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Em evento do manto sagrado, tupinambás pedem a Lula demarcações

No evento final de recepção do manto sagrado tupinambá, indígenas cobraram ações para demarcação de terras e retirada de intrusos de territórios dos povos originários. O evento foi realizado nesta quinta-feira (12) no Museu Nacional, onde o manto está abrigado, e contou com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e outros representantes dos governos federal, estadual e municipal.

A anciã Yakuy Tupinambá defendeu que o manto seja alocado oficialmente no território tupinambá, na Bahia, e não no museu. Ela também criticou a tese do marco temporal e cobrou mais medidas de demarcação de terras indígenas.

“Reiteramos nossa insatisfação com a postura colonizadora personificada pelo Estado brasileiro, através das autarquias representativas que mais uma vez dilaceram nossos direitos originários e, muito mais que isso, fere profundamente o que mais prezamos: a nossa crença e a nossa fé”, disse Yakuy Tupinambá.

“Nossas reivindicações são: retorno do manto para aldeia mãe Olivença [município no litoral baiano], construindo um museu de arte tupinambá; exigimos o respeito e a garantia dos nossos direitos; autonomia do Ministério dos Povos Indígenas, reestruturação da Funai; anistia e reparação aos povos indígenas e africanos; não ao marco temporal, demarcação já!”, complementou.

Rio de Janeiro (RJ) 12/09/2024 – Povo tupinambá de Olivença, na Bahia, participa da celebração do retorno do Manto Tupinambá ao Brasil, no Museu Nacional. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

O presidente Lula destacou que as pessoas podem reclamar na frente do presidente da República, do governo federal, o que não ocorria em governos anteriores, quando os indígenas sequer eram recebidos pelo presidente. Segundo ele, existe uma luta política difícil para avançar nos direitos dos povos originários e criticou a tese do marco temporal.

“Eu também sou contra a tese do marco temporal. Fiz questão de vetar esse atentado aos povos indígenas. Mas o Congresso Nacional, usando uma prerrogativa respaldada por lei, derrubou o meu veto”, disse Lula. “A maioria dos congressistas não tem compromisso com os povos indígenas. O compromisso deles é com grandes fazendas e grande proprietários”.

O presidente também afirmou que o governo tem colocado as questões indígenas como prioritárias e citou a criação do Ministério dos Povos Indígenas.

“Fizemos e continuamos a fazer a desintrusão de territórios ocupados por não indígenas. Homologamos novas terras e temos certeza que faremos muito mais. Sempre enfrentando desafios, que são muitos e precisam ser tratados de forma negociada, com diálogo e transparência”, afirmou.

Sobre o manto tupinambá, Lula defendeu que o Museu Nacional seja considerado como um abrigo temporário, e que sejam criadas condições para a transferência do objeto sagrado ao território indígena na Bahia.

“O manto está no Museu Nacional, mas espero que todos compreendam que o lugar dele não é aqui. Espero que todos compreendam, e eu tenho certeza que vamos ter a compreensão do nosso governador da Bahia, que disse que é tupinambá também. Ele tem a obrigação e o compromisso histórico de construir na Bahia um lugar que possa receber esse manto e preservá-lo”, disse o presidente.

Manto tupinambá

O manto tupinambá tem 1,80 metros de altura e milhares de penas vermelhas de pássaros guará. Estava guardado ao lado de outros quatro mantos no Museu Nacional da Dinamarca. Chegou a Copenhague em 1689, mas foi provavelmente produzido quase um século antes.

Artefatos tupis foram levados à Europa desde a primeira viagem portuguesa ao Brasil e o processo continuou ao longo das décadas seguintes, como evidências da “descoberta” do novo território e como itens valiosos para coleções europeias.

Outros dez mantos semelhantes, também confeccionados com penas de guará, continuam expatriados em museus europeus, segundo levantamento feito pela pesquisadora norte-americana Amy Buono, da Universidade de Chapman.

