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Defensoria do Rio leva projeto social a terreiros

A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ) promove neste sábado (27), a partir das 9h, a primeira edição do projeto Defensoria em ação nos terreiros, no campus Seropédica da Universidade Federal Rural (UFRRJ). No município de Seropédica ficam diversos terreiros de religiões de matriz africana, como o Ilê Asé Omi Gbonã, que recebeu equipes da Defensoria Pública em fevereiro, quando surgiu a iniciativa.

Para a Agência Brasil, a coordenadora da Promoção da Equidade Racial (Coopera) da DPRJ, Daniele da Silva, disse que o órgão recebe muitas demandas de racismo religioso, que nem sempre resultam em registros de ocorrência nas delegacias.

Segundo ela, isso ocorre porque o racismo institucional existe dentro do próprio sistema de Justiça, envolvendo toda a engrenagem e também na Defensoria Pública. “Então, a gente resolveu fazer essa ação para dar visibilidade às demandas dos povos de terreiros”, explicou.

Será uma ação social em que a Defensoria prestará assistência jurídica em demandas de menor complexidade, o que o órgão faz de forma rotineira, disponibilizando solução para dúvidas sobre a formalização de terreiros; orientações jurídicas para casos de racismo religioso; orientação sobre ações de direitos de família, englobando alimentos, guarda, tutela, regulamentação de visita, interdição e divórcio; reconhecimento ou dissolução de união estável; registro tardio, retificação de registro civil ou certidão de nascimento; alvará e ações de consumidor de baixa complexidade.

O projeto conta com a parceria da Defensoria Pública da União, que dará atendimento sobre demandas previdenciárias; e do Departamento de Trânsito (Detran), que fará a expedição de carteiras de identidade.

Ação conjunta

Em paralelo, serão coletados casos de racismo religioso. “A intenção é uma ação em conjunto com gestores e gestoras de promoção da igualdade racial de dez municípios da Baixada Fluminense. É um pleito que eles trouxeram para a Defensoria Pública e a gente acolheu”, disse Daniele. A DPRJ tem feito encontros periódicos com esses gestores.

Outras duas edições do projeto deverão ser realizadas até o fim do ano, provavelmente em Itaboraí e São Gonçalo, onde são coletados muitos casos de racismo religioso. “A gente vê que é uma demanda muito invisibilizada no sistema de Justiça, Primeiro porque as pessoas não confiam no sistema de Justiça para fazer as denúncias. E, uma vez que são feitas as denúncias, muitas delas são arquivadas e não dão em nada. A gente acha que, com essa atuação coletiva, dando visibilidade, se possa proteger melhor os direitos dos povos de terreiros que, em sua maioria, são pessoas em situação de vulnerabilidade e sempre à mercê de um racismo recreativo e de práticas violentas, não só do Poder Público, mas do poder paralelo”, observou Daniele.

De acordo com a coordenadora da Promoção da Equidade Racial (Coopera) da DPRJ, é necessário detalhar e mapear o racismo religioso para buscar soluções mais eficientes, não só em nível nacional, mas também internacional, pois o racismo religioso é uma grave violação de direitos humanos”, esclareceu Daniele. A ação social se estenderá até as 15h. A programação inclui a exposição fotográfica Infância nos terreiros.

Ditadura invadiu terreiros e destruiu peças sagradas do candomblé

Desde criança, a iyalorixá Mãe Meninazinha d’Oxum ouvia a avó Iyá Davina, a iyalorixá Davina de Omolu, dizendo “nossas coisas estão nas mãos da polícia”. Aquelas palavras eram ditas com muita dor. As coisas às quais a avó se referia eram objetos religiosos, que foram apreendidos pela polícia fluminense, entre 1890 e 1946, em batidas realizadas em terreiros de candomblé e também de umbanda.

