Skip to content

Quilombo Agbara Dudu preserva tradições negras no Rio de Janeiro

No encontro da Estrada do Portela com a Rua Sérgio de Oliveira, em Oswaldo Cruz, na zona norte da capital fluminense, surge o Grupo Afro Agbara Dudu (“força negra”, em iorubá). Fundada em 1982, a comunidade floresce em uma região marcada por manifestações culturais negras, como as escolas de samba Portela e Império Serrano, o baile charme do Viaduto de Madureira, o Jongo da Serrinha e a Feira das Yabás. Neste dia da Consciência Negra, a Agência Brasil conta a história desse quilombo urbano declarado Patrimônio Histórico, Cultural e Imaterial do Estado do Rio de Janeiro em setembro deste ano.

A relação principal do Agbara Dudu é com a Portela, já que o quilombo teve a Portelinha, antiga sede da escola de samba, como espaço inicial. “Nossa ligação é profunda. Tivemos o incentivo para pensar, construir e exercitar o Agbara de uma figura histórica da Portela chamada Tio Nozinho, que tinha um bar na Estrada do Portela”, informa o presidente do Grupo Afro Agbara Dudu, Elias José Alfredo.

Ele relembra que o bar era ponto de encontro dos compositores e integrantes da escola de samba. Lá, também foram realizadas as primeiras reuniões para pensar e organizar a comunidade. “Tio Nozinho viabilizou nosso acesso à Portelinha. O Agbara nasce na quadra da Portelinha. Muitos na Portela fizeram parte do Agbara desde o início”.

Rio de Janeiro (RJ) 18/11/2024 – O presidente do Quilombo Urbano Agbara Dudu, Elias José Alfredo, na sede em Oswaldo Cruz. Declarado Patrimônio Histórico, Cultural e Imaterial do Estado do Rio de Janeiros. Foto:  Fernando Frazão/Agência Brasil

Hoje, o espaço se apresenta como um quilombo urbano, formação social e cultural construída nas periferias da cidade, muito inspiradas nos quilombos rurais, e marcada pela resistência e pela preservação da cultura negra. “Nós nos orgulhamos de ser parte dessa história, de ser tombado como Patrimônio Histórico, Cultural e Imaterial do Estado do Rio de Janeiro”, afirma Elias.

Agbara Dudu

Respeitando suas raízes culturais, uma das principais atividades da comunidade é o resgate da memória e da cultura afro-brasileira a partir da música, do canto e da dança. O quilombo, que também conta com o Bloco Afro Agbara Dudu — considerado um dos primeiros blocos afro do Rio de Janeiro —, realiza anualmente o Fest-Afro, um festival musical que define o representante do quilombo no desfile de Carnaval de cada ano. “As temáticas que pré-estabelecemos nesse processo são geralmente ligadas à história afro-brasileira e africana. Uma quantidade enorme de músicas, que vão ser traduzidas na expressão do canto e da dança, é produzida”, comenta Elias.

“Esse é um momento nosso”, continua, “mas também tem a capoeira, essência da nossa história de luta”. Voltados para a comunidade, o Agbara realiza cursos, oficinas de dança e capoeira, debates, encontros e seminários sobre temas relacionados à população do quilombo. “Produzimos aulas de percussão, para ensinar o toque das músicas, trazemos o Samba Afro, ritmo cadenciado do Samba que se perdeu ao longo dos anos nas escolas de samba. O Agbara surge resgatando e preservando essa identidade cultural e musical”.

Apesar da intensa vida cultural, segundo Elias, um dos principais obstáculos enfrentado pelo Agbara Dudu é, justamente, dar continuidade à história local. À Agência Brasil, ele explica que foi com a vinda do sambista Paulo Benjamin de Oliveira, conhecido como Paulo da Portela — em referência à via que corta os bairros de Madureira e Oswaldo Cruz —, para o subúrbio que a comunidade começou a se organizar naquele espaço, inclusive na perspectiva da educação.

“Muitas pessoas eram analfabetas. O fim da escravidão era recente, então Paulo começa a organizar social, cultural e politicamente essa comunidade no espaço antes conhecido como Quilombo da Barra Preta”, relata Elias, que busca resgatar essa história. “Esses são os pilares do Agbara, resgatar, preservar e elevar a cultura afro-brasileira e africana. Nosso desafio é esse, mas também tem a titularização do espaço geográfico do quilombo, que é uma luta nossa”, disse.

Quilombos

Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Carlos Eugênio Líbano Soares explica que os quilombos urbanos surgiram a partir da própria sociedade, com a revolução urbana do século 18. “Com a descoberta do ouro em Minas Gerais e a circulação de riqueza em cidades como Rio de Janeiro e Salvador, esses espaços começam a alcançar um nível de desenvolvimento e crescimento que cria uma nova sociedade, a sociedade urbana colonial, porque, até aquele momento, a sociedade colonial era totalmente rural”.

Com o processo e urbanização, também surgem condições para a criação de uma escravidão urbana. Ao mesmo tempo, os quilombos urbanos, inspirados nos rurais, nascem como locais onde os escravos em fuga encontravam iguais, sejam escravos livres ou libertos, e passavam a se organizar em sociedade. Segundo o professor, já na primeira metade do século 19 se tornam comuns as chamadas casas de quilombos, onde se escondiam os escravos em fuga no meio urbano.

Rio de Janeiro (RJ) 18/11/2024 – O Quilombo Urbano Agbara Dudu, em Oswaldo Cruz,. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil – Fernando Frazão/Agência Brasil

“O padrão de fuga no meio urbano é diferente do rural, assim como a escravidão urbana é diferente da rural, mas ambas dialogam, então não há uma barreira entre urbano e rural. Pelo contrário, as grandes cidades são profundamente marcadas pela vivência rural”, observa Soares.

O professor comenta que o fato de se organizarem em comunidades fez com que os quilombos urbanos sobrevivessem à própria escravidão, garantindo força de resistência e capacidade de memória coletiva e oral maior que nos quilombos rurais, por serem mais dispersos. “O quilombo no meio rural não é estático, como muita gente pensa, ele se movimenta, porque o controle repressivo é mais baseado no poder privado dos senhores e menos no poder público”, esclarece.

Dessa forma, os quilombos urbanos se tornam importantes para a manutenção das tradições africanas alteradas pela diáspora, que vão se perpetuar com o fim da escravidão a partir do século 19, tendo fim legal com a assinatura da Lei Áurea em 1888. “Falamos de samba, candomblé, umbanda, maracatu, tradições que vieram desses quilombos, dessas comunidades formadas por escravizados que operavam na clandestinidade por causa da repressão”.