Apenas no Museu Nacional da Dinamarca, existem outros quatro além do que foi devolvido ao Brasil. No Museu de História Natural da Universidade de Florença (na Itália), existem outros dois. Há também mantos tupinambás guardados no Museu das Culturas, em Basileia (na Suíça); no Museu Real de Arte e História, em Bruxelas (na Bélgica); Museu du Quai Branly, em Paris (na França); e na Biblioteca Ambrosiana de Milão (na Itália).

A doação do manto foi anunciada em junho de 2023, depois de cerca de um ano de negociações entre as instituições do Brasil e da Dinamarca. A peça chegou ao Brasil no dia 11 de julho deste ano.

Um cronograma de celebrações foi organizado para o retorno do manto. Lideranças espirituais tupinambás e pajés fizeram atividades de acolhimento, proteção e bênçãos ao manto sagrado. Durante três dias, os indígenas ficaram em vigília nos arredores do Museu Nacional.

Manto reforçou existência e identidade tupinambá, diz cacica

Enfim, o tão esperado reencontro. Foram séculos de uma separação imposta por forças colonizadoras, que conquistaram, mataram e roubaram parte fundamental da existência tupinambá. Nos últimos três dias, representantes dos indígenas puderam celebrar e se reconectar, de forma reservada no Museu Nacional, com um dos principais símbolos dessa ancestralidade.

Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, a líder dos Tupinambá de Olivença, no litoral da Bahia, cacica Jamopoty, trouxe detalhes do reencontro com o manto sagrado.

“Primeiro, fui eu com minhas irmãs. Por ser também a primeira cacica do povo tupinambá, tive esse momento com o manto. Foi muito emocionante. Mostrou uma força, que eu imagino ter vindo por meio das memórias de outros parentes e ancestrais. Algo extraordinário, que trouxe união, força e pertencimento de um povo que era silenciado e considerado extinto. Para muitos livros, nós sequer existíamos”, disse Jamopoty.

Desde a chegada do manto ao Brasil, no início de julho desse ano, houve críticas dos indígenas à forma como o artefato foi recebido. Eles desejavam participar ativamente da recepção nos primeiros dias. Mas, segundo a cacica, essas questões ficaram no passado.

“Num primeiro momento, foi muito difícil, mas hoje tudo isso foi superado. O manto está nos reencontrando e reencontrando as autoridades que podem tomar conta dele para nós, preservar mais e cuidar com muito carinho, porque ele é um ente vivo. É um ancião, que tem uma força e veio buscar o seu povo para levar até ele. E nós abrimos as portas não só para os Tupinambá, mas para outros povos também. E nós todos saímos maravilhados daqui, pelo lugar que ele está hoje”, disse a cacica.

Mesmo agradecidos pela forma como o Museu Nacional está cuidando e protegendo o manto sagrado, os tupinambás dizem estar em diálogo com as autoridades para que tenham acesso frequente ao artefato e para que, no futuro, ele possa estar ainda mais perto do povo indígena.

“A gente esta conversando com o Ministério dos Povos Indígenas e o próprio museu para criarmos protocolos. Porque hoje estamos aqui, mas não sabemos sobre o amanhã. Queremos que as futuras gerações entendam o que o manto representa para o povo tupinambá”, disse Jamopoty.

Tupinambás reencontram manto sagrado no Rio de Janeiro

“Nós somos os filhos, netos e bisnetos, do manto tupinambá”, cantaram juntos e dançaram juntos, ao som de chocalhos, em uma imensa roda, crianças, jovens, adultos e anciões indígenas, na manhã desta segunda-feira (9), na Quinta da Boa Vista, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro.

Eram quase 200 tupinambás, e estavam felizes. Depois de fazerem uma longa jornada, de ônibus, entre seu território, no litoral central da Bahia, e a cidade do Rio de Janeiro, eles se preparam para celebrar o retorno de seu manto sagrado, feito com penas de ave guará, que estava há quatro séculos exposto em um museu da Dinamarca.

O artefato indígena retornou ao Rio de Janeiro no início de julho, onde se encontra sob tutela do Museu Nacional, em sua biblioteca central, a algumas dezenas de metros de onde os indígenas celebravam na manhã desta segunda-feira.