“Um dia a gente procura ver quais são essas coisas que estão nas mãos da polícia, que não só ela falava com tanta dor. Acho que na época elas [mães de santo] se sentiam impotentes e não sabiam o que fazer. Mas, graças a Deus e aos deuses, de tanto eu ouvir, nós tiramos esse Nosso Sagrado que estava nas mãos da polícia”, contou Mãe Meninazinha d’Oxum à Agência Brasil, em entrevista no terreiro Ilê Omolu Oxum, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense.

Mãe Meninazinha d’Oxum em seu terreiro na Baixada Fluminense – Tomaz Silva/Agência Brasil

“Entravam nos terreiros, quebravam o Sagrado. A polícia quebrava. Muitas peças estavam na polícia como prova de crime, como se a gente professar uma religião fosse crime. Nós éramos criminosos por ser de candomblé e por ser de umbanda e outros segmentos da África”, afirmou.

A dor de ter os objetos apreendidos era ainda mais intensificada por saberem que todo o acervo, que na verdade pertencia às pessoas de religiões de matriz africana, estava no prédio do Museu da Polícia, região central do Rio, onde funcionou o Departamento de Ordem Pública e Social (Dops), que foi local de repressão no período do regime militar.

“A gente faz tudo com muito carinho e ver tudo ser destruído de uma hora para outra. É a dor no corpo da gente. As pancadas no Sagrado refletem no nosso corpo. Com certeza é um desrespeito à ancestralidade. A gente não estava fazendo mal a ninguém. Só queria professar a nossa religião e cultuar os nossos orixás. Coisa que não podia. Consideravam que era magia negra”, apontou.

A transferência de local se transformou em uma demanda forte, especialmente de lideranças religiosas, o que resultou na campanha Liberte o Nosso Sagrado. Mãe Meninazinha d’Oxum foi uma das principais lideranças para que “as nossas coisas” saíssem das mãos da polícia.

“Por conta disso, eu comecei a me comunicar com as pessoas. Quase toda pessoa que vinha aqui [no terreiro] e eu tinha oportunidade, a pessoa não tinha nem nada a ver com isso, podia ser até de São Paulo, mas eu falava: ‘gente, está acontecendo isso’.”

Volta da perseguição

Ainda sem terem o Nosso Sagrado de volta, no período do regime militar, as pessoas de terreiros de candomblé e de umbanda ainda tiveram, de novo, que enfrentar outras invasões e perder seus objetos.

“Nos anos 70, muita coisa. Fui a uma reunião uma vez por conta de uma senhora que passou por isso. Que coisa triste. Entraram na casa dela. Entregaram um pedaço de madeira na mão dela para ela mesma quebrar [os objetos sagrados]. Muita humilhação. Ela não tinha alternativa e quebrando e chorando todo o Sagrado que era meu também”, revelou Mãe Meninazinha.

Toda a tristeza que passaram no período anterior estava mais uma vez presente. Para fugir da repressão, algumas lideranças transferiram as sessões dos terreiros para locais de florestas onde podiam professar a fé sem serem perseguidos por agentes do regime.

“Alguns babalorixás e iyalorixás iam para o mato para bater o candomblé porque dentro de casa não podia. Eram perseguidos e invadiam. Foi muito sacrifício para chegarmos até aqui. Levavam os instrumentos e faziam o candomblé lá”, relatou.

O primeiro terreiro Ilê Omolu Oxum aberto por Mãe Meninazinha para continuar o caminho da avó foi na localidade de Marambaia, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, em 1968. Mãe Meninazinha contou que, apesar de ser em pleno período do regime militar, não teve dificuldade em se instalar no lugar. “Era um lugar muito distante e no mato. Não chegaram lá para perseguir.”

Apesar disso, um tempo depois, a situação mudou. “Tivemos uns policiais que foram lá e disseram que iam fechar a casa. Que eu tinha que ir à delegacia. Botei a mão na cabeça e fui na delegacia. Quando cheguei lá, conversei com o delegado e ele disse que eu podia tocar lá [a casa]”, lembrou, acrescentando que o delegado quis saber quais eram os policiais que foram ao terreiro “perturbar esta senhora”.

