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Lideranças negras destacam atuação política de Leci Brandão

Carioca de Madureira, Leci foi a segunda mulher negra a ser eleita deputada estadual em São Paulo. Atualmente está em seu quarto mandato consecutivo na Assembleia Legislativa do Estado (Alesp), onde ingressou em 2010, filiada ao PCdoB.

Na casa legislativa atuou nas comissões de Defesa dos Direitos das Mulheres, de Direitos Humanos e foi vice-presidente da Comissão de Educação e Cultura. Apresentou mais de 100 projetos, 60 dos quais se tornaram leis, a maioria em temas ligados à promoção da igualdade racial, à cultura popular e à defesa das tradições de matriz africana. Hoje exerce também o cargo de Ouvidora da Alesp.

Nesse processo tem apoiado e ajudado a dar destaque a lideranças diversas, no samba, nas religiões de matriz afro, no hip hop e na participação das comunidades de periferias, mas também em organizações não governamentais que constroem a política além dos espaços legislativos, valorizando e qualificando a participação democrática.

Em homenagem aos 80 anos de Leci Brandão, celebrados nesta quinta-feira (12), a Agência Brasil ouviu três lideranças, três mulheres negras, que contaram seus relatos sobre a importância do legado político da artista. Confira:

Nilza Iraci, coordenadora executiva do Instituto Geledés

O papel de Leci na política não se trata apenas do que ela construiu na política institucional, pois ela inaugurou, em sua música, o debate em torno de diversos tabus. Ela cantou – enquanto no mundo ainda havia o Apartheid –, músicas sobre dignidade, sobre cotidiano, que marcaram gerações de mulheres negras. É um enorme desafio falar dessa figura extraordinária, filha deste implacável e não menos generoso orisá, Ogum, e o desafio real é não cair no lugar comum e de clichês da fã para a artista.

Ao pensar nas duas Lecis – a mãe [dona Lecy] e a filha, com y e com i –, nos envolvemos nesse universo abrangente das relações que nos constroem com seus valores, afetividades, e, até por que não, com as nossas singularidades e imperfeições. Temos que romper o mito das guerreiras e ressaltar o papel incrível dessas mulheres negras na nossa formação. Com amor, com respeito e sem o peso que determinadas fantasias nos impõem.

O ponto de inflexão na trajetória da Leci e de tantas de nós, mulheres negras, é que não se trata de um modelo de superação – aliás nem gosto dessa palavra quando associada a nós e à nossa gente. Nunca foi sorte, né Leci? Ogunhê! O que quero ressaltar, é que  essa mistura de coragem, ousadia e uma boa dose de brabeza de nossas ancestrais, nos trouxeram até aqui hoje, belas, orgulhosas e potentes.

Sua arte, o seu canto, como instrumento de libertação, nos salvou em momentos muito singulares. Estava presente quando gravou Ombro Amigo, desnudando o preconceito e a solidão contra a comunidade LGBTQIA+, em um momento [que o tema era] tabu. Quando cantou Talento de Verdade e nos resgatou, a todas, do jogo perverso da mulatice misógina e racista, escancarada.

Lembro do show de 40 anos no Ibirapuera em SP, épico, em que Leci, assim como o Zé do Caroço, anunciava novos tempos. Se desenhava ali, um novo desafio para Leci: o da deputada. E o seu novo palco: o político.

Aliás, política essa que já estava fazendo por todas nós na cultura e nas artes. Tornou-se nossa porta-voz, muito nos orgulhando e fazendo aquele mundo branco, cis, hétero, datado e ultrapassado, entender como a arte do samba, essa maestria da cultura popular negra, nos transforma até hoje.

Segue sendo esse legado de esperança que se realiza na defesa da arte, da juventude, de nós mulheres negras, enfim das populações, onde insistem em confundir direitos com meritocracia. A voz e as ações de Leci no parlamento têm feito a diferença para todas nós e nossas comunidades.

Em março de 2023, Leci Brandão (PCdoB) toma posse para seu quarto mandato como deputada na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – Fernando Frazão/Agência Brasil

Lúcia Xavier, coordenadora geral do Criola, organização de mulheres negras

Leci vem, em sua trajetória, construindo a participação através de uma organicidade de movimentos sociais suprapartidária. Ela é um exemplo de mulher negra que constrói, há muito tempo, mecanismos de participação política para garantir direitos, se inserindo em espaços fechados para as mulheres, abrindo caminhos.

Ela traz uma pauta consistente sobre quais são as legislações que podem sustentar políticas públicas para a população negra em São Paulo, que não é pequena e é muito representativa para a população negra no Brasil, como um todo.

No caminho contrário, traz uma linguagem que não é muito comum na área da cultura, que é essa linguagem do Legislativo, e com isso constrói a articulação da comunidade com o Legislativo. Além disso, não há nenhum debate nacional no qual ela não esteja presente, em relação às questões raciais – como cotas, como saúde da população negra e da periferia e, especialmente, em relação ao racismo religioso, tema relacionado diretamente às dinâmicas de negação da cultura negra a partir da agressão aos espaços de religião, o que caminha muito próximo e tem em Leci uma liderança importante.

Em relação a seu legado, a juventude vê na sua presença inspiração, chegando aos 80 anos como uma pessoa muito importante para o movimento e suas pautas, junto com outras mulheres, entre as quais destaco Benedita da Silva que, como ela, tem um importante histórico na política partidária e representativa.

Ambas aceleram esse processo de chegada de representantes das novas gerações ligadas às pautas indenitárias e às pautas do movimento negro, aos espaços de poder e resolução. Elas são duas mulheres que possuem trajetórias diferentes, mas que trazem essa questão do enfrentamento às barreiras como algo que não é intransponível, e um legado ancestral do qual são defensoras e estão dispostas a passar adiante.

Isso é muito significativo e se constitui como um legado que ajuda a consolidar trajetórias como a de Marielle Franco e outras mulheres que estão chegando recentemente no campo da política.

Entre suas pautas, na saúde, tem uma estreita relação com as mulheres negras, assim como percepção singular das ferramentas que precisam para ampliar seus direitos e melhorar suas vidas. Sua representatividade faz com que tenha pautas muito assertivas em relação às necessidades dessas populações, com mulheres e suas comunidades. Fala também para diferentes grupos populacionais, como as mulheres negras encarceradas, trabalhadoras e mães.

Jurema Werneck, ativista e diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil

Para falarmos sobre a importância política de Leci temos de dar conta de diferentes camadas da importância dela nesse campo.

