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Memes políticos disputam imaginário com humor, mas podem desinformar

“O senhor é um padre de festa junina”, disse a candidata a presidente Soraya Thronicke (Pode) durante o último debate do primeiro turno da eleição de 2022. A declaração da presidenciável contra o também candidato Padre Kelmon (atualmente no PL e, na época, no PTB), em 29 de setembro, extrapolou o alcance do debate televisivo, foi repetida inúmeras vezes na internet em tom cômico e ganhou espaço na memória do eleitor até hoje. Virou “meme”.

Definido como uma linguagem que viraliza no universo virtual, “o meme cumpre essa função de entreter e divertir, mas também têm outros objetivos, especialmente no ambiente político”, explica à Agência Brasil o professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Viktor Chagas.
 

Autor da pesquisa A política dos memes e os memes da política: proposta metodológica de análise de conteúdo de memes dos debates eleitorais de 2014, o pesquisador esclarece que o termo não surgiu diretamente da internet. Originalmente, a definição se refere à maneira como as informações culturais são transmitidas de geração em geração.

“O conceito surge na década de 1970, portanto muito antes da popularização da internet. Ele foi cunhado pelo biólogo Richard Dawkins no livro O Gene Egoísta (1976) como termo análogo ao gene, só que na cultura”, conta Chagas.

Com o passar do tempo, a palavra foi usada por diversos campos do conhecimento, até que no final da década de 1990 houve a sua apropriação definitiva pelos usuários da internet, que começaram a definir “meme” como o compartilhamento de imagens, vídeos e piadas virais.

“Podemos falar que há dois memes, um antes da internet e outro depois dela, porque quando passamos a nos apropriar desse conceito, ele passou a representar algo completamente diferente e, então, nativo do ambiente digital”.

Associada a nichos culturais específicos, essa linguagem também se caracteriza por camadas de informação combinadas ao humor, atendendo a uma lógica na qual os usuários buscam construção de identidade e pertencimento.

“Hoje, há toda uma economia desenvolvida em torno dos memes. Os grandes responsáveis por diminuir a relação de custo-benefício na produção deles são o que chamamos vulgarmente de ‘geradores de meme’: pequenos aplicativos responsáveis por desenvolvê-los a partir de alguns modelos”, acrescenta.

Âmbito político

Pesquisadora do Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NetLab-UFRJ), Débora Salles considera o período de 2008 a 2012 — momento em que os candidatos passaram a investir massivamente na internet — como o marco inicial da utilização de memes nas campanhas políticas.

“O Obama (ex-presidente dos Estados Unidos) foi o grande ponto de virada na campanha política on-line. Com ele começa o uso de memes, ainda que algo restrito, mas que vai crescendo em importância social e cultural conforme o aumento do uso da internet e da penetração dos aplicativos na sociedade”.

No Brasil, a introdução dos memes nos períodos eleitorais ocorreu logo depois, com as eleições gerais de 2014, quando Dilma Rousseff foi reeleita ao cargo de presidente do país.

“As eleições de 2014 foram talvez o primeiro momento em que vimos efetivamente os memes entrarem na cena pública, com um caráter, inclusive, oficial”, destaca o professor da UFF. “A Dilma, na ocasião, foi vítima de muitos memes misóginos, assim como a Marina Silva”, relembra.

Para Chagas, no cenário político os memes podem ser utilizados como estratégia para persuadir diferentes grupos e chamar a atenção para uma posição ideológica.

“Eles podem contribuir para a construção de uma determinada leitura sobre um personagem da política, podendo atacar ou difamar. Nesse sentido, eles estão ali tentando convencer o eleitor de uma certa visão de mundo. Não à toa, muitas campanhas têm investido largamente na produção de memes ou no incentivo à comunidade de produtores e influenciadores digitais”, destaca. 

Também é comum os memes serem produzidos por apoiadores e movimentos organizados da sociedade com a intenção de criticar opositores e deslegitimar adversários. “Eles ajudam a deixar claro valores e conceitos, desarmar os críticos e aliviar a tensão. São uma tradução da criatividade das comunidades”, resume a pesquisadora do NetLab.

Desinformação

“É importante dizer que na maioria das vezes em que os memes são produzidos e divulgados, eles não têm necessariamente um conteúdo malicioso ou problemático”, ressalta Salles.

“A questão é que eles têm sido cada vez mais utilizados por grupos extremistas, que se apropriam de certas imagens, piadas e acontecimentos para propagar desinformação e promover discursos de ódio”. 

À Agência Brasil, a pesquisadora traz que existe uma diferença entre informação falsa e a desinformação. No geral, a primeira é algo que pode ser desmentido, enquanto a segunda é um conceito além, que também engloba a informação falsa.

