemos nos unir com base na confiança. E o que é essa confiança? Confiança é quando você conhece outro, quando você conhece suas tradições, quando você conhece suas culturas e seus costumes. E é somente por meio da arte que poderemos conquistar essa confiança um no outro”.