Tupinambás de Olivença fazem ritual de recepção do manto guardado no Museu Nacional – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Os tupinambás, no entanto, ainda não haviam tido a oportunidade de recebê-lo. Neste domingo (8), uma pequena comitiva tupinambá teve a chance de visitar o manto, nas dependências do museu.

A comitiva que teve essa chance de reencontrar o manto era formada por descendentes da anciã tupinambá Amotara, que visitou o manto em 2000, quando o artefato foi levado da Dinamarca para São Paulo para uma exposição temporária de celebração dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil.

Quando viu o manto na ocasião, a agora falecida Amotara disse ter sido reconhecida por ele e iniciou uma longa luta para repatriar a vestimenta ritual, que estava sob a guarda do Museu Nacional da Dinamarca.

O reencontro de domingo foi a primeira vez que os tupinambás de Olivença, povo que vive no litoral da Bahia, e que vieram em ônibus fretados para o Rio de Janeiro, puderam ver a vestimenta ritual, que, para eles, é considerado um ancestral, um espírito ancião para o qual seu povo deve respeito, depois de sua volta permanente ao Brasil.

Cacica Jamopoty Tupinambá durante coletiva na Quinta da Boa Vista para falar sobre o ritual de recepção do manto tupinambá – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

“Ontem [domingo] nós tivemos a felicidade desse reencontro. Ele sorriu, ele ficou feliz, porque nós estávamos ali, o vendo e ele nos vendo. Ele trouxe consigo a força ancestral de um povo que era considerado extinto. E isso não tem preço. A gente está falando de ancestralidade, de memória, de força”, afirmou a cacica Jamopoty Tupinambá.

Os demais tupinambás que vieram da Bahia ainda aguardam a oportunidade de reencontrar seu ancião sagrado, acampados na tenda de um circo na Quinta da Boa Vista, parque público onde fica a sede do Museu Nacional.

“A gente queria ficar acampado perto do manto, porque a gente precisa acender a fogueira, fazer as nossas orações. A gente sabe que no lugar onde ele está, não pode ter fumaça nem fogo”, disse Jamopoty, acrescentando que a fogueira será acesa próxima ao circo onde estão acampados.

Os procedimentos de visitação ainda serão definidos pelo Museu Nacional, que zela pela integridade do manto. Enquanto aguardam o reencontro e preparam seus rituais para celebrar a volta de “seu ancião mais antigo”, algumas das lideranças tupinambás, inclusive Jamopoty, conversaram com a imprensa nesta segunda-feira.

É unânime entre os caciques que conversaram com a imprensa que a chegada do manto é um bom presságio. A grande esperança dos tupinambás de Olivença é que seu retorno represente um passo definitivo para a principal luta do povo, a demarcação de suas terras, que foram delimitadas há 15 anos.

“Vivemos num território que tem 347 mil hectares, em três municípios, e abriga 8 mil tupinambás vivendo do extrativismo, da pesca, da agricultura. Esse território está identificado e delimitado pela Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas]. Ocupamos 80% desse território, porque fizemos nossa retomada e não resta mais nenhum impedimento para que o governo brasileiro assine a portaria declaratória do povo tupinambá”, disse o cacique Sussuarana Morubyxaba Tupinambá. “A vinda do povo tupinambá aqui é em vigília, em ritual, mas a gente também quer que os nossos governantes façam valer o que está na Constituição e demarquem o território tupinambá de Olivença. Sem esse território, não podemos viver”, defende.

Cacique Sussuarana Tupinambá durante coletiva na Quinta da Boa Vista sobre o ritual de recepção do manto tupinambá – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Segundo o Ministério dos Povos Indígenas, o Museu Nacional está preparando a peça para as cerimônias tupinambás. Uma das requisições dos indígenas é que o manto seja colocado em pé. Na visita de domingo, segundo Jamopoty, o manto estava deitado.

“Ele estava adormecido, ele estava deitado. Quando a Amotara o viu [em 2000], ele estava em pé. E a gente sempre falou que somos um povo em pé. Em pé, a gente sabe que é mais forte. Deitado, a gente perde nossas energias”, explicou a cacique. “O manto é um encantado [espírito que se comunica com os vivos], é o nosso ancião mais velho. E esse encantado nosso vem com uma mensagem de fortalecimento e de orientação”.