Leci está, desde a década de 1960, em público. O surgimento dela na esfera pública se dá em um programa de televisão [A Grande Chance, de Flávio Cavalcante, na TV Tupi]. Aquela figura, a presença dela na televisão como uma vencedora, uma menina negra, franzina, aquilo já tem uma presença política, na minha infância (eu então uma menina negra) muito importante.

A representação e validação de ver ela lá, tão franzina e vencedora, o que isso coloca é muito potente, desse sujeito que a sociedade recusa, mas que se destaca. Isso já tem uma importância política gigantesca.

Ela é vencedora também na construção do processo de uma carreira artística. Lança o foco da comunidade negra, não apenas retratando o cotidiano dessa comunidade, de todos os seus personagens, mas fala de aspectos mais amplos, como dos direitos das trabalhadoras e trabalhadores, dos diferentes trabalhadores, de sem-terra, de professores, e também de mulheres e de comunidades.

É mais do que uma validação, a presença cultural ela prescreve, ela diz que essa postura é um caminho mais do que válido, necessário.

Leci é uma das primeiras também a falar da pauta LGBT, quando essa sigla nem existia. Ela é realmente grande. Foi também a primeira mulher a ser oficialmente compositora. No cotidiano, nas escolas e rodas, a gente sabe que outras já o faziam, há tempo, mas ela teve registro, teve lá a carteirinha, em uma escola de grande repercussão, que é a Mangueira (em 1972).

Ela sempre se juntou, sempre apoiou as causas sociais. Ela sempre esteve também ao lado das organizações e movimentos. E com tudo isso também aceita concorrer ao parlamento e constrói uma história que só vem crescendo. Precisa ser celebrada, por todas essas camadas.

Nesse caminho ela não quebra arquétipos, rompe estereótipos. Não se imagina que uma mulher negra, lésbica, macumbeira é também parlamentar, compositora, artista. Ela afirma também arquétipos, ela é uma mulher de Ogum, guerreira, que lidera. Como essa mulher negra, lésbica, da periferia carioca, se esperava que fosse lá para trás, que estivesse escondida, mas não, é liderança.

Em relação a seu legado e em relação a como abre caminho, a performance musical dela, o canto e o ritmo, isso já aproxima, já fala com essas novas gerações. Elas já são herdeiras desse tempo em que essa figura faz sentido. Esse é o legado, ela é parte dessa coisa. Diante das novas gerações não há estranhamento em relação ao que ela representa. Ela existe, e com isso torna natural um coletivo de gente que surge e é inconformista.

Outra coisa interessante sobre Leci é que já faz muito tempo ela toca o tambor, o que em muitas casas religiosas é papel de homem. Mesmo nas escolas é uma presença que não tem a proporção necessária, nas baterias, de mulheres. As novas gerações tem isso de forma diferente, como um caminho já aberto, naturalizado por pessoas como ela.

Quando pensamos o papel de Leci na representação política, a própria representação é isso, é trazer para dentro a expressão de um grupo. Ela traz as comunidades negras, os baluartes, o povo de santo. Ela representa essa gente, ela traz para dentro, como presença, e é farol (para as novas gerações, na política), não apenas enunciando o problema, mas caminhando ao lado de outros protagonistas.

Dou o exemplo dos rappers. Ela se juntou a eles, se juntou a gente bem mais jovem que ela, mostrando que é desse jeito que é importante fazer: abrindo espaço para outros protagonistas, os mais afetados pelo problema.

Essa é uma fórmula fundamental. Nos espaços institucionais há sempre salvadores da pátria, enquanto ela partilha luta e trajetória.

Essas pessoas como Leci trazem temas como os que trabalhamos na Anistia [Internacional] desde muito antes de os trabalharmos, como o próprio tema da violência contra os negros nas periferias. Ela ajudou a pautar e legitimar esse tema (da violência), e ela é uma voz muito maior. A legitimidade dessas vozes ajuda a dar o peso que o Brasil precisa dar para esse tema, chegando além de onde as falas de instituições como a Anistia chegam.

Tem uma dimensão fundamental, ainda, na trajetória dela que é a da generosidade. Os políticos profissionais vão cada vez mais voltados para seus interesses particulares. O exemplo dela é fundamental na dimensão do serviço público e para o público. Ela tinha uma carreira de sucesso e foi para a carreira política para somar para uma causa de interesse público, vivendo sua carreira só nos finais de semana, e com isso é exemplo para os outros políticos profissionais.

Lideranças negras destacam atuação política de Leci Brandão

Carioca de Madureira, Leci foi a segunda mulher negra a ser eleita deputada estadual em São Paulo. Atualmente está em seu quarto mandato consecutivo na Assembleia Legislativa do Estado (Alesp), onde ingressou em 2010, filiada ao PCdoB.

Na casa legislativa atuou nas comissões de Defesa dos Direitos das Mulheres, de Direitos Humanos e foi vice-presidente da Comissão de Educação e Cultura. Apresentou mais de 100 projetos, 60 dos quais se tornaram leis, a maioria em temas ligados à promoção da igualdade racial, à cultura popular e à defesa das tradições de matriz africana. Hoje exerce também o cargo de Ouvidora da Alesp.

Nesse processo tem apoiado e ajudado a dar destaque a lideranças diversas, no samba, nas religiões de matriz afro, no hip hop e na participação das comunidades de periferias, mas também em organizações não governamentais que constroem a política além dos espaços legislativos, valorizando e qualificando a participação democrática.

Em homenagem aos 80 anos de Leci Brandão, celebrados nesta quinta-feira (12), a Agência Brasil ouviu três lideranças, três mulheres negras, que contaram seus relatos sobre a importância do legado político da artista. Confira:

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Nilza Iraci, coordenadora executiva do Instituto Geledés

O papel de Leci na política não se trata apenas do que ela construiu na política institucional, pois ela inaugurou, em sua música, o debate em torno de diversos tabus. Ela cantou – enquanto no mundo ainda havia o Apartheid –, músicas sobre dignidade, sobre cotidiano, que marcaram gerações de mulheres negras. É um enorme desafio falar dessa figura extraordinária, filha deste implacável e não menos generoso orisá, Ogum, e o desafio real é não cair no lugar comum e de clichês da fã para a artista.

Ao pensar nas duas Lecis – a mãe [dona Lecy] e a filha, com y e com i –, nos envolvemos nesse universo abrangente das relações que nos constroem com seus valores, afetividades, e, até por que não, com as nossas singularidades e imperfeições. Temos que romper o mito das guerreiras e ressaltar o papel incrível dessas mulheres negras na nossa formação. Com amor, com respeito e sem o peso que determinadas fantasias nos impõem.