Conforme o pesquisador, somente a partir da década de 1930 que a repressão racial começa a dar sinais de enfraquecimento. Mas, mesmo diante de uma resposta feroz da Colônia, do Império e, posteriormente, da República, as comunidades definidas hoje como quilombos urbanos conseguiram preservar esse legado e mantê-lo vivo. “Em alguns momentos, inclusive, a repressão da República foi mais feroz que a do Império e mesmo que a da Colônia, então esse legado sobrevive graças à perpetuação das comunidades quilombolas, muitas vezes produzindo cultura de forma oculta”, afirmou.

Atualmente, Soares considera que o principal desafio que essas comunidades enfrentam é se tornarem prioridades das políticas públicas. “Não há política que promova a integração efetiva dessas comunidades ao conjunto da cidade. Pelo contrário, o investimento, em geral, é feito nas áreas centrais, onde reside a classe média, e não nas áreas periféricas. Elas ficam abandonadas e só são lembradas no campo da criminalidade”.

Professora e secretária da Associação Cultural Quilombo do Camorim (Acuca), Thaís da Silva Oliveira, acrescenta que o desconhecimento do que são quilombos também dificulta na valorização e preservação das suas tradições.

“Hoje, todo mundo usa o nome ‘quilombo’ para ganhar dinheiro, porque tá na moda, mas ninguém sabe o que é um quilombo de verdade”, declara. “Quilombo não significa só ser preto, negro ou pardo. Quilombo é muito mais do que isso, é uma resistência”, afirmou Thaís.

Ela reforça que os quilombos são essenciais para a preservação cultural por serem espaços onde as histórias e tradições africanas se mantém vivas. Neles, também se praticam atividades transmitidas de geração em geração, garantindo que esses saberes não se percam no tempo. “O quilombo é um espaço de memória, um museu, onde se valoriza a ancestralidade e se celebra a identidade quilombola, elementos que muitas vezes não encontram espaço na sociedade moderna”, complementa.

Resistência

Em 2022, o censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), coletou pela primeira vez informações específicas sobre a população quilombola no país. A pesquisa identificou 7.666 comunidades distribuídas em 8.441 locais, formando uma população de mais de 1,3 milhão (1.330.186) de pessoas. Do total de comunidades, no entanto, apenas 494 Territórios Quilombolas foram oficialmente delimitados.

Rio de Janeiro (RJ) 18/11/2024 – O Quilombo Urbano Agbara Dudu, em Oswaldo Cruz, uma região marcada por diversas manifestações negras, como as escolas de samba Portela e Impérío Serrano, o Viaduto de Madureira, o Jongo da Serrinha e a Feira das Yabás. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Neles, residem 167.202 pessoas (12,6% da população quilombola). Para Elias, o reconhecimento do Agbara como Patrimônio Histórico, Cultural e Imaterial do Estado do Rio de Janeiro é uma forma de legitimar a contribuição do quilombo para o processo histórico e civilizatório do estado fluminense. “Para nós é muito importante, mas também é fruto de uma luta constante. O nosso papel está justamente em levar a cabo essa discussão, esse diálogo com a sociedade para que o Estado saiba da nossa condição histórica”, disse.

Ele defende que não só os quilombos urbanos, mas os quilombos rurais precisam que o Estado garanta a sua existência, processo que passa também pela educação. Do ensino básico ao superior, o presidente destaca a necessidade de se levar a cultura quilombola para as salas de aulas, despertando um olhar crítico sobre a condição dos quilombos no país e também para despertar uma consciência afro-cultural.

“Somos parte da história da sociedade, mas, nessa sociedade, fomos marginalizados, primeiro na condição de escravizados e, no pós-escravidão, na posição de marginais. A marginalização do povo negro é um fato. É fundamental traçarmos uma linha de ação que busque a superação dessa condição”, afirmou.

Como ferramentas para enfrentar essa realidade, o quilombo também promove os cursos de história da África e de línguas africanas. “A reparação é algo que o Estado nos deve e precisa ser encarado dessa forma, porque é um problema estrutural. Dos africanos e afrodescendentes foram tiradas a identidade e as possibilidades pelo estado colonial e escravocrata. O que fazemos hoje no Agbara é exercitar a nossa potencialidade intelectual, cultural e social. Temos feito isso enquanto instituição e enquanto grupo social, cultural e político”, destacou.

 

*Estagiária sob supervisão de Vinícius Lisboa

Embratur capacita Quilombo do Grotão para ser atração internacional

O Quilombo do Grotão, um dos mais tradicionais espaços de cultura negra do Rio de Janeiro, terá a presença na internet e nas redes sociais reformulada. A intenção é atrair cada vez mais visitantes, aumentando o alcance de turistas estrangeiros. A iniciativa é do EmbraturLAB, em parceria da Embratur com o Sebrae.

Localizado no Engenho do Mato, em Niterói, o Quilombo do Grotão promove uma série de atividades, desde oficinas com ervas medicinais para a produção de sabonetes a aulas de percussão, capoeira e artesanato, e desde 2003 se tornou um espaço de referência para o samba e a gastronomia.

“Eu fiquei muito satisfeito pelo nosso trabalho estar sendo reconhecido”, diz o presidente da Associação da Comunidade Tradicional do Engenho do Mato, José Renato Gomes da Costa, conhecido como Renatão do Quilombo, que é neto de Manoel Bonfim e Maria Vicência, que há 100 anos chegaram ao Grotão para ocupar aquele território.

Ele diz que o quilombo conta com a presença frequente de visitantes, sobretudo quando tem feijoada. “Nós temos um trabalho artesanal, musical, a própria feijoada. O carro-chefe do quilombo é o feijão. E nossos artesanatos, que as pessoas, os visitantes comem, levam, compram. E mais a roda de samba”, diz.

Segundo Renatão, nas visitas, a comunidade busca trazer a história do local, a vivência e ancestralidade.

“A gente acende as lamparinas. A gente não põe a energia elétrica. A gente tenta trazer um pouco a galera da cidade para uns 50, 60 anos atrás. E a nossa roda de samba é à luz do candeeiro”, conta.

Para os estrangeiros que visitam o local, eles contam com apoiadores que cuidam da tradução para o inglês, para que entendam o que está sendo exposto.

Presença digital

Agora, com o EmbraturLAB, na internet, a história e a experiência chegarão em outros idiomas nas buscas feitas pelo Google e nas redes sociais, como o Instagram. A intenção é que o conteúdo seja mais acessível ao público internacional e seja também mais atraente para o público nacional.