A vontade dos tupinambás é que a permanência do manto no Museu Nacional seja apenas temporária e que seja construído um museu em Olivença para resguardá-lo dentro de seu próprio território. Há ainda a expectativa de repatriação de outros dez mantos que permanecem sob a guarda de museus europeus.

“Vamos dar esse voto de confiança ao Museu Nacional. Nós vamos para a nossa casa [depois das celebrações] e nosso ancião vai ficar. Mas, pode até demorar muito tempo, esperamos que o governo nos ajude a fazer um local onde ele possa ser preservado [em Olivença]”, disse Jamopoty.

De acordo com o coordenador-geral de Promoções Culturais do Ministério dos Povos Indígenas, Karkaju Pataxó, estão previstas celebrações dos tupinambás desta terça-feira (10) até quinta-feira (12), quando haverá uma cerimônia com a participação de autoridades públicas.

“A gente está fazendo tratativas com o Museu Nacional para fazer a visita guiada, por conta da questão da conservação [do manto]. A gente vai ver qual o número que poderá participar de cada visita. A gente quer que todos que vieram [ao Rio de Janeiro] possam ter acesso ao manto. A gente pretende, com base na orientação da equipe técnica do museu, entender melhor como vai ser essa visitação, para que não haja transtornos”, explicou Karkaju Pataxó.

Pataxó informou que estão sendo feitas conversas sobre como será o acesso ao manto tupinambá, após o encerramento das celebrações, no dia 12. Ainda não se sabe se a peça ficará exposta e, caso não fique em exposição, quem poderá visitá-la.

Por meio de nota, o Ministério dos Povos Indígenas informou que todo o evento está sendo organizado em diálogo permanente com o povo Tupinambá para garantir o direito dos indígenas em relação ao artefato.

“Durante os três dias, o povo Tupinambá irá realizar rituais sagrados de vigília e a visita ao manto, que será guardado em uma sala da Biblioteca Central do Museu Nacional. A cerimônia é organizada pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI), em conjunto com os ministérios da Educação (MEC) e da Cultura (MinC). A iniciativa é feita em parceria com Ministério das Relações Exteriores (MRE) e com a participação de lideranças do povo Tupinambá”, diz a nota.

Por meio de sua assessoria de imprensa, o Museu Nacional informou que ainda não tem a programação definida para as visitações.

Tupinambás farão cerimônia para receber manto sagrado em setembro

O manto sagrado tupinambá, que estava na Dinamarca desde o século XVII e retornou ao Brasil no início de julho, será finalmente recebido pelo seu povo, os tupinambás de Olivença, em uma cerimônia marcada para os dias 10 a 12 de setembro. O artefato está sob a guarda do Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O retorno do manto foi marcado por uma polêmica, envolvendo os indígenas e a direção do Museu Nacional. Como eles consideram a peça histórica um ancião, que está retornando ao seu povo, os tupinambás esperavam estar presentes no momento da chegada do manto ao Brasil, em 11 de julho, mas o Conselho Indígena Tupinambá de Olivença (Cito) afirma que não foi oficialmente avisado sobre a chegada do artefato. A cerimônia, que será na capital Rio de Janeiro, estava marcada para o fim de agosto, mas foi adiada.

“Nós dizíamos que o manto não podia chegar no Brasil sem nós. Ele chegou sem nós e está até hoje sem nós no Museu Nacional. Estamos felizes por ele estar no Brasil, mas ao mesmo tempo tristes, porque ainda não fizemos nossa parte espiritual. Ele é um ser vivo, é a nossa história. Nós planejamos tudo isso [a recepção do manto pelos tupinambás] com nossos anciãos da aldeia e não aconteceu. Ele chegou sem a gente saber”, afirmou a cacique tupinambá Jamopoty, em entrevista à Agência Brasil, em julho.

O Museu Nacional, por sua vez, informou que, antes de apresentar o manto à sociedade, precisaria adotar “todos os procedimentos necessários para a perfeita conservação da peça, tão importante e sagrada para nossos povos originários”.

