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Kaiowá que aprendeu a ler com quase 40 anos fará intercâmbio na França

“Já sei falar meu nome: Anastaciô”, responde o senhor de 64 anos, bem-humorado, transformando seu nome em uma palavra oxítona, característica do idioma francês, ao ser questionado sobre como vai se comunicar na França, país onde fará um intercâmbio acadêmico durante seis meses.

Anastácio Peralta é um kaiowá, uma das etnias que compõem o povo guarani. Uma liderança indígena que cresceu falando a língua de seu povo e que, apesar de também saber português, só aprendeu a ler e escrever depois de iniciar um projeto de educação de jovens e adultos, aos 37 anos de idade.

O indígena kaiowá Anastácio Peralta, 64 anos, é doutorando na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) – Tânia Rêgo/Agência Brasil

Nas três últimas décadas, passou de iletrado a estudante de doutorado na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). “Nasci em uma aldeia em Caarapó [MS], em 2 de maio de 1960, e fui criado em fazenda. Trabalhei uns 20 anos em fazenda, na roça, fazendo derrubada de mato”, conta.

Na década de 1990, Anastácio se mudou para Dourados e passou a trabalhar carregando produtos pesados, até machucar a coluna. “Aí eu fui estudar. Já tinha 37 anos, mas não sabia ler nem escrever. Eu também conheci alguns colegas estudiosos, antropólogos, que me incentivaram a estudar.”

Os estudos iniciais levaram Anastácio a trabalhar, junto com outras lideranças, na criação de um curso de formação de normal, em nível médio, para professores indígenas, chamado Ara Vera. Posteriormente, o projeto evoluiu para um curso de licenciatura indígena, na UFGD, o Teko Arandu.

Área rural ocupada por indígenas nos arredores da reserva indígena de Dourados (MS) – Tânia Rêgo/Agência Brasil

Os cursos abriram os caminhos para o kaiowá, que fez o seu mestrado na universidade federal e apresentou a dissertação Tecnologias Espirituais: Roça, Reza e Sustentabilidade entre os Kaiowá e Guarani. Depois, emendou o ingresso no programa de doutorado, para aprofundar seus estudos no tema.

“Hoje a gente vive de cesta básica. E como a gente vivia no passado? Então, no doutorado, continuo pesquisando sobre a roça. Por que a gente vivia de roça no passado e hoje a gente vive de cesta básica? Eu falo [na pesquisa] de tecnologias espirituais, de ferramentas tradicionais, como o sarakwá [instrumento usado para abrir buracos na terra para o plantio de sementes], do jeito de colher, do jeito de plantar. Nós, kaiowá, temos toda uma ciência”, conta Anastácio.

Para os guarani, explica o acadêmico, cuida-se da roça como se cuida de qualquer outro ser vivo. “Para nós, a terra é mãe. E a mãe tem que ser cuidada. Agora está ficando mais difícil porque a terra também está doente, está com febre. Então minha pesquisa está em busca da cura da terra.”

Neste ano, Anastácio foi selecionado para participar do programa Guatá, um projeto do governo francês, em parceria com universidades brasileiras, que oferece uma bolsa de intercâmbio em instituições de ensino superior francês para doutorandos indígenas brasileiros.

Anastácio Peralta (à esquerda) é um dos oito doutorandos indígenas que farão intercâmbio na França – Tânia Rêgo/Agência Brasil

Ele parte em setembro deste ano para um intercâmbio de seis meses na Universidade Paris 8, em Saint Denis, na França. “Guatá é andar [na língua guarani]. E eu gosto de andar. Quero aproveitar para ter outros conhecimentos. Essa troca de experiência é muito boa. Também é bom conhecer outros lugares além do Brasil”, afirma Anastácio, que já visitou o Parlamento Europeu, como liderança indígena, em 2010.

“Essa troca de experiência talvez vá me provocar a entender mais o meu povo. Como é a ciência de fora? E como a minha ciência pode ajudar essa outra ciência? Isso é uma troca de conhecimento. No que eu posso ajudar o planeta? E o que eu posso trazer de lá para ajudar o meu povo.”

*A equipe da Agência Brasil viajou a convite Embaixada da França no Brasil.

Mais de 50% das crianças do 2º ano do fundamental não conseguem ler

Mais da metade das crianças do segundo ano do Ensino Fundamental da rede pública não aprenderam a ler e escrever no Brasil. A informação é do Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (Unicef), com base nos dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2021.

Segundo o Unicef, os resultados indicam que 56% dessas crianças não foram alfabetizadas na faixa etária esperada e elas se somam a outros milhares de meninas e meninos no Brasil que estão na escola sem saber ler e escrever.

A situação já era preocupante antes da pandemia da covid 19, quando o país registrava quase 40% de crianças não alfabetizadas no segundo ano do ensino fundamental, e se agravou ao longo da emergência mundial.

A oficial de Educação do Unicef, Júlia Ribeiro, afirma que a pandemia teve um grande impacto nesses resultados com a redução dos dias letivos, dificuldade de acesso aos materiais educacionais e a falta de um profissional orientando os alunos de forma próxima.

Segundo a especialista, a alfabetização é uma etapa fundamental da trajetória escolar de crianças e adolescentes e a perda desse momento pode repercutir não só no seu desempenho acadêmico, mas em toda a sua vida.

Júlia avalia que o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada – lançado em 2023 pelo Ministério da Educação – está alinhado às principais estratégias para enfrentar o problema.

O programa – realizado em parceria com estados e municípios – prevê medidas para assegurar que 100% das crianças brasileiras estejam alfabetizadas ao final do segundo ano do Ensino Fundamental, além da recomposição das aprendizagens das crianças do 3º, 4º e 5º ano que foram afetadas pela pandemia.

Acompanhamento

A oficial de Educação do Unicef reforça, no entanto, que é preciso acompanhamento e monitoramento constante da iniciativa para que ela seja implementada corretamente e alcance os resultados esperados.

O Ministério da Educação informou, em nota, que 100% dos estados aderiram ao Compromisso Nacional Criança Alfabetizada e quase a totalidade dos municípios do país. Ainda de acordo com o MEC, mais de R$ 620 milhões de investimentos do programa foram executados no ano passado.

Entre os projetos, estão a designação de mais de seis mil articuladores, com potencial de beneficiar mais de 15 milhões de crianças desde a educação infantil, e a instalação de Cantinho de Leitura nas escolas com turma de educação infantil.

A iniciativa também formalizou junto a cinco universidades – uma em cada região do país – parceria de oferta de formação continuada do Programa de Formação Leitura e Escrita na Educação Infantil para a etapa da pré-escola.