Segundo Renatão, já foi realizada uma primeira oficina no quilombo, na qual foi exposta uma proposta de estratégia de comunicação. A comunidade está levantando imagens e a história do local, para transformar em conteúdos para as redes sociais. O Instagram, por exemplo, que é um dos principais meios de divulgação do quilombo, ganhará uma nova cara.  

“A ação faz parte do nosso projeto de aumentar a performance comercial de micro e pequenas empresas do setor de turismo com o uso de ferramentas digitais gratuitas ou de baixo custo, como Google e TikTok. A meta é ampliar o alcance de produtos e serviços, qualificar ofertas e aumentar a receita dessas pequenas empresas. Essas plataformas digitais são fundamentais porque impactam diretamente o turista estrangeiro”, diz Marcelo Freixo, presidente da Embratur.

Conheça o Quilombo do Grotão

De acordo com informações levantadas pela Embratur, a história do Quilombo do Grotão remonta ao início dos anos 1920, quando Manoel Bonfim e Maria Vicência, descendentes de negros escravizados em Sergipe, deixaram o Nordeste do Brasil para trabalhar na Fazenda Engenho do Mato, de Irene Lopes Sodré, que produzia farinha, banana prata e hortifrutigranjeiros em larga escala.

Na década de 1950, o negócio faliu, e Manoel e Maria ganharam cerca de dois alqueires e meio de terra, além de duas mil mudas de banana para recomeçar a vida, a título de indenização da família Sodré. A conquista do território é marcada por luta pela terra, sobretudo com a criação do Parque Estadual da Serra da Tiririca, em 1991.

Renatão decidiu, então, criar a famosa roda de samba com a tradicional feijoada, que há 20 anos garante a permanência da família no território. Em 2016, o território foi oficialmente certificado como quilombo pela Fundação Palmares, do Ministério da Cultura.

O que são quilombos?

Segundo a Fundação Palmares, quilombo, na língua banto, significa povoação. Era o espaço físico de resistência à escravidão. Fugidos dos cafezais e das plantações de cana-de-açúcar, os negros que se recusavam à submissão, à exploração e à violência do sistema colonial escravista aglomeravam-se nas matas e formavam núcleos habitacionais com relativo grau de organização e desenvolvimento social, econômico e político.

Eram agrupamentos criados em locais de difícil acesso, e que dispunham de armas e estratégias de defesa contra a invasão de milícias e tropas governamentais. O Censo Demográfico 2022 mostrou que a população quilombola residente no Brasil é de 1.327.802 pessoas, correspondendo a 0,65% da população. Há 1.696 municípios com população quilombola e 473.970 domicílios particulares permanentes com moradores quilombolas.

Para Renatão, manter essa memória é uma das principais preocupações. “É o nosso povo, né? Durante esse período pós-abolição e até hoje, o povo negro tem uma dificuldade muito grande de estar participando de uma sociedade. De uma sociedade justa. E a ideia do quilombo hoje é preservar toda essa história e contar toda essa história”, explica.  

Ele lembra que no Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 55,5% da população brasileira se identifica como preta ou parda.

“É para nossos jovens terem coragem. A gente está tentando dar uma injeção de ânimo na nossa molecada, na nossa juventude, para que eles realmente possam assumir a cor. A gente está encorajando essas crianças, os adolescentes, a falarem. Quando falam assim ‘Ah, você é o quê? Eu sou negro. Essa que é a grande ideia do quilombo, hoje, aqui dentro da cidade”, diz.

Iphan é a favor da conservação do sítio arqueológico Quilombo Saracura

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) se manifestou contra a destruição das estruturas que compõem o sítio arqueológico descoberto durante as obras de construção da estação 14 Bis – Saracura, que pertencerá à linha laranja do Metrô de São Paulo, no bairro do Bixiga. O desdobramento do caso foi comunicado, na noite desta segunda-feira (30), aos moradores, em reunião realizada no Museu Memória do Bixiga (Mumbi), por iniciativa do coletivo Mobiliza Saracura Vai-Vai.

A empresa contratada pela concessionária Linha Uni, a Lasca Arqueologia elaborou um parecer em que confirmava a identificação de vestígio de uma ocupação da primeira metade do século 20. A região, no início do século passado, ficou conhecida por nomes como “Pequena África” ou “Quadrilátero Negro”, pela presença de pessoas descendentes de quilombo, escravizadas. O quilombo recebeu o nome de Saracura.

Essa mesma comunidade fundou, em 1930, uma das mais famosas e tradicionais escolas de samba da capital paulista, a Vai-Vai. Em 2021, a escola foi obrigada a deixar sua sede, de valor histórico, que acabou sendo demolida no contexto da construção da estação de metrô. A concessionária já havia deixado claro que não tinha intenção de manter os elementos de memória do local.

Em entrevista à Agência Brasil, o assessor jurídico do Mobiliza Saracura Vai-Vai, Rafael Funari, relatou que, em um encontro ocorrido no final de julho, com André Isper Barnabé, secretário-executivo da Secretaria de Parcerias em Investimentos (SPI), ele assegurou que, da parte da pasta, que responde ao governo estadual, a preservação da estrutura histórica estava garantida. Assim, os moradores dependeriam somente da anuência do Iphan para dar como resolvida a questão.

“Ele jogou a responsabilidade para o Iphan, mas se comprometeu a garantir essa preservação, com algumas ressalvas de orçamento, fazer um projeto adequado, que não tenha um custo excessivo. Tem a questão do ônus contratual de concessão. A concessionária assina e depois há uma parte do governo estadual. Enfim, são essas ressalvas de gestor público, mas o compromisso [declarado por Barnabé] era de que estava disposto a fazer a preservação e a continuidade das obras”, compartilhou Funari, que sublinhou que foi composta uma comissão, encabeçada pelo Iphan e que se reúne todo mês, desde novembro de 2023. Dela também participa a Fundação Cultural Palmares.

Segundo o integrante do movimento, existem mais de 30 mil peças arqueológicas e, ainda, alicerces que deveriam ser valorizados. “O que o movimento defende, com o apoio da comunidade, é a incorporação dessas estruturas à estação. Existe modelo de estações históricas, em cidades como Portugal, Atenas e outras da Europa, que incorporaram ruínas arqueológicas ao projeto da estação”, simplifica ele.

Bloqueio a informações de interesse público e liberação de estragos

Desde julho de 2022, quando o movimento fez a primeira denúncia em torno do caso, o Ministério Público Federal tem acompanhado sua evolução. Conforme esclarece o representante do coletivo, o governo afirma que o projeto atual não inclui a incorporação desejada e, quando confrontado e questionado, diz que o projeto executivo da obra ainda não está pronto, deixando de dar acesso ao coletivo. “A gente tem, portanto, uma limitação de acesso à informação com a qual o MPF pode nos ajudar”, acrescenta Funari, pontuando que o ideal, para o movimento, é que possam ter contato, por exemplo, com o orçamento, o cronograma e termos do contrato de concessão que possam ser divulgados a qualquer pessoa, por ser de interesse público.

