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Quilombo Agbara Dudu preserva tradições negras no Rio de Janeiro

No encontro da Estrada do Portela com a Rua Sérgio de Oliveira, em Oswaldo Cruz, na zona norte da capital fluminense, surge o Grupo Afro Agbara Dudu (“força negra”, em iorubá). Fundada em 1982, a comunidade floresce em uma região marcada por manifestações culturais negras, como as escolas de samba Portela e Império Serrano, o baile charme do Viaduto de Madureira, o Jongo da Serrinha e a Feira das Yabás. Neste dia da Consciência Negra, a Agência Brasil conta a história desse quilombo urbano declarado Patrimônio Histórico, Cultural e Imaterial do Estado do Rio de Janeiro em setembro deste ano.

A relação principal do Agbara Dudu é com a Portela, já que o quilombo teve a Portelinha, antiga sede da escola de samba, como espaço inicial. “Nossa ligação é profunda. Tivemos o incentivo para pensar, construir e exercitar o Agbara de uma figura histórica da Portela chamada Tio Nozinho, que tinha um bar na Estrada do Portela”, informa o presidente do Grupo Afro Agbara Dudu, Elias José Alfredo.

Ele relembra que o bar era ponto de encontro dos compositores e integrantes da escola de samba. Lá, também foram realizadas as primeiras reuniões para pensar e organizar a comunidade. “Tio Nozinho viabilizou nosso acesso à Portelinha. O Agbara nasce na quadra da Portelinha. Muitos na Portela fizeram parte do Agbara desde o início”.

Rio de Janeiro (RJ) 18/11/2024 – O presidente do Quilombo Urbano Agbara Dudu, Elias José Alfredo, na sede em Oswaldo Cruz. Declarado Patrimônio Histórico, Cultural e Imaterial do Estado do Rio de Janeiros. Foto:  Fernando Frazão/Agência Brasil

Hoje, o espaço se apresenta como um quilombo urbano, formação social e cultural construída nas periferias da cidade, muito inspiradas nos quilombos rurais, e marcada pela resistência e pela preservação da cultura negra. “Nós nos orgulhamos de ser parte dessa história, de ser tombado como Patrimônio Histórico, Cultural e Imaterial do Estado do Rio de Janeiro”, afirma Elias.

Agbara Dudu

Respeitando suas raízes culturais, uma das principais atividades da comunidade é o resgate da memória e da cultura afro-brasileira a partir da música, do canto e da dança. O quilombo, que também conta com o Bloco Afro Agbara Dudu — considerado um dos primeiros blocos afro do Rio de Janeiro —, realiza anualmente o Fest-Afro, um festival musical que define o representante do quilombo no desfile de Carnaval de cada ano. “As temáticas que pré-estabelecemos nesse processo são geralmente ligadas à história afro-brasileira e africana. Uma quantidade enorme de músicas, que vão ser traduzidas na expressão do canto e da dança, é produzida”, comenta Elias.

“Esse é um momento nosso”, continua, “mas também tem a capoeira, essência da nossa história de luta”. Voltados para a comunidade, o Agbara realiza cursos, oficinas de dança e capoeira, debates, encontros e seminários sobre temas relacionados à população do quilombo. “Produzimos aulas de percussão, para ensinar o toque das músicas, trazemos o Samba Afro, ritmo cadenciado do Samba que se perdeu ao longo dos anos nas escolas de samba. O Agbara surge resgatando e preservando essa identidade cultural e musical”.

Apesar da intensa vida cultural, segundo Elias, um dos principais obstáculos enfrentado pelo Agbara Dudu é, justamente, dar continuidade à história local. À Agência Brasil, ele explica que foi com a vinda do sambista Paulo Benjamin de Oliveira, conhecido como Paulo da Portela — em referência à via que corta os bairros de Madureira e Oswaldo Cruz —, para o subúrbio que a comunidade começou a se organizar naquele espaço, inclusive na perspectiva da educação.

“Muitas pessoas eram analfabetas. O fim da escravidão era recente, então Paulo começa a organizar social, cultural e politicamente essa comunidade no espaço antes conhecido como Quilombo da Barra Preta”, relata Elias, que busca resgatar essa história. “Esses são os pilares do Agbara, resgatar, preservar e elevar a cultura afro-brasileira e africana. Nosso desafio é esse, mas também tem a titularização do espaço geográfico do quilombo, que é uma luta nossa”, disse.