Além disso, o Museu afirmou que avisou sobre a chegada do manto, por email, a todos os integrantes do Grupo de Trabalho para o Acolhimento do Manto Tupinambá, do qual Jamopoty faz parte.

O Museu Nacional informou que a cerimônia de apresentação do manto aos tupinambás está sendo organizada pelo Ministério dos Povos Indígenas e que ainda não recebeu detalhes sobre o evento. A Agência Brasil entrou em contato com o ministério mas não teve resposta até o fechamento desta reportagem.

Com a confirmação da cerimônia, Jamopoty afirmou que uma comissão de tupinambás chegará ao Rio de Janeiro no dia 7 de setembro.

No início de agosto, o diretor do Museu, Alexandre Kellner, esteve em uma reunião com lideranças tupinambás, na aldeia Itapoã, onde houve momento de tensão entre o representante do museu e representantes do povo indígena. Mas Museu Nacional divulgou uma nota em que nega que haja qualquer conflito com as lideranças tupinambás.

“A direção do Museu Nacional/UFRJ reforça que a disseminação de informações que não são verdadeiras, ou são retiradas de contexto, não estão de acordo com o momento histórico que vivemos, com o retorno do Manto ao Brasil que, a partir de agora, poderá ser reverenciado por todos os brasileiros.  O retorno do manto é uma importante conquista e uma oportunidade de união e celebração

Memória

O manto é uma vestimenta de 1,80 metro de altura, confeccionada com penas vermelhas de guará sobre uma base de fibra natural e chegou ao Museu Nacional da Dinamarca (Nationalmuseet) há mais de três séculos, em 1689. Provavelmente foi produzido quase um século antes.

Além do valor estético e histórico para o Brasil, a doação da peça representa o resgate de uma memória transcendental para o povo tupinambá, já que eles consideram o manto um material vivo, capaz de conectá-los diretamente com os ancestrais e as práticas culturais do passado.

Acredita-se que o povo tupinambá não confeccione esse manto há alguns séculos, já que ele só aparece nas imagens dos cronistas do século 16.

Na entrevista à Agência Brasil, em julho, Jamopoty falou sobre retrocessos na vida dos indígenas. “Nós ainda não temos nossa terra demarcada, nosso território está todo invadido. Então, a gente vai buscando um sentido de nos aprofundar como povo. E o manto é um desses sentidos. Ele está hoje no Museu Nacional, mas ele é nosso. Ele tem um povo, um povo que o Brasil dizia estar extinto. No entanto, estamos aqui. Então ele é um pouquinho da nossa história”.

Chegada do manto sagrado Tupinambá ao Brasil será celebrada em agosto

O Ministério dos Povos Indígenas realizará entre os dias 29 e 31 de agosto uma cerimônia para celebrar a chegada do manto Tupinambá ao Brasil.

Segundo a pasta, o evento está sendo preparado em parceria com o Museu Nacional e com representantes do povo indígena Tupinambá. O planejamento prevê que o ato ocorra no próprio Museu, no Rio de Janeiro.

A peça chegou ao Brasil no dia 11 de julho deste ano, devolvido pela Dinamarca, onde permaneceu por mais de 300 anos. O processo de devolução foi articulado por instituições dos dois países, o que inclui a Embaixada do Brasil na Dinamarca, o Museu Nacional e lideranças Tupinambá da Serra do Padeiro e de Olivença, na Bahia.

De acordo com o ministério, uma visita de representantes da pasta ao território Tupinambá na Serra do Padeiro e em Olivença, entre os dias 1º a 4 de abril deste ano, foi feita para escutar lideranças da comunidade. Elas foram consultadas sobre a importância e a relação que têm com o manto, de caráter religioso, e para viabilizar o contato com o artefato.

Para o dia 5 de agosto, está previsto novo diálogo, articulado pela Secretaria de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas, com a presença do diretor do Museu Nacional, Alexandre Kellner. O objetivo é preparar os últimos detalhes da cerimônia.