“A grande questão é que, se você passou o tatuzão [veículo que transita pelo subsolo] e a estação ainda não foi perfurada até o final, para você passá-lo e depois furar -, porque o tatuzão primeiro constrói o túnel, fura e já reveste as paredes de cimento -, então, se a estação não chegasse até o final, na passagem do tatuzão, para quebrar tudo, ficaria muito caro, segundo o projeto atual”, explica.

Rafael Funari observa que a comunidade local não se opõe à construção da estação de metrô. Os moradores avaliam que, além de se salvaguardar o direito à memória, também se deve respeitar o direito do cidadão à mobilidade. “É importante destacar que o movimento nunca esteve contra a construção da estação. Desde o início, a gente falou: queremos a estação, mas queremos a preservação”, afirma.

Funari resume no que consiste a importância da conservação do sítio e o que está, de fato, no centro da disputa. “Essas estruturas são muito importantes para a gente entender o processo de ocupação da área, de canalização do rio, vinculado ao de expulsão da população local. Se você pensar que era a sede do antigo quilombo, era uma população negra que habitava o local. Então, você vê um claro processo de higienização daquele território sob a roupagem de canalização do rio. Preservar essas estruturas é, de alguma forma, entender que são documentos históricos que podem ser estudados e objeto de pesquisa”, avalia.

“A empresa tem um respaldo político. O Metrô tem o aval de que pode tudo. Todo mundo quer metrô, que é de importância inquestionável. Então, recebem com muita facilidade aval para destruir o que for preciso para construir uma estação. São raras as exceções em que você consegue barrar a construção. Como exemplo, trago o Palácio Caetano de Campos, na República. Quando iam demolir, houve uma mobilização muito grande e acabou não sendo destruindo. Mas a gente está falando de símbolos da elite paulistana. Quando você fala de símbolos da população negra, pobre, já não tem tanto valor. Existe essa disputa de forças, esse racismo institucional, que faz com que as ações da concessionária tenham respaldo público maior.”

A Agência Brasil entrou em contato com a concessionária Linha Uni e a SPI e mantém o espaço aberto, caso queiram se pronunciar sobre o assunto abordado nesta matéria.

Cenário do Festival Latinidades, quilombo em Goiás busca titulação

Cidade Ocidental (GO), 20/07/2024 – Epídia Pereira Braga, moradora do Quilombo Mesquita. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A agricultora Elpídia Pereira, de 74 anos, olha para o alto da mangueira que ela plantou há cinco décadas e enxerga o passado. “Naquele tempo, era muito diferente. Chovia muito mais”. E não é só isso. Na comunidade quilombola Mesquita, em que ela nasceu e foi criada, em Cidade Ocidental (GO), há queixas dos agricultores porque proprietários de terras nas cercanias utilizariam agrotóxicos e há o pedido uníssono pela titulação da terra. 

A mangueira que Elpídia plantou há tanto tempo abrigou, neste sábado (20), uma roda de conversa organizada pelo Festival Latinidades, na edição goiana, para tratar dos desafios socioambientais atuais que ameaçam a produção dos quilombolas. 

 A comunidade Mesquita, que fica a aproximadamente 50 quilômetros de Brasília, tem uma história de 278 anos, em que hoje residem mais de 700 famílias e uma população acima de três mil pessoas. A roda de conversa do festival, que chegou à 17ª edição, trouxe o tema Guardiões do amanhã: diálogos sobre produção cultural, racismo ambiental e justiça climática.  

Saudade

Elpídia tem saudades de outros tempos, quando chovia muito mais. Inclusive, quando conseguiam plantar arroz, que precisa de um regime de chuvas mais longo. “Antes, só tínhamos que comprar sal. O resto, a terra dava”, recorda. Mesmo assim, a secura de estiagens no Centro-Oeste brasileiro não tirou o clima mais ameno porque é um local de mata preservado. 

Quem mora na comunidade também tenta se proteger da entrada de alimentos como os refrigerantes. “A gente tenta educar os mais novos a tomar sucos das frutas do cerrado”, afirma  a liderança dessa comunidade em Goiás, Sandra Pereira, de 56 anos. 

De acordo com ela, a necessidade de titulação das terras, que somam 4,2 mil hectares, seria fundamental para garantir segurança para quem vive ali, já que grandes proprietários acabam adentrando com frequência pelo território quilombola. Sandra explica que 40% do território é para a plantação e sustento das pessoas, e o restante do território é de Cerrado preservado.

Cidade Ocidental (GO), 20/07/2024 – Sandra Pereira Braga, liderança do Quilombo Mesquita, mostra produção de hortaliças em meio ao cerrado preservado. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Expectativas

Sandra Pereira recorda que o reconhecimento da terra ocorreu há 18 anos, mas nunca titulado. “Espero que ainda neste ano ocorra essa titulação. O que queremos é que o nosso modo de vida seja respeitado e protegido”. 

Ela conta que já recebeu ameaças de violência por causa de sua luta. “No próximo dia 17, a morte de Mãe Bernadete [na comunidade de Pitanga dos Palmares, na Bahia] completa um ano. Ela esteve aqui duas vezes. Ela só queria garantir os direitos e morreu”, diz. Sandra entende que lideranças de povos originários em todo o país são ameaçadas e necessitam de proteção. 

Os agricultores da comunidade trabalham com viveiros de plantas e respeito aos saberes ancestrais de agroecologia. Os produtos são reconhecidos na comunidade e fora dela. “A mandioca é um dos mais vendidos porque organizamos espaços diferentes para plantação e colheita, e também por resistir às estiagens. Aqui é nosso berço sagrado”. O irmão dela, João Paulo,  descascava a mandioca lembrando que o produto vai garantir farinha, caldo, bolo. “É muito importante para a gente”.

Berço

O berço também é para quem tem menos idade. De acordo com o estudante de artes visuais Walisson Braga, de 27 anos, pessoas mais jovens que tiveram que sair para estudar e trabalhar estão voltando a viver na comunidade. “Esse modo de vida mais natural e o clima mais fresco atraem pessoas da minha idade”. Ele é um dos apaixonados pela terra onde nasceu e cresceu. Um dos motivos tem a ver com ideais. Ele não larga o celular e também outros equipamentos para registrar os mais velhos. “Fotografar e filmar garantem também a memória. Ouvia histórias dos mais velhos e perguntava por fotos. E eles não tinham. Agora estão tendo”, afirma. 