Quilombos

Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Carlos Eugênio Líbano Soares explica que os quilombos urbanos surgiram a partir da própria sociedade, com a revolução urbana do século 18. “Com a descoberta do ouro em Minas Gerais e a circulação de riqueza em cidades como Rio de Janeiro e Salvador, esses espaços começam a alcançar um nível de desenvolvimento e crescimento que cria uma nova sociedade, a sociedade urbana colonial, porque, até aquele momento, a sociedade colonial era totalmente rural”.

Com o processo e urbanização, também surgem condições para a criação de uma escravidão urbana. Ao mesmo tempo, os quilombos urbanos, inspirados nos rurais, nascem como locais onde os escravos em fuga encontravam iguais, sejam escravos livres ou libertos, e passavam a se organizar em sociedade. Segundo o professor, já na primeira metade do século 19 se tornam comuns as chamadas casas de quilombos, onde se escondiam os escravos em fuga no meio urbano.

Rio de Janeiro (RJ) 18/11/2024 – O Quilombo Urbano Agbara Dudu, em Oswaldo Cruz,. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil – Fernando Frazão/Agência Brasil

“O padrão de fuga no meio urbano é diferente do rural, assim como a escravidão urbana é diferente da rural, mas ambas dialogam, então não há uma barreira entre urbano e rural. Pelo contrário, as grandes cidades são profundamente marcadas pela vivência rural”, observa Soares.

O professor comenta que o fato de se organizarem em comunidades fez com que os quilombos urbanos sobrevivessem à própria escravidão, garantindo força de resistência e capacidade de memória coletiva e oral maior que nos quilombos rurais, por serem mais dispersos. “O quilombo no meio rural não é estático, como muita gente pensa, ele se movimenta, porque o controle repressivo é mais baseado no poder privado dos senhores e menos no poder público”, esclarece.

Dessa forma, os quilombos urbanos se tornam importantes para a manutenção das tradições africanas alteradas pela diáspora, que vão se perpetuar com o fim da escravidão a partir do século 19, tendo fim legal com a assinatura da Lei Áurea em 1888. “Falamos de samba, candomblé, umbanda, maracatu, tradições que vieram desses quilombos, dessas comunidades formadas por escravizados que operavam na clandestinidade por causa da repressão”.

Conforme o pesquisador, somente a partir da década de 1930 que a repressão racial começa a dar sinais de enfraquecimento. Mas, mesmo diante de uma resposta feroz da Colônia, do Império e, posteriormente, da República, as comunidades definidas hoje como quilombos urbanos conseguiram preservar esse legado e mantê-lo vivo. “Em alguns momentos, inclusive, a repressão da República foi mais feroz que a do Império e mesmo que a da Colônia, então esse legado sobrevive graças à perpetuação das comunidades quilombolas, muitas vezes produzindo cultura de forma oculta”, afirmou.

Atualmente, Soares considera que o principal desafio que essas comunidades enfrentam é se tornarem prioridades das políticas públicas. “Não há política que promova a integração efetiva dessas comunidades ao conjunto da cidade. Pelo contrário, o investimento, em geral, é feito nas áreas centrais, onde reside a classe média, e não nas áreas periféricas. Elas ficam abandonadas e só são lembradas no campo da criminalidade”.

Professora e secretária da Associação Cultural Quilombo do Camorim (Acuca), Thaís da Silva Oliveira, acrescenta que o desconhecimento do que são quilombos também dificulta na valorização e preservação das suas tradições.

“Hoje, todo mundo usa o nome ‘quilombo’ para ganhar dinheiro, porque tá na moda, mas ninguém sabe o que é um quilombo de verdade”, declara. “Quilombo não significa só ser preto, negro ou pardo. Quilombo é muito mais do que isso, é uma resistência”, afirmou Thaís.

Ela reforça que os quilombos são essenciais para a preservação cultural por serem espaços onde as histórias e tradições africanas se mantém vivas. Neles, também se praticam atividades transmitidas de geração em geração, garantindo que esses saberes não se percam no tempo. “O quilombo é um espaço de memória, um museu, onde se valoriza a ancestralidade e se celebra a identidade quilombola, elementos que muitas vezes não encontram espaço na sociedade moderna”, complementa.

Resistência

Em 2022, o censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), coletou pela primeira vez informações específicas sobre a população quilombola no país. A pesquisa identificou 7.666 comunidades distribuídas em 8.441 locais, formando uma população de mais de 1,3 milhão (1.330.186) de pessoas. Do total de comunidades, no entanto, apenas 494 Territórios Quilombolas foram oficialmente delimitados.