Cerimônia

O cronograma prevê a primeira etapa de celebração no dia 29 de agosto, quando lideranças espirituais Tupinambá e pajés vão fazer atividades de acolhimento, proteção e bênçãos ao manto sagrado dos tupinambás.

Esta primeira cerimônia de “reza ao manto” será fechada para lideranças espirituais e pajés, que terão o dia todo para as atividades. O ato vai ocorrer na Biblioteca Central, no Horto Botânico.

No dia 31 de agosto, a cerimônia de apresentação do manto ao público vai ocorrer às 10h, no mesmo local. Estão programadas a presença da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, de representantes do povo Tupinambá, dos governos do Brasil e da Dinamarca e do Museu Nacional.

O evento está sendo organizado pelo cerimonial do governo brasileiro. Durante os três dias, os povos indígenas estarão em vigília no Museu Nacional, nos jardins da Quinta da Boa Vista.

Outros mantos

O manto tupinambá tem 1,80m de altura e milhares de penas vermelhas de pássaros guará. Estava guardado ao lado de outros quatro mantos no Museu Nacional da Dinamarca. Chegou a Copenhague em 1689, mas foi provavelmente produzido quase um século antes.

Levantamento feito pela pesquisadora norte-americana Amy Buono, da Universidade de Chapman, indica que há outros dez mantos semelhantes expatriados em museus europeus, também confeccionados com penas de guará. O Museu Nacional da Dinamarca abriga quatro artefatos do tipo, além do que foi devolvido ao Brasil.

Há outros dois mantos tupinambás no Museu de História Natural da Universidade de Florença (na Itália), outros no Museu das Culturas, em Basileia (na Suíça); no Museu Real de Arte e História, em Bruxelas (na Bélgica); Museu du Quai Branly, em Paris (na França); e na Biblioteca Ambrosiana de Milão (na Itália).

Artefatos tupis foram levados à Europa desde a primeira viagem portuguesa ao Brasil e o processo continuou ao longo das décadas seguintes, como evidências da “descoberta” do novo território e como itens valiosos para coleções europeias.

O ministério desenvolve recomendações e protocolos para que povos indígenas tenham acesso a bens e objetos de suas culturas que estão em museus nacionais ou localizados no exterior. O processo é conduzido pelo Grupo de Trabalho (GT) de Restituição de Artefatos Indígenas, criado em 2023.

Com o manto, agora vamos demarcar nossa terra, diz cacique tupinambá

Habitantes do litoral brasileiro, os indígenas do grupo tupi foram alguns dos primeiros a terem contato com os portugueses, quando estes desembarcaram na Bahia, em 1500. Foram também por isso aqueles que mais sofreram nos primeiros séculos de colonização europeia no Brasil.

Escravizados para a exploração do pau-brasil, exterminados por doenças e conflitos com os novos colonizadores e, por fim, aculturados por força do processo de evangelização promovido pela Igreja Católica, os tupinambás foram vendo suas terras sendo usurpadas e sua cultura sendo gradativamente apagada.

Já com o Brasil independente, no final do século XIX, considerava-se que os tupinambás extintos como povo e que seus descendentes não mantinham mais ligação com suas tradições ancestrais. Por isso, o Estado retirou deles os direitos indígenas diferenciados.

Jamopoty, cacique do povo tupinambá de Olivença – Juliana (Amanayara Tupinambá)/Divulgação

Os próprios tupinambás consideravam-se “caboclos” ou mesmo “índios civilizados”, de acordo com o Instituto Socio Ambiental (ISA). Mas nada disso foi suficiente para apagar sua memória ancestral e para que eles abandonassem sua identidade indígena.

Em 2001, o povo tupinambá de Olivença finalmente voltou a ser reconhecido como indígena pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). E, em 2009, depois de décadas de conflitos fundiários com fazendeiros, tiveram sua terra indígena delimitada.

Apesar disso, a luta pelo reconhecimento de seus direitos ainda não terminou. A Agência Brasil conversou com Jamopoty, a primeira cacique mulher dos tupinambás de Olivença, que falou sobre os desafios para resgatar sua cultura ancestral, a luta pela conclusão do processo de demarcação de suas terras e o retorno, ao Brasil, de um manto feito com penas de ave guará, que tem quatro séculos de idade e que estava em um Museu da Dinamarca desde o fim do século XVII.