Cidade Ocidental (GO), 20/07/2024 – Walisson Braga, liderança jovem e morador do Quilombo Mesquita. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Os mais jovens, vendo a luta dos pais e avós, resolveram estudar para colocar em prática conhecimentos na terra em que nasceram. Um dos exemplos é a agrônoma Danuza Lisboa. Ela recorda que uma grande transformação ocorreu certa vez em que ela trabalhava como doméstica. Os patrões disseram a ela que não poderia ter a mesma comida que todos faziam as refeições. Ela ficou em choque. “Eu não mereço isso. Foi fazer cursinho em Brasília. Saía de casa às 4h30 durante mais de um ano”. Conseguiu ingressar na Universidade de Brasília e formou-se em 2020.

Hoje é doutoranda em agronomia e estuda o marmelo, um dos produtos mais conhecidos que a comunidade vende na cidade. No mestrado, estudou como os agricultores poderiam cuidar da tangerina depois da colheita. “Sempre estive preocupada com a minha comunidade. O intuito sempre foi o de colaborar para ajudar meu povo”. Ela cita que a venda das hortaliças e das frutas tem garantido o sustento das famílias durante todo o ano. Mesmo com os prejuízos causados pelas mudanças climáticas. “Antes chovia de outubro a maio. Hoje, é de novembro a março”, lamenta a agrônoma. 

Para enfrentar esse impacto, a especialista diz que seria ideal haver mais investimentos em tecnologias. No entanto, isso não é possível porque, para o agricultor ter acesso à linha de crédito, seria necessário que a terra fosse titulada. 

Equidades

Segundo a assistente da direção-geral do festival Latinidades, Cinthia Santos, os diálogos com a população originária são fundamentais para o avanço das temáticas, já que a comunidade é “especialista em cuidar”. As iniciativas dos quilombolas são inspirações para o festival. Outra iniciativa, além da roda de conversa, é a produção de um documentário sobre a vida da comunidade para garantir difusão e colaborar com a visibilidade da luta dos quilombolas. “Entendemos que devemos trabalhar pela equidade de gênero e raça para haver sustentabilidade”.

A diretora de Políticas para Quilombolas e Ciganos do Ministério da Igualdade Racial (MIR), Paula Balduino, que também estava presente ao evento na comunidade, garante que a regularização dos territórios de quilombolas no Brasil é uma prioridade atual. Ela explica que a política de regularização é complexa, mas que há uma agenda nacional de titulação para aprimorar a política. 

“A gente tem dialogado muito com o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] e outros órgãos para buscar maneiras de acelerar esse processo e de articular com os estados e com o Poder Judiciário”, diz Paula. No caso da comunidade Mesquita, a definição pela regularização está no âmbito da Justiça.

A diretora explica que ainda há comunidades que não sabem em que instituição está sendo analisada a titulação. “A gente está trabalhando também em uma maneira de organizar esses dados e apresentar eles para a sociedade, especialmente para as comunidades, para que elas tenham essa compreensão de cada etapa do seu processo”. 

Cidade Ocidental (GO), 20/07/2024 – Festival Latinidades promove, no Quilombo Mesquita, diálogos sobre as estratégias e tecnologias ancestrais dos povos e comunidades tradicionais para enfrentar desafios ambientais e sociais. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

Estação de metrô de SP tem nome alterado para homenagear quilombo

A Estação 14 Bis, da futura Linha Laranja do Metrô de São Paulo, passa a ser chamada de Estação 14 Bis – Saracura, localizada na região central paulistana. A mudança foi determinada pelo governador Tarcísio de Freitas, em decreto publicado nesta segunda-feira (10) no Diário Oficial do estado.

A alteração atende a reivindicação de movimentos sociais que lutam pelo resgate da história do bairro. No final do século 19, a área onde atualmente está o bairro do Bixiga abrigava o Quilombo Saracura, nomeado a partir do córrego que cortava a região e atualmente está canalizado abaixo da Avenida 9 de Julho.

A empreiteira que iniciou o projeto de construção da Linha Laranja do Metrô, que liga a zona norte paulistana à parte central da cidade, conseguiu a dispensa da realização de estudos arqueológicos prévios no Bixiga e nas estruturas que serão construídos no bairro da Liberdade, também conhecido pela presença de populações negras.

Sítio arqueológico

A construção da estação de metrô próximo à Praça 14 Bis levou a remoção da escola de samba Vai-Vai, fundada por descendentes do quilombo, do local onde esteve por 50 anos. Logo após a derrubada da sede da agremiação, em abril de 2022, já durante as obras, foi encontrado um sítio arqueológico na área que recebeu as obras da estação.

Desde o início das escavações arqueológicas, já foram identificados e retirados milhares de itens, como fragmentos de vidro, louça cerâmica e ossos de animais. Alguns vestígios indicam ligação com religiões de matriz africana.

Fragmentos arqueológico das obras do Metrô de São Paulo. Foto: Lasca Arqueologia – Lasca Arqueologia

Em nota técnica enviada, no fim de maio, ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Linha Uni, concessionária responsável pelas obras, informa que pretende acelerar os trabalhos arqueológicos na área.

Segundo o consórcio, que tem como maior acionista o grupo espanhol Acciona, o período de pouca chuva favorece a instalação de infraestrutura para estabilização do terreno e, ao mesmo tempo, possibilita que as escavações arqueológicas ocorram em mais de um ponto do local.

Durante o período chuvoso, em algumas ocasiões, o trabalho foi prejudicado por causa da inundação do canteiro de obras. Em 2023, o Iphan chegou a recomendar a suspensão dos trabalhos por causa do problema.

Mobiliza Saracura Vai-Vai

O movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai afirma que a mudança do nome da estação “é vitória das pressões feitas desde junho de 2022 pela mobilização da comunidade, entre petições reunindo mais de 15 mil assinaturas, atos, audiências, aulas públicas, roteiros e muitas outras atividades na luta contra o projeto de apagamento histórico”.

Porém, os ativistas ainda reivindicam que seja incluído o nome da escola de samba na homenagem. “Falar de Saracura é falar de Vai-Vai, escola que nasceu ali em 1930 continuando o legado do Quilombo, e que ocupou e preservou esse território por décadas”, acrescenta a nota divulgada pelo movimento.

Incra reconhece terras de quilombo de mãe Bernadete

​Quase oito meses após o assassinato da ialorixá e ex-secretária de Promoção da Igualdade Racial de Simões Filho na Bahia, Mãe Bernadete, e mais de seis anos depois da execução de seu filho Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, conhecido como Binho do Quilombo, a Comunidade Pitanga dos Palmares teve suas terras reconhecidas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A declaração que delimita o território quilombola foi publicada no Diário Oficial da União desta segunda-feira (8).