Rio de Janeiro (RJ) 18/11/2024 – O Quilombo Urbano Agbara Dudu, em Oswaldo Cruz, uma região marcada por diversas manifestações negras, como as escolas de samba Portela e Impérío Serrano, o Viaduto de Madureira, o Jongo da Serrinha e a Feira das Yabás. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Neles, residem 167.202 pessoas (12,6% da população quilombola). Para Elias, o reconhecimento do Agbara como Patrimônio Histórico, Cultural e Imaterial do Estado do Rio de Janeiro é uma forma de legitimar a contribuição do quilombo para o processo histórico e civilizatório do estado fluminense. “Para nós é muito importante, mas também é fruto de uma luta constante. O nosso papel está justamente em levar a cabo essa discussão, esse diálogo com a sociedade para que o Estado saiba da nossa condição histórica”, disse.

Ele defende que não só os quilombos urbanos, mas os quilombos rurais precisam que o Estado garanta a sua existência, processo que passa também pela educação. Do ensino básico ao superior, o presidente destaca a necessidade de se levar a cultura quilombola para as salas de aulas, despertando um olhar crítico sobre a condição dos quilombos no país e também para despertar uma consciência afro-cultural.

“Somos parte da história da sociedade, mas, nessa sociedade, fomos marginalizados, primeiro na condição de escravizados e, no pós-escravidão, na posição de marginais. A marginalização do povo negro é um fato. É fundamental traçarmos uma linha de ação que busque a superação dessa condição”, afirmou.

Como ferramentas para enfrentar essa realidade, o quilombo também promove os cursos de história da África e de línguas africanas. “A reparação é algo que o Estado nos deve e precisa ser encarado dessa forma, porque é um problema estrutural. Dos africanos e afrodescendentes foram tiradas a identidade e as possibilidades pelo estado colonial e escravocrata. O que fazemos hoje no Agbara é exercitar a nossa potencialidade intelectual, cultural e social. Temos feito isso enquanto instituição e enquanto grupo social, cultural e político”, destacou.

 

*Estagiária sob supervisão de Vinícius Lisboa

Lei que preserva produção intelectual brasileira faz 20 anos

Há 20 anos, toda obra publicada no Brasil precisa ter pelo menos uma cópia enviada para a Fundação Biblioteca Nacional (FBN), a mais antiga instituição cultural do país. Promulgada em 2004, durante a gestão do cantor e compositor Gilberto Gil como ministro da Cultura, a Lei 10.994 “regulamenta o depósito legal de publicações, na Biblioteca Nacional, objetivando assegurar o registro e a guarda da produção intelectual nacional, além de possibilitar o controle, a elaboração e a divulgação da bibliografia brasileira corrente, bem como a defesa e a preservação da língua e cultura nacionais”.

“Um país sem memória não é um país”, destaca a coordenadora-geral do Centro de Processamento e Preservação da FBN, responsável pela captação das obras enviadas por meio do Depósito Legal, Gabriela Ayres. “A Biblioteca Nacional não resguarda apenas a história do Brasil, mas a história da construção do Brasil”. 

Com o Depósito Legal, o espaço recebe, em média, 80 mil publicações por ano. Algumas áreas de conhecimento captam mais obras do que outras, assim como também há uma diferença na quantidade de livros enviados pelas regiões, sobretudo Norte e Nordeste. “Há uma carência por conta da logística e do custo do envio, mas tentamos sempre abarcar as grandes áreas e interagir com os editores e autores, promovendo educação patrimonial sobre a importância de enviar essas publicações para a Biblioteca Nacional”, explica Ayres.

Segundo os Relatórios de Gestão disponíveis no site da instituição, em 2023 a fundação recebeu 59.054 obras por meio do Depósito Legal. Nos últimos dez anos, as menores captações foram em 2020 (35.772) e 2021 (17.671), em razão da pandemia da covid-19. 

Quanto aos tipos de livros, o professor do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do livro A Biblioteca e a Nação: Entre catálogos, exposições, documentos e memória (2024), Carlos Henrique Juvêncio, esclarece que são todos aqueles editados no país, incluindo traduções de produções estrangeiras e documentos oficiais, se reunidos em livros. 

Arte/Agência Brasil

“Mesmo se o autor for estrangeiro, teve um tradutor que, no mínimo, fala nossa língua”, pontua. “Nesses casos, pode não haver uma produção intelectual no sentido de ser uma obra brasileira, mas a produção editorial é, assim como o cuidado do tradutor e a língua. O Depósito Legal mostra as transformações na nossa língua a partir da produção escrita, então as traduções também são alvo da legislação”, acrescenta. 