Agência Brasil: Depois de séculos, o manto tupinambá que estava na Dinamarca voltou ao Brasil. O povo tupinambá aguardou esse momento por muitos anos e esperava estar presente na chegada dele ao Brasil. Mas não foi isso que aconteceu. O Museu Nacional recebeu o artefato e só depois vocês souberam que ele estava no Brasil. Como foi isso para vocês?

Cacique Jamopoty: Nós estávamos planejando a chegada desse manto, que para nós é um ser vivo. Estamos chamando-o de ancião, um ancião de 400 anos que foi levado do nosso povo. Amotara, Nivalda Amaral de Jesus, foi a primeira anciã [tupinambá] a reconhecer o manto, em São Paulo [em 2000, quando ele estava no país, emprestado pelo Museu Nacional da Dinamarca para uma exposição sobre os 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil] e ela dizia que o manto precisava estar entre nós. E nós dizíamos que o manto não podia chegar no Brasil sem nós. Ele chegou sem nós e está até hoje sem nós no Museu Nacional. Estamos felizes por ele estar no Brasil, mas ao mesmo tempo triste, porque ainda não fizemos nossa parte espiritual. Ele é um ser vivo, é a nossa história. Nós planejamos tudo isso [a recepção do manto pelos tupinambás] com nossos anciãos da aldeia e não aconteceu. Ele chegou sem a gente saber.

Agência Brasil: Qual a importância do retorno desse manto para o seu povo?

Cacique Jamopoty: Houve tantos retrocessos em nossas vidas, nós ainda não temos nossa terra demarcada, nosso território está todo invadido. Então, a gente vai buscando um sentido de nos aprofundar como povo. E o manto é um desses sentidos. Ele está hoje no Museu Nacional mas ele é nosso. Ele tem um povo, um povo que o Brasil dizia estar extinto. No entanto, estamos aqui. Então ele é um pouquinho da nossa história. Estamos nos organizando e vamos até o Rio de Janeiro [para encontrar o manto] e esse dia vai ser muito importante para nós.

Agência Brasil: Seu povo vem há séculos tentando sobreviver e manter suas tradições, em meio ao extermínio, à influência de outras culturas, a conflitos fundiários. O que o manto representa nessa luta pela identidade dos tupinambás e pelo seu reconhecimento como povo?

Cacique Jamopoty: Nossa terra foi delimitada, já tem até o levantamento fundiário dela, mas não foi assinada a portaria declaratória da terra. Ela precisa ser assinada. Quando a Dinamarca devolve o manto, ela está confirmando que levou um artefato de um povo que estava aqui nessa região há 400 anos. Isso afirma a história do nosso povo. Os tupinambás foram os primeiros a serem atacados [a partir da chegada dos portugueses], nós fomos quase dizimados. Com essa luta toda, nosso território ainda não foi demarcado. O manto tupinambá traz a força para os povos, não só para os tupinambás, mas para os outros povos. Acredito que essa força não veio a toa. A gente vai conseguir, através da chegada do manto, a portaria declaratória da nossa terra.

Agência Brasil: Como vocês têm tentado manter suas tradições e recuperar sua cultura ancestral?

Cacique Jamopoty: Nossa luta é árdua. Sabemos que tudo será pela educação: o fortalecimento da cultura, o fortalecimento da língua. Nós construímos os conselhos de educação e fomos para cima do Estado dizer: “nós somos indígenas, queremos nossa cultura, queremos nossa educação diferenciada”. Não existe povo forte, sem educação, sem sua cultura, sem sua forma de viver. Dizem que somos supostos índios, que não somos mais indígenas. Somos reconhecidos pelo governo brasileiro, mas ainda precisa reconhecer nossa terra. Estamos na luta pelo resgate da nossa língua, estamos na luta pelo resgate da nossa educação, buscando viver nossas tradições, respeitando uns aos outros. Estamos sempre valorizando nossa terra, sempre valorizando o meio ambiente, nossas nascentes, nosso mar. Onde tem ar puro é onde o índio habita. Então a gente vai preservar nem que isso custe a nossa vida.