“Essa mulher vai continuar batendo o candomblé dela, a macumba dela. Não tem que exigir documento. Ela vai continuar”, relatou o que disse o delegado naquele momento, acreditando que a reação dele foi resultado de uma ajuda dos orixás. “Orixá existe e, quando eles querem, querem mesmo.”

Umbanda

O historiador, escritor Luiz Antônio Simas cresceu dentro de um terreiro de umbanda, onde a avó era mãe de santo e fazia parte de uma rede de casas de santo em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. A presença da religião no município era forte. Mesmo sendo um período violento, segundo Simas, os momentos mais difíceis para a rede de terreiros da região não foram os do regime militar.

“Do ponto de vista do testemunho da minha família e dessa linha de terreiros, uma família inclusive com tendência à esquerda, os piores momentos não foram os da ditadura militar. A rigor, minha avó, por exemplo, não tinha nenhuma referência de um aumento da perseguição em Nova Iguaçu, durante o período da ditadura militar na Baixada Fluminense que concentrava grande número de terreiros de umbanda e candomblé no Rio de Janeiro”, comentou em entrevista à Agência Brasil.

De acordo com o historiador, o “período brabo” para as religiões de matriz africana e indígena foi outro. “O negócio foi muito pesado na primeira República, inclusive quando a polícia começa a apreender uma série de objetos que farão parte da infame coleção Magia Negra, que era o nome dado à coleção de objetos sacros apreendidos pela polícia”, apontou.

A década de 1930, na Era Vargas, conforme indicou Simas, foi muito pesada por causa da Delegacia de Costumes e da legislação de proibição do culto. Segundo ele, já na década de 1990, com o avanço de religiões pentecostais, surgiu “uma disputa pelo mercado religioso extremamente agressiva e o auge de ataques a terreiros com depredações”. “Basta dizer que a cidade em que cresci, Nova Iguaçu, que era muito marcada por uma rede de terreiros, sofreu um avanço muito impactante de religiões pentecostais com relatos absolutamente terríveis e constantes de casos de invasões de terreiros, típicos desse período do início do século 20.”

Peças do Acervo Nosso Sagrado – Oscar Liberal/Museu da República

Transferência

Depois de muita luta para recuperar os objetos religiosos, enfim, em março de 2023, o acervo Nosso Sagrado, composto por 519 peças, deixou o antigo prédio do Dops para ser guardado no Museu da República, no Catete, zona sul do Rio.

“Tudo que está no Museu da República foi, não digo tirado não, digo roubado. A pessoa entra na casa do outro, pega o que não é seu. Não é roubo? É roubado sim. Foi tudo para o Museu da Polícia porque era crime ser de candomblé, crime ser da umbanda. Crime”, afirmou a iyalorixá.

Para a Mãe Meninazinha d’Oxum, ver a coleção no Museu da República é uma conquista para o seu povo. “É uma vitória das religiões afro-brasileiras. Uma vitória depois de tanto que nós passamos. Muita humilhação, muto abuso, muita agressão física. Agora está em lugar de respeito, onde nós somos respeitados”, disse lembrando que Pai Procópio de Ogunjá, da Bahia, pai de santo da avó Iyá Davina “sofreu muito, foi preso, agredido, apanhou da polícia”.

O diretor do Museu da República e professor da Escola de Museologia e Departamento de Estudos e Processos Museológicos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Mário Chagas, destacou que outra vitória foi a mudança do nome do acervo feita pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

“O Iphan aceitou e alterou o nome da coleção que era uma demanda das lideranças que queriam que a coleção deixasse de ser denominada coleção Museu da Magia Negra e passasse a ser denominada acervo Nosso Sagrado. O Iphan aceitou essa reivindicação e no dia 21 de março de 2023 alterou o nome da coleção e publicou em Diário Oficial. Mantemos também o nome anterior até para ter um registro de racismo religioso e não apagar essa memória nefasta, destrutiva, reacionária e persecutória ao Nosso Sagrado”, informou à Agência Brasil.