Localizada nos municípios de Simões Filho e Candeias, na região metropolitana de Salvador, a comunidade teve reconhecida uma área que soma quase 647 hectares, onde vivem 162 pessoas, sendo150 delas declaradas quilombolas, de acordo com o Censo 2022 (IBGE).

Casa da Mãe Bernadete, liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares, assassinada na Bahia. Foto Janaína Neri.

Embora a Comunidade Pitanga dos Palmares fosse reconhecida pela Fundação Cultural Palmares, como remanescente de quilombo desde 2004, a população que se estabeleceu ainda no século 19 na fazenda Mucambo, após resistir ao regime escravagista, enfrenta conflitos territoriais desde a década de 1940 com a criação de oleodutos para transporte de petróleo na região.

Outros empreendimentos públicos e privados instalados na região também afetaram a comunidade que se manteve ao longo dos anos de atividades sustentáveis como agricultura familiar, pesca artesanal e manejo da piaçava. Polos industriais, rodovias, ferrovias e a construção da Colônia Penal de Simões Filho atingiram drasticamente o modo de vida da população, que passou a sofrer com a especulação imobiliária.

Um primeiro Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (Rtid) das terras quilombolas foi publicado pelo Incra em 2017, e em 2020, passou por uma retificação com a identificação de novos invasores.

Violência

No dia 19 de setembro de 2017, Binho do Quilombo foi assassinado a tiros dentro de seu carro, em frente à Escola Municipal de Pitanga de Palmares. Mãe Bernardete foi executada também a tiros, quase seis anos depois, na noite de 17 de agosto de 2023.

O filho de Mãe Bernardete, Jurandir Wellington Pacífico, atribui as mortes do irmão a da mãe aos interessados na posse do território tradicionalmente ocupado pelos quilombolas.

Festa do marmelo reafirma tradição em quilombo perto de Brasília

Marmelada, sopa de marmelo com queijo, licor de marmelo. Todo mês de janeiro, logo após a colheita do fruto do marmeleiro, a comunidade do Quilombo Mesquita, perto de Brasília, celebra com festa e muita devoção uma tradição que se mantém por várias gerações. A cultura do marmelo, espécie originalmente trazida pelos portugueses durante a colonização, e que encontrou clima favorável em terras brasileiras, se destacou nessa região há mais de um século. 

“Essa cultura vem de antes dos meus bisavôs, que passaram para os meus avós, depois para os meus pais, que me ensinaram. Você faz tudo do marmelo, você pode comer ele inteiro, fazer sopa, fazer doce. É muito produtivo para tudo”, afirma Joselino Pereira Dutra, agricultor, diante de sua banca onde vende a marmelada. Além de fazer o doce, ele mesmo fabrica as simpáticas caixinhas de madeira onde a guloseima é armazenada e vendida. “Vem gente de muitos lugares, de Brasília, de Goiânia, Luziânia inteira. É uma festa muito tradicional”, comemora.

Cidade Ocidental (GO) – 22ª edição da Festa do Marmelo, no Quilombo Mesquita. Foto Wilson Dias/Agência Brasil

Oficialmente em sua 22ª edição anual, a Festa do Marmelo, do Quilombo Mesquita, tornou-se parte do calendário da Cidade Ocidental, município goiano que fica no entorno do Distrito Federal, a cerca de 50 quilômetros do centro da capital federal. O festejo surgiu a partir de uma demanda da própria comunidade, que é devota de Nossa Senhora da Abadia, de construir uma igreja maior, já que a capela dedicada à padroeira já não comportava mais o número de habitantes. O objetivo foi alcançado há alguns anos, mas a festa segue firme no calendário da região.

“Como a a gente não tinha verba para construir a igreja, resolvemos fazer os festejos para arrecadar recursos. E também para preservar o fruto, que é o marmelo. O objetivo é que cada família tivesse um pé de marmelo em sua casa e que não fosse apagada essa história, e fosse passando de geração para geração”, explica a professora Karina Pereira Barroso.

Celebração centenária

As cavalgadas, que duram dois dias, são o principal destaque da festa, além de shows, missão e leilão. Elas saem de Luziânia em direção ao quilombo.

“Essa festa do marmelo já é mais que centenária. Antigamente, era celebrada dentro das famílias. E, há cerca de 22 anos, passou a ser um evento anual que teve como objetivo arrecadar recursos para a construção de uma nova igreja em devoção à Nossa Senhora da Abadia”, explica Roneide Benedito, uma das lideranças da comunidade.  

O marmelo é tão entranhado na cultura local que foi incorporado à merenda escolar, por ser um fruto rico em fibras e com baixa caloria. Além disso, há um esforço de disseminar o fruto em diferentes lugares da cadeia produtiva da alimentação. “A gente fez uma proposta do comércio local de, pelo menos, ter um produto de marmelo nos cardápios. E já temos milk-shake de marmelo, temos marmelo como molho para hambúrger, como sabor de pizza. Uma forma de desenvolver a economia local”, explica Sanches Paiva, secretário municipal de Industria, Comércio, Turismo e Trabalho de Cidade Ocidental.

Cidade Ocidental (GO) – 22ª edição da Festa do Marmelo, no Quilombo Mesquita. Foto Wilson Dias/Agência Brasil

O quilombo

Segundo o testemunho oral corrente, que está registrado nos relatórios da Fundação Palmares e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o quilombo nasceu quando três escravas herdaram parte das terras do fazendeiro José Correia de Mesquita

A região foi impulsionada em meio à busca pelo ouro, atividade econômica que predominou em Goiás no século 17 e entrou em decadência no final do século 18. No entorno das propriedades surgiu a cidade de Santa Luzia, atual Luziânia, onde viviam, em meados de 1760, cerca de 13 mil negros escravizados e 3,5 mil pessoas livres que compunham a elite do município.

Ao se verem livres do regime escravocrata, as mulheres beneficiadas pela doação de Mesquita permaneceram no território onde formaram suas famílias e mantiveram as tradições do plantio e costumes da cultura negra. Elas também abrigaram, nas terras herdadas, negros escravizados que fugiam de outras propriedades da região.

Cidade Ocidental (GO) – 22ª edição da Festa do Marmelo, no Quilombo Mesquita. Foto Wilson Dias/Agência Brasil

O primeiro registro da terra ocorreu em 1746. O reconhecimento como quilombo, no entanto, chegou apenas em 2006, quando a Fundação Cultural Palmares concluiu os estudos antropológicos para delimitar a região. Depois disso, o Incra passou a trabalhar para demarcar e, finalmente, titular o território coletivo da comunidade, processo que se arrasta até os dias de hoje.