Agência Brasil: O povo tupinambá está satisfeito com o manto ficar sob a guarda do Museu Nacional ou preferia que o artefato estivesse com vocês?

Cacique Jamopoty: Num primeiro momento, a Amotara queria que o manto viesse para a aldeia, mas ela mesma entendia que o manto tinha 400 anos, que não podia estar guardado em qualquer lugar. Ele está no Rio de Janeiro, na biblioteca do Museu Nacional, porque o museu ainda não terminou a reforma [depois do incêndio que o destruiu em 2018]. Nós ainda não o vimos, então podemos dizer que tratamento o manto está recebendo. Mas o Museu diz que está fazendo um lugar adequado para receber, com climatização, com luz, com tudo para o manto. A gente gostaria que o governo brasileiro demarcasse nosso território, construísse um museu e desse todas as condições dentro da nossa aldeia, nós estaríamos mais preparados para receber o manto. Mas ele foi para o Rio de Janeiro, que também é um território tupinambá. A gente entende que o manto tem 400 anos, está meio fragilizado. Se hoje o Museu Nacional tem condições de cuidar dele, a gente vai estar junto. E tem também outros mantos [tupinambás] que estão em outros países. Então a gente espera também que [os países] tem que devolver esses mantos e também outras peças que pertencem aos outros povos.

Museu Nacional confirma retorno de Manto Tupinambá ao Brasil

O Museu Nacional confirmou, nesta quinta-feira (11), que o Manto Tupinambá, artefato indígena que estava na Dinamarca desde o século 17, retornou ao Brasil. A instituição informou que apresentará a peça nas próximas semanas, em data a ser confirmada.

“Após a adoção de todos os procedimentos necessários para a perfeita conservação da peça, tão importante e sagrada para nossos povos originários, apresentaremos o manto a sociedade”, informa nota do Museu Nacional.

O manto é uma vestimenta de 1,80 metro de altura, confeccionada com penas vermelhas de guará sobre uma base de fibra natural e chegou ao Museu Nacional da Dinamarca (Nationalmuseet) em 1689. Provavelmente foi produzido quase um século antes.

Além do valor estético e histórico para o Brasil, a doação da peça representa o resgate de uma memória transcendental para o povo tupinambá, já que eles consideram o manto um material vivo, capaz de conectá-los diretamente com os ancestrais e as práticas culturais do passado.

Acredita-se que o povo tupinambá não confeccione esse manto há alguns séculos, já que ele só aparece nas imagens dos cronistas do século 16. 

O Conselho Indígena Tupinambá de Olivença (Cito), da Bahia, divulgou nota informando que havia sido acordado, em maio, que o manto seria recebido no Brasil com uma cerimônia coordenada pelos próprios tupinambás, para “o bem espiritual” do povo e do próprio artefato.

No entanto, segundo a nota, a cacique tupinambá Maria Valdelice de Jesus, a Jamopoty, foi informada por WhatsApp, na última segunda-feira (8), que o manto já estava no Museu Nacional, mas que seria inviável organizar uma recepção antes da apresentação do artefato ao público.

Manto Tupinambá. Foto Museu Nacional da Dinamarca

“O manto retornou para nós, mas ainda não foi recepcionado pelo nosso povo, de acordo com as tradições. Esse manto de mais de 300 anos é um ancião sagrado que carrega consigo a história e a cultura de nosso povo”, informa a nota.

O Museu Nacional, por sua vez, pede a compreensão de todos. “Queremos organizar a apresentação do manto com todo cuidado e respeito aos saberes dos povos indígenas, com quem estamos trabalhando em harmonia e contato direto, por meio do Ministério dos Povos Indígenas”.

A equipe da instituição informa ainda que está otimista com a confiança depositada pela Dinamarca na reconstrução do Museu Nacional, destruído por um incêndio em 2018, e que espera que essa iniciativa seja seguida por outros países.