Entretanto, o pesquisador ressalta que a Lei 10.994 ainda é omissa em relação às publicações feitas no ambiente virtual. “Tem uma brecha que diz ‘toda obra impressa ou em outros meios’, mas ainda não está regulamentado muito bem como deve ser feito o envio de obras digitais e como vão ser disponibilizadas ao público”.

Segundo a coordenadora-geral, as publicações digitais, como os e-books (livros eletrônicos), são geralmente enviados à FBN armazenados em CD, mas essa questão continua a ser um dos principais desafios enfrentados pelo Centro de Processamento e Preservação. 

“As publicações de periódicos científicos, por exemplo, saíram totalmente do modelo impresso, de uma revista, para um modelo de website”, observa. Nesse sentido, em 2020, foi publicada a Política de Preservação Digital da Biblioteca Nacional (PPDBN), com princípios para a conservação, gerenciamento e difusão do acervo digital que integra a BNDigital, criada em 2006. 

Além de zelar pelo patrimônio cultural, literário e musical do país, o Depósito Legal também tem relação com outra norma brasileira, a Lei 9.610, que regulamenta os direitos autorais no território nacional. A Lei do Direito Autoral estabelece que quando uma obra entra em Domínio Público, ou seja, pode ser usada independentemente de autorização da família ou de herdeiros, após 70 anos da morte do autor, o Estado passa a ser responsável por zelar pela integridade dela. 

“Analisando esse trecho da lei, que diz que o Estado se torna responsável pela integridade da obra, isso já remete ao Depósito Legal”, diz Juvêncio.

Na avaliação do professor, com as duas décadas do Depósito Legal, um assunto que necessita ser debatido é o cumprimento da legislação. “Temos editoras muito sérias, que cumprem efetivamente com a norma, mas boa parte delas não”, alerta. Como exemplo, cita o envio de jornais, com os quais trabalhou até 2010 na Biblioteca Nacional. Segundo ele, a FBN recebia de todo o Brasil em torno de 124 títulos, uma produção escassa para a extensão territorial do país. 

“Existem várias razões. O tamanho do nosso país e a dificuldade de envio explicam em parte, mas a lei de fato não é cumprida. Se ela fosse, a Biblioteca Nacional, que já sofre com falta de espaço, não teria lugar para mais nada”, afirma.

Lei imperial

Juvêncio explica que a Lei do Depósito Legal tem origem em uma outra legislação, do início do século 19. Em 1824, uma ordem do então imperador Pedro I exigia que todos os impressores da Corte, na cidade do Rio de Janeiro, deveriam submeter à Biblioteca Imperial e Pública da Corte, hoje a Biblioteca Nacional, um exemplar de todas as obras produzidas. A legislação só seria revista 83 anos depois, quando o Decreto 1.825, de 20 de dezembro de 1907 determinou que “os administradores de officinas de typographia, lithographia, photographia ou gravura, situadas no Districto Federal e nos Estados, são obrigados a remeter à Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro um exemplar de cada obra que executarem”. 

Passados quase 100 anos, o decreto de 1907 foi substituído pela Lei do Depósito Legal e pela Lei 12.192/2010, que “regulamenta o depósito legal de obras musicais na Biblioteca Nacional, com o intuito de assegurar o registro, a guarda e a divulgação da produção musical brasileira, bem como a preservação da memória fonográfica nacional”. 

“A ideia é que a Biblioteca Nacional tenha todas as obras editadas e divulgadas no país desde a instituição do Depósito Legal no século 19 para que ela seja uma fonte de memória e complete o que se chama de Coleção Memória Nacional, formada por um conjunto de instituições, como o Arquivo Nacional e o Museu Nacional”, define o professor.

* Estagiária sob supervisão de Vinícius Lisboa

Quem preserva biomas defende direitos humanos, diz relatora da ONU

O que marca o Brasil é uma “impunidade endêmica”. E, apesar de serem “criminalizados” e “destruídos por autoridades”, defensores de direitos humanos são quem preserva biomas no país e também quem cobra a atuação da Justiça em casos de violência do Estado e oferece uma alternativa de “dignidade, solidariedade e respeito a todos”.