O ponto de inflexão na trajetória da Leci e de tantas de nós, mulheres negras, é que não se trata de um modelo de superação – aliás nem gosto dessa palavra quando associada a nós e à nossa gente. Nunca foi sorte, né Leci? Ogunhê! O que quero ressaltar, é que  essa mistura de coragem, ousadia e uma boa dose de brabeza de nossas ancestrais, nos trouxeram até aqui hoje, belas, orgulhosas e potentes.

Sua arte, o seu canto, como instrumento de libertação, nos salvou em momentos muito singulares. Estava presente quando gravou Ombro Amigo, desnudando o preconceito e a solidão contra a comunidade LGBTQIA+, em um momento [que o tema era] tabu. Quando cantou Talento de Verdade e nos resgatou, a todas, do jogo perverso da mulatice misógina e racista, escancarada.

Lembro do show de 40 anos no Ibirapuera em SP, épico, em que Leci, assim como o Zé do Caroço, anunciava novos tempos. Se desenhava ali, um novo desafio para Leci: o da deputada. E o seu novo palco: o político.

Aliás, política essa que já estava fazendo por todas nós na cultura e nas artes. Tornou-se nossa porta-voz, muito nos orgulhando e fazendo aquele mundo branco, cis, hétero, datado e ultrapassado, entender como a arte do samba, essa maestria da cultura popular negra, nos transforma até hoje.

Segue sendo esse legado de esperança que se realiza na defesa da arte, da juventude, de nós mulheres negras, enfim das populações, onde insistem em confundir direitos com meritocracia. A voz e as ações de Leci no parlamento têm feito a diferença para todas nós e nossas comunidades.

Em março de 2023, deputada Leci Brandão (PCdoB) toma posse para a 20ª legislatura da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) – Fernando Frazão/Agência Brasil

Lúcia Xavier, coordenadora geral do Criola, organização de mulheres negras

Leci vem, em sua trajetória, construindo a participação através de uma organicidade de movimentos sociais suprapartidária. Ela é um exemplo de mulher negra que constrói, há muito tempo, mecanismos de participação política para garantir direitos, se inserindo em espaços fechados para as mulheres, abrindo caminhos.

Ela traz uma pauta consistente sobre quais são as legislações que podem sustentar políticas públicas para a população negra em São Paulo, que não é pequena e é muito representativa para a população negra no Brasil, como um todo.

No caminho contrário, traz uma linguagem que não é muito comum na área da cultura, que é essa linguagem do Legislativo, e com isso constrói a articulação da comunidade com o Legislativo. Além disso, não há nenhum debate nacional no qual ela não esteja presente, em relação às questões raciais – como cotas, como saúde da população negra e da periferia e, especialmente, em relação ao racismo religioso, tema relacionado diretamente às dinâmicas de negação da cultura negra a partir da agressão aos espaços de religião, o que caminha muito próximo e tem em Leci uma liderança importante.

Em relação a seu legado, a juventude vê na sua presença inspiração, chegando aos 80 anos como uma pessoa muito importante para o movimento e suas pautas, junto com outras mulheres, entre as quais destaco Benedita da Silva que, como ela, tem um importante histórico na política partidária e representativa.

Ambas aceleram esse processo de chegada de representantes das novas gerações ligadas às pautas indenitárias e às pautas do movimento negro, aos espaços de poder e resolução. Elas são duas mulheres que possuem trajetórias diferentes, mas que trazem essa questão do enfrentamento às barreiras como algo que não é intransponível, e um legado ancestral do qual são defensoras e estão dispostas a passar adiante.

Isso é muito significativo e se constitui como um legado que ajuda a consolidar trajetórias como a de Marielle Franco e outras mulheres que estão chegando recentemente no campo da política.

Entre suas pautas, na saúde, tem uma estreita relação com as mulheres negras, assim como percepção singular das ferramentas que precisam para ampliar seus direitos e melhorar suas vidas. Sua representatividade faz com que tenha pautas muito assertivas em relação às necessidades dessas populações, com mulheres e suas comunidades. Fala também para diferentes grupos populacionais, como as mulheres negras encarceradas, trabalhadoras e mães.

Jurema Werneck, ativista e diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil

Para falarmos sobre a importância política de Leci temos de dar conta de diferentes camadas da importância dela nesse campo.

Leci está, desde a década de 1960, em público. O surgimento dela na esfera pública se dá em um programa de televisão [A Grande Chance, de Flávio Cavalcante, na TV Tupi]. Aquela figura, a presença dela na televisão como uma vencedora, uma menina negra, franzina, aquilo já tem uma presença política, na minha infância (eu então uma menina negra) muito importante.

A representação e validação de ver ela lá, tão franzina e vencedora, o que isso coloca é muito potente, desse sujeito que a sociedade recusa, mas que se destaca. Isso já tem uma importância política gigantesca.

Ela é vencedora também na construção do processo de uma carreira artística. Lança o foco da comunidade negra, não apenas retratando o cotidiano dessa comunidade, de todos os seus personagens, mas fala de aspectos mais amplos, como dos direitos das trabalhadoras e trabalhadores, dos diferentes trabalhadores, de sem-terra, de professores, e também de mulheres e de comunidades.

É mais do que uma validação, a presença cultural ela prescreve, ela diz que essa postura é um caminho mais do que válido, necessário.

Leci é uma das primeiras também a falar da pauta LGBT, quando essa sigla nem existia. Ela é realmente grande. Foi também a primeira mulher a ser oficialmente compositora. No cotidiano, nas escolas e rodas, a gente sabe que outras já o faziam, há tempo, mas ela teve registro, teve lá a carteirinha, em uma escola de grande repercussão, que é a Mangueira (em 1972).

Ela sempre se juntou, sempre apoiou as causas sociais. Ela sempre esteve também ao lado das organizações e movimentos. E com tudo isso também aceita concorrer ao parlamento e constrói uma história que só vem crescendo. Precisa ser celebrada, por todas essas camadas.

Nesse caminho ela não quebra arquétipos, rompe estereótipos. Não se imagina que uma mulher negra, lésbica, macumbeira é também parlamentar, compositora, artista. Ela afirma também arquétipos, ela é uma mulher de Ogum, guerreira, que lidera. Como essa mulher negra, lésbica, da periferia carioca, se esperava que fosse lá para trás, que estivesse escondida, mas não, é liderança.