“Muitas vezes, a desinformação está lidando com informações verdadeiras, mas tiradas de contexto e distorcidas. Já a informação falsa está inserida na desinformação, que inclui outras questões que não podem ser verificadas”.

Para ela, os memes estão relacionados à desinformação na medida em que o humor é utilizado para criar uma “zona cinzenta” entre o “problemático e aquilo que é socialmente aceitável”, sendo usado para escapar desse tipo de moderação. 

Segundo Débora Salles, um dos grandes problemas no combate à desinformação gerada pelos memes é a dificuldade de moderação das plataformas digitais. “É difícil identificá-los e tirá-los do ar, porque as plataformas têm dificuldades em reconhecer os memes. Com isso, especialmente quando os memes são problemáticos ou divulgados por grupos extremistas, o principal desafio para combatê-los é que não sabemos muito bem como isso é administrado pelas plataformas que não liberam informações sobre os seus conteúdos para a sociedade, para os pesquisadores ou mesmo para o Estado”. 

A estudiosa alerta que os eleitores em geral “precisam lembrar que o humor pode ser sempre usado como estratégia para falar aquilo que você não falaria normalmente”.

Assim, reforça haver uma necessidade de se investir em interpretação para que as pessoas possam identificar se aquela imagem, áudio ou vídeo se trata apenas de uma piada ou de uma estratégia para os apoiadores espalharem mensagens que não conseguiriam compartilhar diretamente.

*Estagiária sob supervisão de Vinícius Lisboa

Mostra em SP apresenta afeto e humor da fotógrafa Stefania Bril

Em uma calçada da capital paulista, um menino se encontra deitado, com a cabeça pousada sobre um carrinho de compras. Em suas mãos, uma revista em quadrinhos. A singela e irreverente imagem do cotidiano, ocorrida em 1973, não passou despercebida pelo olhar de Stefania Bril (1922-1992). O momento acabou sendo registrado e eternizado pelas lentes de sua câmera e acabou rendendo uma de suas fotografias mais conhecidas: Menino lê gibi em carrinho de supermercado.

Essa é uma das cerca de 160 fotografias, todas em preto e branco, que foram tiradas sobretudo na década de 1970 e que, desde a noite dessa terça-feira (27), estão em exposição no Instituto Moreira Salles (IMS), na Avenida Paulista. Chamada de Stefania Bril: desobediência pelo afeto, é a primeira mostra individual dedicada à obra da artista nos últimos 30 anos.

Nascida em Gdansk, na atual Polônia, Stefania Bril viveu a infância e adolescência em Varsóvia. Sobreviveu ao Holocausto e, ao final da guerra, mudou-se para a Bélgica, onde se graduou em química. Em 1950, ela e o marido migraram para o Brasil, onde começou a trabalhar nas áreas de bioquímica e química nuclear. Foi somente aos 47 anos que começou a atuar com fotografia, captando especialmente cenas cotidianas nas cidades, com pessoas comuns retratadas em situações de encontro, afeto e humor. “Insisto em ter uma visão poética e levemente zombeteira de um mundo que às vezes se leva a sério demais”, dizia a artista.

Suas fotos registram não só os anônimos e o fluxo da vida, como também as sutilezas, ironias e contradições do dia a dia. Como aquela em que um rapaz está com o corpo estendido sobre a grama, com exceção de seus pés, que estão voltados para a calçada. Ao lado dele, há uma placa, onde se lê: Não pise na grama.

São Paulo – Mostra em SP apresenta o afeto e o humor de Stefania Bril em seus retratos do cotidiano – Autorretrato, c. 1971 – Foto Acervo Instituto Moreira Salles/Arquivo Stefania Bril/Divulgação

“Ela não era uma fotógrafa comum, mas uma fotógrafa do comum”, definiu a curadora Ileana Pradilla Ceron, durante bate-papo na noite dessa terça-feira (27) e que abriu a exposição ao público. “Ela não tinha um lugar específico dentro das convenções. Não era uma fotógrafa de jornalismo e nem de ensaios ou temas específicos. Muitas vezes, temos a sensação de que suas fotos são ingênuas porque não estão tratando dos grandes temas como os da esfera pública, política ou do poder. Ela não trata de questões de gênero nem de temas exóticos. Está retratando a vida, o cotidiano. Mostra exatamente o que não vemos”, disse a curadora.

“A Stefania tinha essa coisa que não é fácil de conseguir: estar ligada ao passado, mas com os olhos no futuro. Ela deixou essa obra grande e importante, mas também os elos de onde a gente vem. Cada um de nós, se fizermos pequenas coisas, elas se tornarão grandes”, disse a fotógrafa Nair Benedicto que, em 1991, fundou o Nafoto – Núcleo dos Amigos da Fotografia, junto com Stefania Bril.