“A gente espera conseguir avançar neste governo, porque a região aqui é alvo de muita especulação imobiliária no setor rural, por causa da pressão do agronegócio. Além disso, nosso modo de vida é com a terra e a agricultura sem veneno”, observa Roneide Benedito.

Incra inclui quilombo no Plano Nacional de Reforma Agrária

A comunidade quilombola de Santa Fé, no município de Costa Marques, em Rondônia, teve 74 famílias incluídas no Plano Nacional de Reforma Agrária. A medida foi publicada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Diário Oficial da União, desta quarta-feira (10).

Reconhecida pela Fundação Cultural Palmares como comunidade com ancestralidade na população que resistiu ao sistema escravocrata existente no Brasil em fevereiro de 2007, Santa Fé só teve suas terras tituladas quase 10 anos depois, em dezembro de 2016, e os títulos só chegaram a ser entregues em agosto de 2017.

Localizada na margem direita do Rio Guaporé, na divisa do Brasil e da Bolívia, a comunidade teve início por volta de 1888, com a publicação da Lei Áurea. Após serem libertos, grupos de escravizados em uma usina de Cáceres, em Mato Grosso, migraram até a região escolhida para estabelecerem suas tradições e suas formas de subsistência.

Ao longo dos anos, as famílias que ali resistiram enfrentaram uma série de conflitos por não possuírem a posse definitiva das terras. Foram expulsos por grileiros e sofreram invasões para especulação fundiária, o que resultou na redução do território tradicionalmente ocupado.

Com a inclusão das famílias no Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária (Sipra), os beneficiários passam a ter acesso às políticas públicas voltadas à posse e uso da terra, associadas ao desenvolvimento rural sustentável e à promoção social.

Lula visita quilombo da Marambaia e destaca momento histórico do país

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitou, nesta quarta-feira (3), a comunidade quilombola da Ilha da Marambaia, em Mangaratiba, no Rio de Janeiro. Em publicação as redes sociais, ele destacou a importância do local para descendentes dos africanos escravizados que foram trazidos ao Brasil e do resgate dessa história para o país.  

“Conversei com as pessoas e pude ver as ruínas de uma senzala. Não devemos esquecer o que já aconteceu no nosso país, principalmente toda exploração e sofrimento causado às pessoas negras e indígenas. É assim que poderemos construir um Brasil melhor e mais digno para o povo.”

Lula compartilhou um vídeo da visita, no qual conta um pouco da história do quilombo e se dispõe a conversar com os moradores sobre melhorias para a comunidade. “A verdade é que isso aqui é a marca triste de um momento histórico do Brasil. Esse é um período que a gente não pode esquecer nunca, porque é do não esquecimento que a gente vai construindo a história do Brasil do jeito que ela é”, disse. 

“Nós temos que aproveitar esse momento histórico que nós vivemos no Brasil para tentar recuperar definitivamente, não apenas a história verdadeira, mas recuperar os direitos plenos das pessoas”, acrescentou. No vídeo, também aparecem a primeira-dama, Janja Lula da Silva, e o ministro da Secretaria Geral, Márcio Macedo.  

A Ilha da Marambaia foi um local de abrigo de negros traficados da África para o Brasil. Além da herança quilombola, a ilha abriga equipamentos militares desde a década de 1970, quando passou a ser controlada pelas Forças Armadas.

Por ser uma região de acesso restrito, a base naval da ilha foi escolhida por Lula para passar o recesso de Ano Novo. A previsão é de que ele retorne amanhã a Brasília. Outros presidentes também já utilizaram o local para descanso. 

Em 2015, depois de uma disputa judicial com a Marinha que se estendeu por mais de dez anos, as famílias quilombolas receberam a titulação de uma área de 53 hectares na região, na época, reconhecida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Hoje, quem certifica comunidades quilombolas é a Fundação Cultural Palmares.

Quilombo no Rio integra o Programa de Aquisição de Alimentos

São 5h da manhã quando os moradores do Quilombo Dona Bilina começam a colheita. Por volta das 8h, frutas, verduras e hortaliças são amarradas, organizadas em caixas e preparadas para serem recolhidas. Por causa do calor, os alimentos são lavados para que cheguem frescos. O destino final das bananas, folhas de taioba, salsinhas, cebolinhas, mamão, coentro, entre outros produtos, todos de qualidade e livres de agrotóxicos e venenos, são mulheres em situação de vulnerabilidade e suas famílias.  

A remessa do quilombo é a primeira feita pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do governo federal, que compra alimentos produzidos pela agricultura familiar e os destina gratuitamente para pessoas que não têm acesso à alimentação adequada e saudável e àquelas atendidas pela rede da assistência social, por meio de equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional, como as cozinhas comunitárias e os restaurantes populares, pela rede pública e filantrópica de ensino e pelas redes públicas de saúde e justiça. 

“A importância para essa população aqui do Quilombo Dona Bilina é, de fato, a geração de renda e novas perspectivas. Estamos buscando assistência técnica, porque não temos ainda, mas temos certeza que vai chegar”, disse a presidente da Associação de Remanescentes do Quilombo, Leonídia Insfran de Oliveira Carvalho. 

Agricultores do Quilombo Dona Bilina, em Campo Grande (RJ), preparam a produção para entrega ao Programa de Aquisição de Alimentos – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

“É tudo completamente sem agrotóxico. Outra parte importante desse projeto é entender que é importante a gente levar uma comida sem veneno para a mesa dessas pessoas que estão em situação de vulnerabilidade alimentar”, comemora Leonídia Carvalho. 

Ao todo, serão atendidas as famílias de 100 mulheres da zona oeste do Rio de Janeiro, onde o quilombo está localizado.

Na terça-feira (19), quando a Agência Brasil visitou o local, os moradores comemoravam não apenas a vitória de terem reunido os alimentos, apesar de todas as dificuldades logísticas e do calor extremo na cidade nos últimos dias, mas também o aniversário de Leonídia Carvalho. As mulheres puxavam canções e, entre música e um café da manhã compartilhado, os alimentos eram separados.  

“É sempre assim, é canto, é sorriso, é alegria. Quem chega aqui se sente bem, a gente passa essa alegria, essa energia boa para as pessoas. E os alimentos vão chegar assim. Estamos preparando, jogamos água nas plantas para elas não murcharem porque o sol castiga. Tem que jogar uma aguinha para elas chegarem lá vivas, bonitas igual estão saindo daqui”, disse a agricultora Sueli de Oliveira.  