Em relação a seu legado e em relação a como abre caminho, a performance musical dela, o canto e o ritmo, isso já aproxima, já fala com essas novas gerações. Elas já são herdeiras desse tempo em que essa figura faz sentido. Esse é o legado, ela é parte dessa coisa. Diante das novas gerações não há estranhamento em relação ao que ela representa. Ela existe, e com isso torna natural um coletivo de gente que surge e é inconformista.

Outra coisa interessante sobre Leci é que já faz muito tempo ela toca o tambor, o que em muitas casas religiosas é papel de homem. Mesmo nas escolas é uma presença que não tem a proporção necessária, nas baterias, de mulheres. As novas gerações tem isso de forma diferente, como um caminho já aberto, naturalizado por pessoas como ela.

Quando pensamos o papel de Leci na representação política, a própria representação é isso, é trazer para dentro a expressão de um grupo. Ela traz as comunidades negras, os baluartes, o povo de santo. Ela representa essa gente, ela traz para dentro, como presença, e é farol (para as novas gerações, na política), não apenas enunciando o problema, mas caminhando ao lado de outros protagonistas.

Dou o exemplo dos rappers. Ela se juntou a eles, se juntou a gente bem mais jovem que ela, mostrando que é desse jeito que é importante fazer: abrindo espaço para outros protagonistas, os mais afetados pelo problema.

Essa é uma fórmula fundamental. Nos espaços institucionais há sempre salvadores da pátria, enquanto ela partilha luta e trajetória.

Essas pessoas como Leci trazem temas como os que trabalhamos na Anistia [Internacional] desde muito antes de os trabalharmos, como o próprio tema da violência contra os negros nas periferias. Ela ajudou a pautar e legitimar esse tema (da violência), e ela é uma voz muito maior. A legitimidade dessas vozes ajuda a dar o peso que o Brasil precisa dar para esse tema, chegando além de onde as falas de instituições como a Anistia chegam.

Tem uma dimensão fundamental, ainda, na trajetória dela que é a da generosidade. Os políticos profissionais vão cada vez mais voltados para seus interesses particulares. O exemplo dela é fundamental na dimensão do serviço público e para o público. Ela tinha uma carreira de sucesso e foi para a carreira política para somar para uma causa de interesse público, vivendo sua carreira só nos finais de semana, e com isso é exemplo para os outros políticos profissionais.

Leci Brandão: 80 anos e uma vida dedicada à defesa da cultura negra

Uma mulher negra, com convicções fortes e defensora de pautas sociais. Uma artista, compositora e ativista que teve a vida marcada por dificuldades, mas também por muita disposição em levar adiante a vontade de se expressar de várias formas. Essa é Leci Brandão, que completa 80 anos nesta quinta-feira (12).

Quem conhece a cantora, atriz e deputada estadual Leci Brandão têm uma admiração profunda pela história de vida dela e pelo legado que essa história representa. Desde cedo, já demonstrava inspirações artísticas.

Gostava de samba e se divertia quando ia para a casa da madrinha no Morro da Mangueira. Foi com essa convivência que se tornou a primeira mulher a pertencer à ala de compositores da Estação Primeira de Mangueira. Essa foi uma das muitas faces do pioneirismo que marcaram sua trajetória.

A relação com a mãe Dona Lecy, considerada melhor amiga, sempre foi firme. Muitas de suas decisões na vida tiveram por trás um conselho da mãe, que também incentivou a sua religiosidade: “Dona Lecy Assunção Brandão é a sabedoria da minha vida.”

A ida ao terreiro do Caboclo Rei das Ervas, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio, foi uma sugestão de Dona Lecy, quando a filha enfrentava um momento de depressão, depois de ficar cinco anos sem gravar. Lá, deu novo rumo à carreira e chegou a ganhar um disco de ouro pela vendagem de um disco em homenagem a Ogum, seu santo de cabeça.

Atualmente, Leci está no quarto mandato consecutivo como deputada estadual na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Em 2022, ela recebeu 90.496 votos

O musical Leci Brandão – Na Palma da Mão, que teve estreia em janeiro de 2023 e segue nos palcos, trata de todos esses temas e surpreendeu a artista, que se viu retratada em pequenos detalhes.

Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, Leci Brandão lembrou de vários momentos da sua trajetória e, muito carinhosa, agradeceu por poder contar momentos importantes que vivenciou.

Confira os principais trechos da entrevista:

Agência Brasil: Todos que participam do musical passam o sentimento de prazer em fazer o espetáculo, o que achou da sua representação no musical?

Leci Brandão: Primeiro gostaria de te agradecer pela oportunidade de dar essa entrevista. Com o que está acontecendo na minha vida nos últimos tempos, o meu coração deve ser muito forte, porque a emoção está sendo muito grande. Tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo em função desse aniversário de 80 anos. Quando paro para pensar que em 80 anos já fiz tanta coisa, me emociono muito mesmo. Quando fui assistir a peça no Sesc Copacabana [onde teve a estreia] confesso que fiquei impactada. Não esperava que eles fossem construir uma coisa tão bonita e tão legítima.

A atriz [Verônica Bonfim], que representa minha mãe Dona Lecy, eu fiquei encantada com ela. A outra atriz [Tay O’Hanna] que faz a Leci, eu me assustei até. A cor do cabelo, as roupas, eu achei que tinha essa força, essa magia. Nunca poderia imaginar que fosse pegar todos os trejeitos e a forma como eu canto. Tem horas que fico pensando, ‘gente isso está acontecendo mesmo’? As pessoas conseguiram traduzir tudo.

Agência Brasil: Sua religiosidade também é um tema bastante explorado no espetáculo.

Leci Brandão: Eu tenho uma senhora que foi mãe de santo aqui no Rio de Janeiro lá em São Gonçalo. Mãe Alice. Conheci essa senhora e me encantei por ela, muito boazinha e trabalhava com uma entidade chamada Caboclo Rei das Ervas. Eu devo tudo a esse caboclo, que conheci em 84. Estava muito desesperada porque estava sem gravar há cinco anos. Pedi demissão da gravadora que estava e fiquei cinco anos sem gravar. Quando conheci esse terreiro, em São Gonçalo, o caboclo Rei das Ervas disse para mim que eu estava triste, em depressão, ‘mas fique tranquila porque você vai retomar sua carreira’. Cinco anos sem gravar, como? [Ele disse:] ‘Você vai retomar a carreira e antes disso acontecer você vai sair do Brasil’.