Peças do Acervo Nosso Sagrado – Oscar Liberal/Museu da República

O diretor destacou que a transferência teve o protagonismo de lideranças religiosas. “Essa conquista, se pensarmos em termos de museologia, significa uma repatriação dentro da própria pátria e é uma conquista extraordinária. Talvez seja um dos eventos mais importantes dentro da museologia do Brasil nos últimos 30 anos”, disse.

O historiador e escritor Luiz Antônio Simas também considerou muito importante a transferência do Nosso Sagrado para o Museu da República. “Inclusive do ponto de vista simbólico, porque a República no Brasil, desde a proclamação, teve uma perspectiva vigorosamente higienista e eugenista. O projeto republicano desde a década de 1890 era ancorado numa perspectiva de branqueamento racial no Brasil e era um branqueamento que se estabelecia de duas maneiras: a tentativa de branquear a cor da pele do brasileiro, estimulando a imigração europeia, e uma tentativa de promover um branqueamento cultural, apagando, portanto, das referências da formação brasileira, os elementos não brancos desse processo. Nesse contexto, as religiões afro-indígenas foram vigorosamente atacadas”, observou.

Indígenas

Simas destacou que é preciso incluir os indígenas na questão dos acervos, porque, segundo ele, parte dessas religiões também tem influência dos cultos dos povos originários. “Toda a apreensão de objetos sagrados, importante dizer que não só de matriz africana, sempre faço questão de dizer isso, mas afro-indígena porque tem muita coisa das umbandas, apreendida ligada a culto de caboclo com raiz indígena muito forte. Esse processo todo na verdade é sintoma de um branqueamento racial que opera na dimensão material e simbólica do racismo. Então, estar no Museu da República é importantíssimo, até porque não tem que ser um museu de apologia à República, mas um museu tem que ter uma perspectiva reflexiva sobre o que foi e o que é a República brasileira. O Brasil não pode varrer para debaixo do tapete as violências materiais e simbólicas que formaram no fim das contas o país”, pontuou.

Mudanças

Apesar de verificar que ainda existe muita intolerância, Mãe Meninazinha acha que a situação melhorou um pouco, o que na visão dela, também é consequência de muita luta. “Depois dos nossos movimentos, graças a Deus e aos nossos deuses, nós hoje já temos uma liberdade para professar nossa religião e tocar nosso candomblé. A umbanda tocar a sua umbanda. Vamos à praia no dia 31 de dezembro para salvar Iemanjá e no dia 2 de fevereiro”, comemorou.

“A religião que era aceita era o catolicismo. Candomblé e umbanda eram religião dos negros, até não eram consideradas religião e, sim, seita, mas graças a Deus hoje se reconhece o candomblé como religião. É de negros como eles dizem porque veio da África e a África é negra”, completou a iyalorixá.

Legado da avó

Nascida e criada dentro do candomblé, que começou com a avó, a Iyá Davina, e seguiu com Mariazinha de Nanã, a sua mãe, as duas vindas de Salvador para o Rio. Mãe Meninazinha, caçula de 15 irmãos fez santo quando tinha 23 anos e já com a função de dar continuidade ao que foi feito pela avó.

“Minha avó fez santo na Bahia, na casa do Pai Procópio de Ogunjá em 1910”, contou se referindo à origem da sua linhagem no candomblé.

Terreiro Ilê Omolu Oxum, de Mãe Meninazinha d’Oxum, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense – Tomaz Silva/Agência Brasil

A iyalorixá vê como missão levar a sua cultura para frente e desmistificar algumas mentiras propagadas sobre o candomblé e os orixás. “Estou fazendo o meu papel. Faço o meu papel de iyalorixá, de cuidar daqui, dos meus filhos e da religião fora daqui, deste espaço. Tenho que mostrar para o povo, que não deveria ter que mostrar, mas as pessoas têm que conhecer a religião e saber que a religião não tem nada a ver com demônio. Que Exu não é demônio.”