Agricultores do Quilombo Dona Bilina, em Campo Grande (RJ), preparam a produção para entrega ao Programa de Aquisição de Alimentos – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Para quem recebe os alimentos, a ajuda é urgente. “As famílias estão esperando, elas estão aguardando. São pessoas que têm necessidade, que estão desempregadas, com fome. Mas, me dá felicidade estar aqui ajudando a colher, nos unindo para estarmos articulando muito mais coisas. A gente está aguardando isso há 1 ano e quem tem fome tem pressa”, diz Penha da Silva, uma das coordenadoras do Coletiva Todas Unidas. A coletiva será uma das beneficiadas com os alimentos do PAA.  

Pandemia

Agricultora Sueli de Oliveira, do Quilombo Dona Bilina, durante colheita para o Programa de Aquisição de Alimentos – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Entrar para o PAA é um passo importante para a comunidade, um passo dado depois de anos de trabalho e de articulação. Mas ainda assim, é um primeiro passo de muitos que ainda são necessários para garantir a qualidade de vida e a segurança alimentar tanto da população do quilombo quanto dos arredores.  

As articulações que viabilizaram o projeto, aprovado no PAA, e que agora sai do papel, começaram na pandemia, quando surgiu a Teia de Solidariedade da Zona Oeste. Diante da pobreza e fome que aumentaram ainda mais na pandemia, organizações quilombolas de mulheres e outros locais se organizaram para garantir ao menos cestas básicas para famílias em situação de vulnerabilidade.  

“A gente começa a perceber que quem pedia dinheiro, pedia para comprar uma salsicha, um macarrão. Ninguém dizia ‘Não tem uma verdura para me arrumar?’ Então começamos a distribuir cestas agroecológicas e fizemos isso captando recursos”, conta a pesquisadora e articuladora da Teia Silvia Baptista. 

Agricultores do Quilombo Dona Bilina, em Campo Grande (RJ), preparam produção para entrega ao Programa de Aquisição de Alimentos – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

“Que fome é essa? É uma situação de insegurança que tinha uma marca da luta de classes e uma questão racial também, na medida que maioria das famílias negras estava em insegurança alimentar. A maioria das pessoas negras e famílias chefiadas por mulheres”, disse Silvia Batista.  

Em 2022, as associações, coletivas comunitárias, casas de Axé, terreiros, Ilês, quilombos e demais organizações como a Mulheres Negras da Zona Oeste do Rio entregaram uma carta aberta ao governo federal pedindo a retomada do PAA, “reivindicando que os orçamentos públicos federal, estadual e municipal de 2023 deem urgência às compras de alimentos agroecológicos seguidos de doação às mulheres organizadas em situação de grave insegurança alimentar”.  

O programa, então, ganha força em 2023, quando recebe do governo federal um orçamento de mais de R$ 900 milhões. Em outubro, foram assinados os contratos com as organizações da agricultura familiar selecionadas na primeira fase de execução do programa, com os recursos de R$ 250 milhões. Nessa fase, foram priorizados projetos com maior participação de mulheres, indígenas e povos e comunidades tradicionais e assentados da reforma agrária. Ao todo, a aquisição nessa fase foi de mais de 45 mil toneladas de alimentos, diversificadas em 350 tipos de produtos.  

“Nós fomos o único quilombo do Rio de Janeiro a acessar o PAA, e eu me pergunto por quê? Acredito que o por quê esteja muito relacionado com a questão dessa burocracia toda. Nós tivemos alguma assistência, a Teia nos ajudou a acessar. A gente conseguiu, através da Teia também, um contador que pudesse acompanhar a emissão de muitos documentos. Mas imagina aquele quilombo que hoje a liderança não tem parcerias ou não tem instrução suficiente, como ele acessou? Ele não acessou porque é burocracia demais”, questiona Leonídia Carvalho.  

Logística  

O Quilombo Dona Bilina foi certificado como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares, em 2017. “A certificação vem mediante o reconhecimento da tradicionalidade dos saberes e fazeres dessa comunidade, da ligação que essa comunidade tem com a terra, com o conhecimento de ervas medicinais, com o conhecimento de rezas. É importante a gente destacar que esse é o conhecimento que favorece que a comunidade permaneça e continue com sua tradição nesse lugar”, explica Leonídia Carvalho.   

A comunidade é formada por agricultores, que mantêm a tradição do cultivo sem agrotóxicos, a chamada agroecologia, ou, como define Leonídia Carvalho, agricultura quilombola ou simplesmente roça, “aquilo que sempre fizemos, que muitas vezes não é reconhecida e é invisibilizada”.

O quilombo é um dos cinco que estão no Parque Estadual da Pedra Branca, unidade de conservação criada em 1974, que ocupa diversos bairros da zona oeste do Rio de Janeiro e é considerada a maior floresta urbana do país.  

Quilombo Dona Bilina, em Campo Grande (RJ) – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

“O que a gente precisa é fortalecer essa agricultura, fortalecer esses agricultores para que eles continuem trabalhando da forma adequada com relação ao plano de manejo do parque. Conhecer novas tecnologias para esses agricultores também é importante, para melhorar a descida dos produtos. Tem agricultores que levam de 4 a 5 horas descendo esses produtos [uma vez que se trata de uma região montanhosa]. É difícil para caramba. A gente precisa melhorar esses acessos, dar condições para que eles consigam continuar trabalhando na roça, que é o trabalho que eles sempre fizeram durante muitos anos. E valorizar esse trabalho”, defende Leonidia Carvalho.  

A agricultora Cinara da Silva Gomes é uma das produtoras da parte alta do Maciço. “Normalmente, a gente leva umas 3, 4 horas colhendo banana, depende também do horário que a gente chega lá em cima. São 4 horas a pé, só subido. O que a gente ganha aqui já vai ajudar para as outras plantas lá em cima. Vai comprar mais semente, ajudar a comprar o milho dos animais, porque eles comem milho, que dá força para descer [com as mercadorias]”. 

Ela está participando do PAA e contribuiu, nessa leva, com as bananas.  

Respeitar a natureza é regra diária. Como se trata de uma reserva, Cinara Gomes explica que para cortar qualquer árvore é preciso ter autorização. “Tem muita árvore lá que é centenária”. 

O sítio da família de Cinara Gomes fica no caminho da trilha feita pelos visitantes. Ela diz que sempre explica a eles a importância daquele lugar. “Eu falo para  não jogar plástico, não jogar sacola, no meio do caminho, para não matarem a natureza. Se não fosse a natureza, a gente não estava aqui. A gente veio da terra e para a terra voltará”.