Não acreditei em nada. Como pode? Esse tempo todo sem atuar, sem nada. E isso aconteceu: eu saí do Brasil e fui para Angola, em novembro de 1984 (conheci Seu Rei das Ervas no princípio de 84), para uma apresentação em Luanda. Quando desci do avião, me lembro perfeitamente, eu disse ‘meu Deus tenho que bater cabeça na terra para pedir perdão dessa fala do caboclo’. Quando eu voltei recebi realmente um convite da gravadora Copacabana e na última faixa do LP eu coloquei a saudação ao Seu Rei das Ervas.

Fui a São Gonçalo de novo para apresentar a ele o que eu tinha feito, por gratidão. Ele falou: ‘a partir de agora, sempre que você fizer um disco coloque a última faixa em homenagem a um orixá.’ E assim eu fiz. Coincidentemente Ogum, que é o orixá que na verdade comanda a minha cabeça, gravei em 88 e recebo o meu primeiro disco de ouro. Então foram muitas afirmações que foram feitas e cumpridas na minha vida.

Tenho muito respeito e muita gratidão pela religião de matriz africana, porque as coisas foram acontecendo, retomei minha carreira. Tudo que eu faço e agradeço, nunca esqueço daquele dia que fui lá em São Gonçalo pedir força, uma fé, inspiração, sei lá.

Você sabe que a gente está no parlamento na Assembleia Legislativa de São Paulo. Quando houve o convite eu voltei lá para saber o que era isso. Já estava com a carreira reconstruída, tudo direitinho, porque então estavam me chamando para entrar para a política? ‘Isso era uma coisa que está prevista para você fazer. Aceite o convite’. Aceitei e fui eleita em 2010, pelo PC do B, que não tinha nem assento na Assembleia Legislativa.

Agência Brasil: Na última eleição você conseguiu mais votos que nas três anteriores. É uma confirmação do seu trabalho no parlamento?

Leci Brandão: Você falou a palavra correta: confirmação. Está sendo tudo confirmado. Fico muito espantada porque é uma surpresa para mim. Sempre fiz as minhas coisas, mas nunca pela intenção de receber um resultado satisfatório, positivo. Minha vida está tendo uma pequena revolução em tudo e aí vem essa questão também da peça. Quando o [diretor] Pilar ligou para mim e falou ‘estou escrevendo [um projeto], vou entrar em um edital’. Depois ele me contou ‘vencemos o edital e vamos fazer a peça’. Eu falei ‘meu Deus mais uma surpresa para mim’.

São muitas coisas que tenho recebido e chego à conclusão de que estou cumprindo uma missão. Nada é porque eu pensei que queria. Não, é uma missão que Deus me deu e está sendo cumprida aqui na Terra do jeito que eu posso cumprir. Sou uma pessoa muito simples que não tem a escolaridade, ter sido formada em uma Universidade. Sempre tive a preocupação de trabalhar para ajudar a minha mãe, que era servente de escola pública no Rio. Nunca passou pela minha cabeça que eu ia ser a segunda mulher negra a entrar na Assembleia de São Paulo.

Agência Brasil: E a primeira mulher a entrar na ala de compositores da Mangueira.

Leci Brandão: Da Mangueira, exatamente. Foi desse jeito aí. Me emociono muito. Tenho que tomar cuidado com as minhas emoções, porque a minha saúde está um pouco fragilizada. Estive muito doente no ano passado, tive internação inclusive, com problemas de diabetes, pressão alta, arritmia cardíaca… um bolo só que deixou a minha saúde um pouquinho mais abalada, mas a gente está tocando o barco do jeito que pode e dá.

Agência Brasil: Embora você tenha entrado na política oficialmente como parlamentar, a sua vida toda sempre foi política, com posições muito firmes. Ao conversar com os atores do musical, notei que há, em todos eles, um traço de muito respeito pela sua trajetória e sua luta.

Leci Brandão: O que me encantou mais é a forma como conduziram, como foi escrito. Eu parabenizei e agradeci a cada um deles, a luz, as falas, a forma como se colocaram. É um palco simples. Não tem hiper, superprodução, não é isso, mas é carregada de uma intensidade de emoção que me fascinou.

Agência Brasil: Como você avalia o fato de terem levado para a peça a sua defesa da comunidade LGBT? Que foi feita em um período muito difícil para se discutir este tema. Essa foi mais uma causa em que você foi pioneira.

Leci Brandão: Vi de uma forma muito importante. Como você disse, eu fui uma das pioneiras nesta questão da defesa da comunidade LGBT. Eles terem retratado isso, foi mais uma luta contra o preconceito. E a forma de expor essa luta foi feita com muita ternura e respeito à comunidade e à minha pessoa.

Agência Brasil: Onde o espetáculo passa, está fazendo sucesso, desde a estreia, há quase dois anos. E ainda vai entrar em outros circuitos, em vários estados. Isso tudo é um reconhecimento também do seu trabalho, da sua trajetória?

Leci Brandão: Eu fico me perguntando como é que a gente conseguiu construir tudo isso com tanta simplicidade, tanta tranquilidade, foi tudo muito natural. Primeiro que sou uma pessoa que eu não minto. Eu, Leci Brandão da Silva, não consigo mentir. Falo a verdade. Nem sempre a gente é bem interpretada, mas sou verdadeira. Sou incapaz de ‘vou sorrir porque vai ser bom sorrir’. Não! Faço o que o meu coração pede. O que minha cabeça direciona é o que eu faço. O fato da gente ser artista – eu costumo dizer: ‘eu estou deputada, eu sou artista’. Sempre fui artista. Desde quando comecei nos anos 70, quando começo a gravar, sempre procurei transmitir nessa arte de composição, embora não saiba tocar nenhum instrumento de harmonia, nada disso, mas Deus já manda pronto letra e música.

Se você me perguntar, eu digo que isso é coisa de orixá. Não pode ter outra explicação. Às vezes estou em um lugar, já fiz música dentro de ônibus, dentro de trem, varrendo sala de aula, coando um café, tomando uma chuveirada. As músicas vêm nas horas mais incríveis. Não me preparo para compor. Se eu disser segunda-feira vou fazer um samba, mentira, porque não me preparo para isso. Naturalmente que procuro sempre ter um gravador por perto para não esquecer a melodia e quando tenho parceiro em música, geralmente, sou parceira de quem toca algum instrumento.

Agência Brasil: Estamos neste momento que junta os 80 anos da sua vida e sua trajetória contada nesse musical.