O cotidiano

Os dois grandes temas mais explorados pela artista, disse o também curador Miguel Del Castillo, são as cidades e as pessoas que habitam essas cidades. “Ela vê as cidades com outro olhar. Nos anos 70, fotografando, vê onde a modernidade falha, onde ela não é suficiente, onde essas cidades modernas não comportam diferenças e não deixam a vida florescer”.

São Paulo – Mostra em SP apresenta o afeto e o humor de Stefania Bril em seus retratos do cotidiano – Foto Acervo Instituto Moreira Salles/Arquivo Stefania Bril/Divulgação

Nessas fotos, traz sempre uma dose de humor e irreverência e também de desobediência. “O cotidiano, considerado um tema sem importância, é afirmado por Stefania como espaço de resistência, inclusive em meio a um contexto totalitário como os anos de chumbo no Brasil, quando fotografava”, afirmaram os curadores.

“O cotidiano representa a saída possível para quem vivia uma circunstância histórica de repressão”, definiu Cremilda Medina, jornalista, pesquisadora, professora e que conviveu com a fotógrafa. “Essa fotografia [do rapaz lendo o gibi deitado com a cabeça sob o carrinho de supermercado] é o símbolo da leitura cultural que Stefania fez nas ruas de São Paulo e no mundo contemporâneo”, destacou.

Crítica e apagamento

Para esta exposição, a seleção foca especialmente na produção fotográfica de Stefania, mas também destaca sua atuação como crítica e agitadora cultural, lembrando que foi a primeira pessoa a assinar como crítica de fotografia na imprensa brasileira, tendo trabalhado por mais de uma década no jornal O Estado de S. Paulo e na revista Iris Foto. Ela também foi responsável por organizar os primeiros festivais de fotografia no Brasil e concebeu a Casa da Fotografia Fuji, primeiro centro cultural em São Paulo voltado exclusivamente para o ensino e a divulgação da fotografia, que coordenou de 1990 a 1992.

Apesar de ter produzido mais de 11 mil fotogramas no período de 1969 a 1980 e de ter deixado mais de 400 textos críticos sobre o tema, sua obra ainda é pouco conhecida no país. Essa falta de reconhecimento nas discussões sobre fotografia impediu, por exemplo, que ela se tornasse uma referência na cultura visual do Brasil.

Visitando a exposição pela primeira vez, a arquivista Clarice Ferreira, 26 anos, observou que, apesar de pouca reconhecida e estudada, Stefania era muito conhecida em seu meio. “É meio dicotômico quando a gente pensa sobre isso, porque quando vejo o arquivo dela de perto percebo que, na verdade, embora o trabalho não fosse exposto ou reconhecido, ela era super conhecida na área. Tinha contato com vários fotógrafos brilhantes, como Evandro Teixeira, Sebastião Salgado, Maureen Bisilliat. Me pergunto como que o trabalho dessa mulher não era reconhecido se ela era tão conhecida por todas as pessoas da área naquela época. Com certeza existe um apagamento e isso se reflete de várias maneiras, até pelo tempo que essa exposição levou para existir”, comentou em entrevista à Agência Brasil.

Para Clarice, o trabalho de Stefania traz sempre um olhar diferente. “Sua fotografia é muito sensível, um olhar que realmente os fotógrafos da época não estavam interessados em passar. Além disso, a forma como lia a fotografia também era muito interessante. E, não obstante, ela virou crítica e curadora. Tinha um jeito muito diferente de conduzir o trabalho e basicamente não estava nem aí para o que as pessoas iam pensar. Fazendo o que queria, chegou muito longe”.

São Paulo (SP) – Mostra em SP apresenta o afeto e o humor de Stefania Bril em seus retratos do cotidiano – Foto Acervo Instituto Moreira Salles/Arquivo Stefania Bril/Divulgação

O assistente de fotografia Humberto Felga, 24 anos, que não conhecia o trabalho de Stefania, destacou que sua obra deveria ser mais reconhecida. “É um nome que já devia vir à tona há muito tempo e que foi apagado. Então, estou feliz de estar conhecendo agora o trabalho dela. O que me chama a atenção é esse registro de vida. Notei essa carga cômica que ela tem. Tem uma foto de uma criança, inclusive, que diz ‘eu sou corajosa’ e é uma criança super posturada, com olhar. Não sei se é exatamente o que ela estava escutando ou o que estava vendo na hora, mas ela trouxe num título essa narrativa”.

A exposição, que é gratuita, fica em cartaz até o dia 26 de janeiro. Mais informações sobre a mostra podem ser obtidas no site do IMS.