Nem todos da família seguiam esta religião. Embora não criasse barreiras para a mulher, o pai da iyalorixá não era do candomblé. “O meu pai não gostava. Ele dizia ‘eu não gosto desse negócio de macumba’, mas ele não impedia de minha mãe frequentar. Nós, ainda crianças. Ela era iyalorixá na casa [terreiro] em Mesquita [Baixada Fluminense]. Ele não se incomodava. Ele não queria para ele. Acho que ele até acreditava, mas não gostava. Ele era de Oxossi”, lembra Mãe Meninazinha.

Após cinco anos do terreiro na Marambaia, em Nova Iguaçu, Mãe Meninazinha d’Oxum transferiu a casa para São João de Meriti, também na Baixada Fluminense, onde está até hoje. “Procuramos um terreno e encontramos esse aqui. Construímos aos pouquinhos e estamos aqui”, disse.

Aos 86 anos, Mãe Meninazinha d’Oxum disse que hoje não tem o que se queixar. Vive com tranquilidade e se relaciona bem com integrantes de outras religiões que vivem próximos ao terreiro, como um vizinho evangélico e de uma casa de umbanda.

“Eu sou feliz”, contou. “Tudo, minha religião, meus amigos, meus filhos, os orixás, principalmente os orixás. Essa religião para mim é maravilhosa. Nasci e me criei dentro do candomblé. Para mim é tudo. Digo que é o ar que respiro. É água que bebo, a dor que sinto. Tudo isso é a minha religião. Tem que ser respeitada e eu luto por isso. Nós de candomblé e umbandistas somos atacados com intolerância e desrespeito, mas nunca atacamos o outro lado”, concluiu, destacando que tem parentes ligados à Igreja Evangélica.

Peças resgatadas de ataques em terreiros podem ser tombadas este ano

Instrumentos musicais, indumentárias, estatuetas, insígnias e outros objetos sacralizados compõem um acervo raro de 216 peças que foram roubadas em 1912 de terreiros em Alagoas, mas não destruídas, durante o maior ataque na história do Brasil a religiões de matriz africana. Esse conjunto de materiais resgatados, de valor histórico e cultural imensurável, pode ser finalmente tombado neste ano como patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

O ataque ocorrido a partir da madrugada do dia 2 de fevereiro de 1912 (há exatos 112 anos), em episódio que ficou conhecido como “Quebra de Xangô”, teria atingido, ao menos, 70 casas de religiões de matriz africana em Maceió e também em cidades vizinhas. De acordo com pesquisadores, um grupo que se intitulava Liga dos Republicanos Combatentes promoveu, naquele dia, terror com invasões, vandalismo, espancamentos e ameaças, além de roubar objetos sagrados.

Esses objetos a serem tombados, expostos na época pelos agressores como símbolo de vitória, passaram a significar a comprovação do crime. O ataque foi cometido pela agremiação política que fazia oposição ao governador da época, Euclides Malta, e o ‘acusava’ de proteção e proximidade aos terreiros. Por isso, prepararam aquele que se tornou um ataque sem precedentes de intolerância religiosa no país. Hoje, as 216 peças não destruídas estão sob guarda do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL).

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, conhecido como Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação

Segundo o historiador Clébio Correia, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), esse é o único caso registrado na história brasileira de quebra de terreiros de forma coletiva. “A gente tem episódios de invasão e quebra de terreiros em todo o Brasil, mas individualmente. No caso de Alagoas, houve verdadeiro levante de uma turba organizada por uma milícia chamada Liga dos Republicanos Combatentes, que era um braço armado do político Fernandes Lima, inimigo do governador Euclides Malta, à época”, explica.