Leci Brandão: Principalmente a parte que eles escolheram determinadas músicas e tem tudo a ver com a realidade daquele momento em que eu estava vivendo a situação do país e conseguia traduzir o meu posicionamento político, sem saber. Disseram pra mim: ‘você sempre foi comunista’. Como assim? Nunca fui comunista, mas foram me provando. Nunca fui de política, nem minha família. Quando me perguntam ‘como você costurou esse caminho todo com posicionamentos de luta e questão social, da igualdade, de democracia?’ Digo: ‘olha minha mãe tinha o primário, mas a grande sabedoria que tenho na minha vida é baseada nela’.

Vou dar um exemplo. Quando fiz o samba as Coisas que Mamãe Ensinou, em que eu digo um bom dia, boa tarde, com licença, por favor… tudo isso é resultado das coisas que mamãe me ensinou. Não sei falar nada com ninguém sem dizer por favor, obrigada, sem pedir com licença. Sou bem à moda antiga. Essa coisa do respeito. Não consigo conhecer uma pessoa de idade e chamar de você. Eu não consigo. Ainda, nesse ponto, ouso dizer a você que sou jurássica. Essa modernidade toda de IA, inteligência artificial, não tenho nada a ver com isso. Não entendo essas coisas e fica difícil para mim, nessa altura do campeonato, tentar entender isso. Não dá para mim não.

Agência Brasil: E sobre as músicas selecionadas para o espetáculo? Especialmente Zé do Caroço, que levou você a pedir demissão da gravadora em um posicionamento muito forte.

Leci Brandão: Em todo lugar que trabalhei nunca permiti que ninguém me mandasse embora. Sempre pedi demissão. Quando trabalhei na Companhia Telefônica Brasileira, fui telefonista do setor de consertos e fui ao programa Flávio Cavalcanti, a Grande Chance, na TV Tupi. Como fui a melhor da noite como compositora, a Telefônica me prometeu que eu ia mudar para o setor de burocracia. [O programa] Tinha mais audiência do que o Fantástico. Se você cantasse, ou fosse premiada com alguma coisa, o Brasil inteiro sabia. O tempo passou na primeira, segunda e terceira fase e não fizeram nada por mim [na Telefônica].

Fiquei sabendo que ia haver outra oportunidade de emprego em uma fábrica em Realengo, e eu morava nessa época em Senador Camará. Fiz a prova e passei para trabalhar no setor burocrático. No dia que eu ia me apresentar com os aprovados, o comandante da fábrica, que era do Exército, disse que as vagas tinham sido extintas e quem passou ‘se quiser trabalhar vai ter que ser na oficina da fábrica’. Eu já tinha pedido demissão da Telefônica, então fui ser trabalhadora da oficina de revisão de balas e festins. Ou seja: de telefonista passei a operária de fábrica. Fiquei cheia de calos na mão, mas não tinha outra saída.

Essa história é muito louca, adquiri oito calos, quatro em cada uma das mãos, mas precisava trabalhar para ajudar minha mãe. Aí dona Paulina Gama Filho, filha do ministro Gama Filho, sabia que eu tinha cantado no [programa] Grande Chance. Uma moça que me atendeu conhecia minha mãe e viu o mesmo sobrenome, me deu um cartão para que eu procurasse a filha do ministro que ela tinha uma vaga para mim. Assim as coisas aconteceram. Fui trabalhar no departamento de pessoal da Universidade Gama Filho. Lá teve um festival e me classifiquei. Fui revelação e tive a oportunidade de entrar também para a ala de compositores da Mangueira na mesma época em 71. As pessoas começaram a me ver, fui parar no teatro Opinião e começo a cantar na roda de samba do Opinião. O Sérgio Cabral – o pai e não o governador –, me conheceu e me deu a oportunidade de ir para a gravadora Marcus Pereira, a primeira gravadora na minha história.

As coisas são assim, vão acontecendo. Uma coisa atrás da outra e minha mãe sempre no bolo. Foi minha mãe que me levou para conhecer Seu Rei das Ervas, foi responsável por eu sair da fábrica de Realengo e ir trabalhar na Universidade Gama Filho. Veja que ela esteve sempre espiritualmente nas minhas coisas. Daí essa adoração que eu tenho por ela. Sinto saudade de muitas coisas, mas a saudade da minha mãe é incomparável. Ela se foi em 2019 e estamos em 2024, mas eu penso na minha mãe todos os dias, rezo para o espírito dela, para estar sempre com ela.

Musical conta trajetória da cantora, ativista e deputada Leci Brandão

O respeito é o sentimento mais citado pelos artistas que participam do musical Leci Brandão – Na palma da mão. O espetáculo conta a trajetória da cantora, compositora, deputada estadual, ativista, e defensora de pautas sociais, que completa 80 anos nesta quinta-feira (12).

O fio condutor do espetáculo é a relação de Leci com a mãe, além da religiosidade e devoção aos orixás e entidades da umbanda e do candomblé.

A estreia foi em janeiro de 2023, no Teatro Sesc Copacabana, na zona sul do Rio. De lá para cá a peça vem colecionando sucesso por onde passa. Já fez temporadas em vários estados do país e foi até Portugal.

Para o diretor Luiz Antônio Pilar, contar a história da artista é mais que necessário. “O musical tem a força que a Leci Brandão tem”, disse à Agência Brasil.

Ele relembra que a sugestão para um espetáculo sobre Leci partiu da irmã da artista, Iara, durante um encontro com a família Brandão. Luiz Antônio Pilar preparou o projeto e entrou em uma disputa por financiamento: “inscrevi o projeto e ganhei o edital em primeiro lugar. Fui em busca de alguém que pudesse fazer a dramaturgia e convidei o Leo [Leonardo] Bruno.”

Desde a estreia, o espetáculo acumula premiações. Em março deste ano, Pilar venceu a 34ª edição do prêmio Shell como melhor diretor. Além disso, pelo seu trabalho na peça, recebeu o diploma Heloneida Studart [jornalista e ex-deputada estadual], da Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).

“É um privilégio a gente homenagear uma pessoa em vida. Quando pensei no espetáculo, não pensei em fazer uma efeméride pelos 80 anos. Embora considere o conceito efeméride importante, para a comunidade preta eu evito, porque a gente é muito restrito a tempo, espaço e tema”, disse, completando que foi uma coincidência ter estreado o espetáculo perto da artista Leci completar 80 anos.

Antes do musical as trajetórias de Luiz Antônio e Leci já tinham se encontrado. Ele foi o responsável por uma participação da artista como atriz na novela Xica da Silva, na TV Manchete, em 1996. Assistente do diretor Walter Avancini na produção, ele sugeriu o nome de Leci para fazer uma líder de quilombo. “Desde aí ela brincava que eu a introduzi na televisão como atriz”.