Essas foram algumas das colocações feitas hoje (19), por Mary Lawlor, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a situação das pessoas defensoras de direitos humanos, apresentadas em coletiva de imprensa. A porta-voz da ONU chegou ao Brasil em 8 de abril de 2024 e se encontrou com autoridades do governo brasileiro, da Esplanada dos Ministérios, e nomes do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública da União e do Conselho Nacional de Justiça. O ponto central de sua agenda, porém, como é de praxe em visitas oficiais de representantes da entidade, são as reuniões com líderes que articulam reações às violações de direitos socioambientais e, como consequência disso, ficam em evidência e sofrem perseguições.

Mary Lawlor também esteve na Bahia, no Pará, em São Paulo e no Mato Grosso, estados que identificou como sendo “particularmente graves”, em relação aos perigos que se impõem diante daqueles que lutam em defesa dos direitos humanos e de biomas. A especialista da ONU disse que, por todo o país, há pessoas que protegem a vida, a terra e a natureza sob cerco ou mesmo sendo mortas e que acabam tendo que enfrentar um sistema que reforça injustiças.

O cenário, acrescentou ela, é de desigualdades e abandono por parte das instituições que deveriam protegê-las. Ao ler seus apontamentos, Mary Lawlor explicou que muitas lideranças têm medo de retaliação após denunciarem os casos de violações que chegam ao seu conhecimento e que muitas delas, além de serem criminalizadas pelo papel que exercem, lidam, com frequência, “com ameaças de morte na porta de casa”.

Povos originários

“Líderes indígenas repetidamente disseram que tiveram que deixar seus territórios, com medo de serem mortos”, ressaltou ela, em sua fala aos jornalistas, afirmando, em alusão ao Dia dos Povos Indígenas, comemorado hoje, que os povos originários “devem ser celebrados e protegidos”, e citando o caso de uma guarani kaiowá que teve que deixar tudo para trás, depois de um familiar ser executado e ela receber um aviso de que seria a próxima a ser assassinada.

Para a porta-voz da ONU, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve ser questionado quanto à discussão em torno do marco temporal, tese jurídica que restringia o direito às terras indígenas aos seus respectivos povos originários àqueles que as ocupassem em outubro de 1988, na promulgação da Constituição Federal. No entendimento de Mary Lawlor, a corte deveria ter se empenhado mais em assegurar o direito aos indígenas, acelerando a derrubada da tese.

Política nacional de proteção a defensores

Um dos ministros com quem esteve foi Silvio Almeida, da pasta de Direitos Humanos e da Cidadania, que teria explicitado a ela as ações já implementadas ou em vias de aplicação, no âmbito do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), que, em 2024, completa 20 anos, sob a batuta do ministério. No que concerne a esse aspecto, a crítica foi em relação ao orçamento e à falta de efetividade.

“Raramente as políticas que estão sendo desenvolvidas pelo governo federal foram levantadas comigo pelos defensores dos direitos humanos. A principal exceção a isso foi o trabalho realizado no âmbito do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania através do Grupo de Trabalho (GT) Sales Pimenta. O estabelecimento do Grupo de Trabalho é positivo e necessário. No entanto, ouvi repetidamente preocupações de defensores de direitos humanos sobre sua falta de progresso e a falta de investimento por parte do governo federal. O GT precisa ter um orçamento adequado para que consiga desenvolver aquilo que foi encarregado de fazer e deve contar com a participação genuína de todos os ministérios relevantes, bem como dos próprios defensores dos direitos humanos que estão em risco. Em suma, precisa ser politicamente priorizado e devidamente financiado”, resumiu Mary.

Sanções ao empresariado que viola direitos

Um dos aspectos abordados no relatório que produziu foi a cota de responsabilidade pela qual devem responder o empresariado, em seus diversos segmentos, e o governo brasileiro, no que diz respeito à manutenção da atmosfera de “violências extremas”. Nesse sentido, seu argumento é de que o governo federal precisa barrar companhias que devastam os territórios e cometem violações de direitos vários.

“As pessoas defensoras de direitos humanos não estão contra o desenvolvimento, mas não pode haver desenvolvimento sustentável sem respeito pelos direitos humanos e pelo meio ambiente. Os direitos que dizem respeito à conduta de empresas não se tornarão a norma sem uma regulamentação efetiva por parte do governo, inclusive em respeito a OIT 169 [Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais]. Como tal, faço um forte apelo ao governo federal e aos governos estaduais”, afirmou.

A Agência Brasil procurou os ministérios da Justiça e Segurança Pública e dos Direitos Humanos e da Cidadania para comentar os apontamentos e recomendações feitos no relatório e aguarda retorno. A reportagem também pediu posicionamento ao STF e, caso seja enviado, esta matéria será atualizada.