O historiador do Iphan Maicon Marcante lembra que muitos objetos sagrados foram destruídos e queimados em praça pública. “Porém, esse conjunto de objetos sobreviveu a esses ataques e permaneceu por um período no Museu da Sociedade Perseverança até 1950. Depois foram transferidos para o IHGAL”, afirmou Marcante. Foi por isso que a coleção de objetos ganhou o nome de Perseverança. O primeiro inventário das peças foi feito em 1985.

Hoje, as peças, segundo o pesquisador do Iphan, apresentam desgaste. O diagnóstico do Iphan para o tombamento vai orientar as ações de conservação e restauração. Os tecidos estão desgastados. Alguns fios de conta estão arrebentados. “Mas, de forma geral, as peças estão preservadas. A gente está falando de estatuetas representativas de orixás, de instrumentos musicais, indumentárias, objetos e insígnias. São mais de 40 braceletes e pulseiras”.

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, conhecido como Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação

Mais divulgação

Maicon Marcante ressalta que, a partir do momento em que a coleção Perseverança for tombada pelo Iphan como patrimônio cultural brasileiro, haverá a responsabilidade do órgão na preservação e acautelamento desses bens. Nesse momento, ocorre a fase final de instrução de tombamento, que conta com a participação de representantes da comunidade de religiosos no processo de atribuição de valores e de significação cultural das peças. 

Ele explica que ao fim da fase de instrução, o processo passa por trâmites internos com avaliações na Câmara Técnica e no Conselho Consultivo, o que poderia ocorrer ainda no primeiro semestre de 2024. Após o tombamento, além das ações de preservação, conservação e estudo da historiografia, devem ser tomadas outras medidas para maior difusão do episódio invisibilizado. “Devemos levar o conhecimento sobre esse acervo, sobre esses objetos, para um público mais amplo, fora de Alagoas, inclusive. Podemos pensar em exposições virtuais também”.

Reverência aos ancestrais

 Entre as lideranças que colaboraram com o trabalho do Iphan está a Mãe Neide Oyá D´Oxum, de 62 anos. Ela afirma que os objetos e a memória do episódio de 1912 guardam o símbolo da resistência das religiões de matriz africana. “É a nossa história e com a qual podemos reverenciar a luta dos nossos ancestrais”. Um reconhecimento, segundo ela, veio em 2012, do então governador Teotônio Vilela Filho, que ediu desculpas, em nome de Alagoas, pelo episódio escandaloso de violência racista. 

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, conhecido como Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação 

Entre esses fatos, Mãe Neide cita Tia Marcelina que, conforme foi documentado pelos religiosos de Alagoas, foi espancada na noite do Quebra de Xangô e acabou morrendo nos dias seguintes. “Enquanto ela era açoitada, disse que os agressores poderiam quebrar braço e perna, tirar sangue, mas que não conseguiriam tirar o saber dela”.

Para preencher lacunas

De acordo com a professora Larissa Fontes, que produziu tese de doutorado na Universidade Lumiere Lyon (França) sobre as peças que restaram do ataque em Alagoas, a coleção Perseverança é o documento mais importante para a memória religiosa no estado. “São mais de 200 objetos que estão hoje abrigados no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas em estado deplorável, precisando muito de restauro, de um projeto sério de salvaguarda. A gente está nessa luta há muitos anos para o tombamento e caminhando agora concretamente para que isso saia neste ano”.

O livro da professora Larissa, O museu silencioso, foi publicado na França. A obra será também impressa no Brasil. Larissa, que é pesquisadora e também religiosa, colaborou com o Iphan e informa que o dossiê a ser entregue para aprovação do tombamento já está praticamente pronto. “Na minha pesquisa de doutorado, fui atrás da biografia desses objetos, buscando a tradição oral das comunidades religiosas afro-brasileiras de Alagoas, muito afetadas pela repressão e por esse silêncio”. Ela acrescenta que descobriu na pesquisa sinais e vestígios de perdas de materiais.