Trajetória

A escolha de Leonardo Bruno para fazer a dramaturgia também não foi por acaso. Ele já tinha uma extensa pesquisa sobre Leci. Dentre os livros de sua autoria, está o Canto das Rainhas, no qual Leonardo Bruno trata da carreira de cantoras como Alcione, Beth Carvalho, Clara Nunes, Dona Ivone Lara, Elza Soares e de Leci. Jornalista e comentarista de desfiles de escolas de samba, Leo recebeu a missão com respeito:

“A história da Leci é fascinante. Essa mulher que nasceu em Madureira nos anos 40, filha de uma servente de escolas. Uma criança com perspectivas de vida, naquela época, muito restritas. Começou a cursar uma faculdade de letras, mas tinha um talento musical que vinha com ela desde cedo e vai para um caminho natural naquele momento, de programas de calouros e festivais de colégios e universitários. Aí ela começa a ver que aquele talento era muito maior do que qualquer caminho que poderia tentar trilhar como carreira. Começa a ganhar programas e vencer festivais” contou à Agência Brasil.

E foi nesse caminho musical que Leci se tornou a primeira mulher a entrar na ala de compositores da escola de samba Estação Primeira de Mangueira. Frequentadora do morro, ela entra no ambiente dominado por homens. Esse momento do espetáculo é um dos que ressaltam os traços de pioneirismo de Leci Brandão.

“Foi assim que em 1972 ela se torna a primeira mulher a entrar na ala de compositores da Mangueira e isso é muito importante para a carreira dela. É uma notícia que corre a cidade e ela começa a ganhar esse reconhecimento. Em 1974, Cartola, que já a conhecia do Morro da Mangueira, a convida para participar de um programa da TV Cultura chamado Ensaio, muito importante na época, e ela fica conhecida no Brasil inteiro. Logo em seguida é chamada para gravar o primeiro disco. Ali ela engrena a carreira dela”, conta Leonardo Bruno.

Temas sociais

O jornalista conta que, também nesta época, em pleno período da ditadura, Leci passa a compor músicas com letras de cunho político.

“A obra de Leci nos cinco discos que lança entre ’75 e ’80, são discos que falam sobre negritude, sobre o lugar da mulher na sociedade, que fala do público LGBT. Na época praticamente não tinha isso nas músicas, e a Leci fez várias voltadas ao público gay, inclusive a Ombro Amigo que entrou em trilha sonora de novela na Globo [Espelho Mágico] e fez muito sucesso.”

Segundo Bruno, a trajetória da artista também é marcada pelos temas que aborda em suas composições, revelando, novamente, o caráter vanguardista e de ineditismo:

“A Leci fala da questão indígena e de todas as questões que, de dez anos para cá, a gente está falando muito na sociedade. Ela fazia música sobre isso nos anos ’70. Fala que o sambista tem que ser valorizado na sociedade. É uma obra muito forte. Ela chegou com um impacto muito forte no cenário da música. Essa caminhada a gente mostra no musical e com um repertório maravilhoso.”

A relação entre Leci e sua mãe, dona Lecy, assim como a religiosidade da artista são temas centrais abordados por Leonardo Bruno, no musical Na Palma da Mão.

“O musical parte dessa relação entre mãe e filha, que é uma relação muito importante para a Leci e acho que o público acaba se identificando um pouco com essa mãe que faz tudo para a filha conseguir um lugar no mudo. Uma mãe que tem muita dificuldade, que trabalhava como servente de escola pública, mas fez tudo para colocar a filha no caminho do estudo e de um futuro melhor. O público sente também como a Leci recebe esse carinho da mãe e tenta o tempo todo retribuir. Leci pauta a vida dela por tentar dar esse orgulho para a mãe”, acentuou.

Em relação à religiosidade, o autor da peça relaciona cinco histórias de Ogum e Iansã com etapas da vida da artista, que é filha desses orixás.

“Foram os dois caminhos que encontrei para escrever a peça. Primeiro, a relação dela com a mãe e segundo, essa devoção dela aos orixás que são muito definitivos de como ela enxerga o mundo. Dos anos 80 para cá, em todos os discos dela tem uma faixa cantando um ponto para um orixá, uma entidade. Na carreira, ela tem uma identidade muito forte com as entidades da umbanda e do candomblé. Achei que era algo que deveria nortear muito nosso espetáculo”, afirmou.

“É um espetáculo musicalmente muito forte porque o repertório da Leci é muito lindo”

Um fato marcante une a carreira de Leci à sua religiosidade. Após ter pedido demissão da gravadora que a impediu de incluir no disco a música Zé do Caroço, que fala de um líder comunitário do Morro do Pau da Bandeira, na zona norte do Rio, ela ficou cinco anos sem gravar. Muito triste e quase em depressão, conversando sobre o assunto com a mãe, foi aconselhada a procurar o Caboclo Seu Rei das Ervas, em um terreiro de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio.

A entidade disse que ela voltaria a gravar, mas antes faria uma viagem ao exterior. Ela viajou para Angola e ao retornar ao Brasil retomou a carreira.

“Quando eu voltei recebi realmente um convite da gravadora Copacabana e na última faixa do LP eu coloquei a saudação ao Seu Rei das Ervas. Fui a São Gonçalo de novo para apresentar para ele o que eu tinha feito por gratidão” disse Leci em entrevista exclusiva à Agência Brasil.

A reação da artista ao ver o trabalho no palco, deixou o autor com certeza da aprovação de Leci à forma como a história dela é contada no musical. Ela estava presente na estreia em Copacabana e já assistiu a peça em outras ocasiões.

“Quando terminou o espetáculo [na estreia] a Leci subiu no palco pegou o microfone e ficou falando 23 minutos. Ela estava tão emocionada, tão mobilizada, tão mexida, aquela coisa da emoção que a pessoa desanda a falar. Leci chorando no palco, a gente chorando na plateia, o elenco chorando. Foi uma das maiores emoções da minha vida. A prova de que gostou foi que quando a gente estreou em São Paulo ela foi e voltou várias vezes”, observou Leonardo Bruno, acrescentando que no último dia de apresentação em São Paulo, Leci levou objetos pessoais para presentear o elenco.