Larissa atribuiu essas lacunas à dificuldade de acesso e às peculiaridades da história. “Diferentemente de outros episódios de repressão que a gente teve no Brasil, que era a polícia que invadia terreiros, quebravam coisas e batiam em gente, e guardava os autos dos processos, em Alagoas, curiosamente, o Estado estava ausente da ação”.

A pesquisa atual da professora é um prolongamento da tese e pretende trazer de volta a Alagoas conhecimentos de perdas litúrgicas por meio de religiosos, autoridades religiosas que ainda detêm conhecimento na Bahia. “É muito importante essa ação patrimonial de recuperação e de reparação da memória”, afirma Larissa, docente do Departamento de Ciências Humanas e Sociais do Instituto Superior de Eletrônica e Tecnologia Digital, de Brest (França).

Peça que restou do ataque de intolerância religiosa em Alagoas, conhecido como Quebra de Xangô, que ocorreu há exatos 112 anos – Foto Larissa Fontes/Divulgação

Para o historiador Clébio Correia, professor da Ufal, a despeito do Instituto Histórico ter cumprido papel de salvaguarda desse material, o entendimento dos “povos de terreiros” é que esses documentos deveriam estar em um museu, um memorial afro de Alagoas. “E não em um espaço da elite branca intelectual do estado. A gente está vivendo, neste momento, o processo de tombamento legal, muito importante para garantir a proteção das peças”.

Na sua opinião, a coleção Perseverança é o símbolo maior do ataque e mobiliza hoje os terreiros de Alagoas. “É o que a gente chama de prova material da resistência negra no estado. E gera esse ideário dos terreiros de ter um espaço próprio da memória em Alagoas”. 

“Imprensa preconceituosa”

Em busca também de compreender o violento episódio, cercado de apagamentos, o professor de antropologia Ulisses Neves Rafael, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), assinou a tese Xangô Rezado Baixo, que faz referência à proibição, posterior à repressão do dia 2, do uso de atabaques nos terreiros, o “rezado baixo”. 

Ele descobriu o episódio por acaso, durante o mestrado, e se surpreendeu que praticamente não havia pesquisa sobre o ataque. Assim buscou garimpar o quebra-cabeças em veículos, com publicações desde o início do século 20 até os episódios de 1912. “O Jornal de Alagoas (veículo de oposição ao governador e o principal objeto de análise) publicou uma série de oito reportagens”.

Para esclarecer as lacunas da violência, descobriu que a imprensa teve um tom preconceituoso contra os terreiros. “A imprensa foi instrumento dessa repressão. Os textos tinham uma linguagem muito preconceituosa e racista. Na verdade, eles tiveram papel fundamental na construção dessa imagem negativa dos terreiros”, explica o professor, que desenvolveu a pesquisa na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a partir do ano 2000.

Segundo a jornalista Valdeci Gomes da Silva, da Comissão Nacional de Jornalistas pela Igualdade Racial, a imprensa em Alagoas contribuiu, ao longo da história, com a reprodução do racismo. “Não foi diferente no Quebra de Xangô. Como naqueles dias, até hoje há quem se refira aos rituais das religiões de matriz africana como magia negra. Isso é um termo muito racista e que a gente não pode admitir”. A pesquisadora avalia que os jornais demonstraram ser coniventes com a elite financeira.

O professor Ulisses Rafael, da UFS, acrescenta que as notícias do Jornal de Alagoas (veículo de oposição ao governador e o principal objeto de análise) tornaram os grupos ainda mais vulneráveis e foram capazes de mobilizar pessoas além da Liga dos Republicanos combatentes. “A campanha recebeu grande adesão da população, da sociedade civil. Falou-se em centenas de pessoas nas ruas”. 