Elenco

Cena do musical Leci Brandão – Na Palma da Mão, no palco Sergio Kauffmann, Tay O’Hara e Verônica Bomfim – Fernando Frazão/Agência Brasil

Tay O´Hanna interpreta Leci no musical e conta que o especial na história da artista é que ela sempre foi “com a cara e a coragem” em tudo que se propôs a fazer:

“Essa garra e essa coragem. Leci é uma força de vida. A relevância dela em relação ao que é. É uma pessoa de 80 anos, mas que sempre se propôs a estar perto da juventude, de saber o que estava acontecendo em relação a tudo”, contou à reportagem.

Tay, que é uma pessoa trans não binária e prefere ter a referência de linguagem neutra ou no masculino, destacou a importância de Leci sempre levantar temas que muitas vezes se tornaram lutas contra o preconceito e o racismo. Ele também elogiou o trabalho de direção de Luiz Antônio Pilar.

“O Pilar é um diretor de anos e uma referência para a gente, tanto no teatro, como no cinema. Vê-lo ganhar esses prêmios tão merecidos pela sua genialidade e por juntar um elenco para ficar tanto tempo como estamos, é um mérito dele e nosso também que conseguimos captar o que está na cabeça dele”, concluiu Tay.

Benção

Dona Lecy, mãe da cantora, é representada desde pela atriz Verônica Bonfim, que se emociona ao falar de sua participação no musical. Toda vez que vai entrar no palco, ela faz questão de firmar o pensamento em Dona Lecy e pedir a bênção para a sua apresentação. Trata-se de mais uma representação do respeito do elenco à artista homenageada.

“Tenho muita certeza de que Dona Lacy me abençoou desde o início. Toda vez que entro em cena peço licença a ela e peço para ela me abençoar e me cuidar. Não teve um dia nesses dois anos que antes de pisar em cena eu não tenha pedido licença a ela e para ela entrar comigo.”

Verônica conta que é uma honra interpretar a mãe de Leci Brandão, mulher que forjou tudo que a filha é. “Eu me inspirei na minha mãe para fazer dona Lecy e quando Leci Brandão foi nos assistir e chorou e veio me pedir bênção e falou para mim ‘minha filha eu chorei o espetáculo inteiro porque vi minha mãe’, eu ali ganhei um Oscar! Para mim foi o maior prazer que poderia ganhar na minha vida. Eu estava com medo dela não aprovar e quando ela falou isso eu falei: ufa!”.

Processo criativo

O ator Sergio Kauffmann interpreta todos os personagens masculinos da vida de Leci, e revela que o trabalho dos atores começou como um processo criativo. A partir do texto, eles tiveram a oportunidade de criar seus personagens com diversas colaborações.

“Quando a gente chegou já tinha delineado uma dramaturgia pensada pelo Leonardo Bruno”, conta o ator, que complementa: “a gente ficava revirando as músicas improvisando as cenas e muito do que a gente foi construindo foi entrando nesse novo formato de dramaturgia”.

Entre os papéis masculinos que Kauffmann representa está o de Exu que aparece logo na abertura do musical. “Para mim foi muito especial porque eu faço o Zé do Caroço, o Exu e tem uma relação familiar com a religiosidade afro-brasileira. Venho de uma comunidade de terreiro da minha avó e ser um Exu contando aquela história faz me reconectar com as experiências que tive na casa da minha avó, que está ativa até hoje na Vila da Penha”, relatou.

A atriz Verônica Bomfim (de verde) interpreta a mãe de Leci, Dona Lecy. Sergio Kauffmann interpreta todos os personagens masculinos e Tai O’Hara interpreta Leci Brandão – Fernando Frazão/Agência Brasil

Para o ator, ao longo da temporada o elenco entendeu que a história de Leci Brandão vai muito além do que ela viveu.

“Muita gente sai do espetáculo falando ‘caramba eu vi a minha história ali também e a história da minha avó, da minha tia e de diversas outras pessoas negras’, então, para mim, foi muito especial por conta disso. A gente está saudando uma mestra, mas ao mesmo tempo a gente está colocando a nossa vivência e a nossa história. Fazer desde o início deu margem para a gente pensar nesse lugar do quanto a gente também coloca a nossa história ali.”

“Ela é uma pessoa visionária, muito humana e muito conectada com direitos humanos e em muitas camadas. Se debruçando na história dela parece que vai fazendo sentido ver que hoje ela tem uma vida como deputada engajada politicamente, mas já estava em uma luta constante”, diz Kauffmann.

Sergio Kauffmann lembra do dia em que Leci estava presente em uma apresentação do musical, no Itaú Cultural em São Paulo. “No final ela levantou para agradecer e falou que queria mandar um abraço para as pessoas que estavam encarceradas. Eu também penso muito nessas pessoas, já cantei em prisões e aquilo me marcou muito. Ela estava assistindo o espetáculo e lembrou de pessoas que tentam sobreviver em encarceramento, porque em algum momento conectou com a agenda dela. Isso me emocionou muito”, revelou.

“Ela está realmente conectada com as questões históricas, políticas, os dilemas sociais de uma maneira muito ampliada para além do samba dela, do compromisso do samba que é uma luta e também na luta política. É uma artista admirável e completa, muito coerente”, completou.

O ator lembrou da frase que reproduz uma fala de Leci Brandão e simboliza bem o comportamento dela ao longo da vida.

“Fazer da espada, escudo, baqueta e tamborim. Ela realmente faz da luta dela, da espada, escudo, baqueta e tamborim. O samba é a luta primordial dela. Tudo que está fazendo agora como parlamentar nos últimos anos nesses mandatos é uma consequência quase que natural de uma pessoa compromissada com os dilemas sociais.”

Leci Brandão está internada em SP por problema vascular

A cantora e deputada estadual por São Paulo Leci Brandão (PCdoB), 79 anos, está internada em um hospital da capital paulista por “questões vasculares em uma de suas pernas”, informou a sua assessoria de imprensa.

Segundo a assessoria, Leci Brandão está internada desde a última segunda-feira (15), quando foi realizar exames de rotina. A situação da deputada não é grave, mas requer cuidados específicos, reforçou sua equipe de comunicação.

“Leci já realizou um procedimento no ano passado para enfrentar o mesmo problema e os profissionais avaliaram que, devido a uma agenda intensa e extensa que ela enfrentou nos últimos meses, a recuperação dela se daria de forma mais efetiva se ela permanecesse no hospital por alguns dias”, diz o comunicado que foi enviado à imprensa.

Leci Brandão é cantora, compositora e umas das mais importantes intérpretes de samba da música popular brasileira. Ela é também a segunda deputada negra da história da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Filiou-se ao PCdoB em 2010 e está em seu terceiro mandato na Alesp.