Os jornais informaram que os episódios ocorreram na madrugada, mas que, na verdade, já havia antes um clima de perseguição e de ataque. O próprio governador teria sido obrigado a fugir do Palácio pelos fundos e ido para o Recife. “Nesse intervalo, em que ele se encontra afastado, as casas são atacadas. As invasões acontecem em Maceió, em terrenos mais afastados e também em cidades vizinhas”. O professor não crava o número de casas atingidas porque não foi divulgado um quadro completo de terreiros com nomes das pessoas ou localização. 

Essa adesão de dezenas pessoas ao ataque contra terreiros é compreendida pela professora de antropologia Rachel Rocha de Almeida Barros, da Universidade Federal de Alagoas, como sintoma de uma sociedade ainda escravagista, majoritariamente católica, provinciana e analfabeta.   “Imagine 100 pessoas correndo por Maceió em 1912, quebrando tudo”. 

Teria havido, na opinião da antropóloga, um planejamento prévio. Ao mesmo tempo em que existiam integrantes sem qualquer consciência, a Liga dos Republicanos Combatentes era civil, com característica paramilitar, e constituída também por ex-integrantes da Guerra do Paraguai. Nessa mistura, essas pessoas, segundo explica, estariam vestidas de foliões carnavalescos quando chegaram aos terreiros. O Brasil vivia uma lógica racionalista, ainda escravagista e as manifestações religiosas de pessoas pretas eram desumanizadas. “A abolição não tinha completado ainda três décadas”.

Quem também entende o papel “estratégico” dos agressores é o Pai Célio Rodrigues dos Santos, que é historiador. “Essa milícia procurou estudar qual era a data e os horários mais propícios de invasão aos terreiros (em vista dos momentos de homenagens e oferendas dos cultos). Eles chegaram trasvestidos de um bloco carnavalesco. Tocavam, batiam e gritavam. Chamavam de macumbeiros, quebravam tudo, agrediram e ameaçaram”. Como efeito, segundo o Pai Célio, líderes religiosos correram, fecharam suas casas e saíram. “Mas resistimos. Hoje, Alagoas tem um grande número de terreiros, principalmente na periferia. E aí são esses terreiros que dizem não à intolerância religiosa”, avalia. Ele acredita que existam ao menos 3 mil terreiros no estado.

Existem ainda outros efeitos, de acordo com o professor Clébio Correio, para a identidade local.  “Quando lemos as notícias de 1910, vemos que Maceió era vista na época como uma referência para os negros de outros estados. Vinham pessoas conhecer as religiões afro. Depois do quebra, passou a se vender para o resto do país como uma cidade de coqueiro, de sol e praia”, lamenta. O resultado disso foi um esvaziamento do carnaval de Alagoas porque as manifestações culturais foram silenciadas. 

A professora Rachel acredita que o maior interesse por essa temática, após os anos 2000, tem relação com a maior democratização do espaço acadêmico, coincide com a política de cotas e cria, com isso, reflexos nas temáticos sociais abordadas. “É muito importante ver que esse episódio revisitado gerou livro, discussões contemporâneas e também filme”.

O trabalho a que ela se refere é do professor Siloé Amorim, de antropologia da Ufal. O documentário 1912: o quebra de Xangô (confira aqui o roteiro).

O filme, produzido em mais de três anos, tem 52 minutos de duração e foi motivado principalmente pelo silêncio sobre o ataque e o desconhecimento da população, inclusive dos terreiros. “Poucas pessoas tinham conhecimento do caso. Maceió tem muitos terreiros e isso era muito pouco divulgado. Me surpreendeu muito o preconceito velado sobre as religiosidades de matrizes africanas aqui no estado”. Ele explica que a opção pelo filme tem relação com a necessidade de garantir visibilidade para um público maior a fim de denunciar o que ficou tanto tempo em silêncio.

Veja galeria de fotos:

Galeria – Intolerância religiosa – “Quebra de Xangô” – juca.varella