Skip to content

Novo herói da pátria, André Rebouças deixou legado antirracista

Quando se pensa em engenharia, uma obra de qualidade é aquela estruturalmente forte e estável, capaz de resistir aos efeitos do tempo. Esse critério bastaria para qualificar o engenheiro negro André Rebouças (1838-1898) como um dos nomes mais importantes do país.

Busto dos irmãos André e Antônio Rebouças, na Praça José Mariano Filho, na Lagoa, esculpido por Edgar Duvivier. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Mas a obra dele vai além de pontes, docas, estradas de ferro e sistemas hídricos. Ele se destacou como um intelectual crítico, abolicionista, que viajou pelo mundo colhendo experiências em sociedades segregadas e projetou um Brasil onde todos pudessem ser iguais, sem distinções raciais.

O currículo credenciou André Rebouças a ser reconhecido oficialmente nesta semana como um “herói da pátria”, o que lhe garantirá um espaço no livro que reúne as principais personalidades do país.

Historiadores ouvidos pela reportagem da Agência Brasil celebraram a inclusão de Rebouças no documento. Em primeiro lugar, por entenderem que o engenheiro precisa ser mais conhecido no Brasil. Em segundo, por um resgate e revisão de sua memória, alvo de críticas por ter apoiado Dom Pedro II.

“Embora seja um reconhecimento tardio, essa inclusão no livro de heróis vem corrigir a imagem de André Rebouças como um monarquista que desistiu do país e fez um autoexílio, ao sair junto com a família imperial no fim do Segundo Reinado. Ele sai por entender que a República nasce de um movimento revanchista, de uma elite escravocrata, que não aceitou o fim da escravidão sem indenização no Brasil. E a gente teve desdobramentos muito ruins para a projeção dessa figura histórica. Tenho certeza que ajuda, em parte a corrigir isso. Existe ainda todo um trabalho a ser feito de recuperação dessa memória”, avalia Antonio Carlos Higino da Silva, historiador e autor dos livros André Rebouças no Divã de Frantz Fanon.

Fachada do prédio do Armazém Docas Dom Pedro II, obra do engenheiro André Rebouças, na região portuária do Rio. Foto – Tânia Rêgo/Agência Brasil

“A inclusão dele no livro é um fato muito importante, porque durante muito tempo o documento só tinha a presença de heróis brancos e excluía outros grupos sociais, como negros, indígenas e mulheres. E é um passo importante nesse processo de revisão histórica, em que aqueles antes excluídos ou apresentados como passivos ou coadjuvantes da história do Brasil, agora são vistos como protagonistas e agentes históricos potentes de transformação dos 500 anos de história do nosso país”, diz o historiador Jorge Santana, professor do Instituto Federal do Paraná.

Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria

O primeiro passo é entender do que se trata o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Ele foi criado em 1992 e reúne personalidades do tidas como “protagonistas da liberdade e da democracia”, por terem dedicado parte da vida ao país. A obra também é conhecida com Livro de Aço, por ser feita com páginas desse material, e fica no Panteão da Pátria, na Praça dos Três Poderes, em Brasília.

A inscrição de um novo personagem depende de lei aprovada no Congresso. Entre os heróis e heroínas brasileiros, estão Tiradentes, Anita Garibaldi, Chico Mendes, Zumbi dos Palmares, Machado de Assis, Santos Dumont, Luís Gama e Joaquim Nabuco.

A Lei nº 15.003 , que oficializa a homenagem a André Rebouças, foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e publicada nesta quinta-feira, 17 de outubro, no Diário Oficial da União. As ministras Macaé Evaristo (Direitos Humanos) e Anielle Franco (Igualdade Racial), além do ministro Ricardo Lewandowski (Justiça e Segurança Pública) também assinam a medida.

Biografia de Rebouças

André Pinto Rebouças nasceu no município de Cachoeira, na Bahia, em 3 de janeiro de 1838. Era filho de Antônio Pereira Rebouças e Carolina Pinto Rebouças. O pai, filho de ex-escravizada e de um homem branco, foi um advogado autodidata, deputado pela província da Bahia e conselheiro do imperador Dom Pedro I.

Trecho do Túnel Rebouças, que homenageia os irmãos André e Antônio Rebouças. Foto – Fernando Frazão/Agência Brasil

A família Rebouças veio para o Rio de Janeiro em 1846. André e o irmão Antônio, aos 15 e 16 anos, ingressaram na Escola Militar (precursora da Escola Politécnica) e formaram-se engenheiros militares em 1860. Depois de uma viagem pela Europa, (1861-1862) voltaram ao Brasil em 1863 e ficaram responsáveis por reformas nas fortalezas de Santos até Santa Catarina. Em 1864, André projetou o novo porto do Maranhão.

André participou da Guerra do Paraguai, entre 1865 e 1866, no batalhão dos engenheiros e retornou ao Rio de Janeiro por motivo de saúde. Participou das obras do porto da cidade, foi diretor das obras das novas Docas da Alfândega (na atual praça XV) e responsável pela construção das Docas de Pedro II (ao lado do Cais do Valongo).

“Esse armazém é uma grande fonte de inspiração e deve ser pensado como referência de resistência negra. O projeto é todo pensado pelo André Rebouças, em que ele se esforçou em não ter mão de obra escravizada, em constituir proteção social para os seus trabalhadores. Rebouças foi ao encontro de um projeto moderno, de um porto industrial, trazendo referências de um engajamento político e social importante”, diz o historiador Antonio Carlos Higino.

Rebouças nunca foi escravizado, pertencia a uma classe média negra e era protegido por uma rede de amigos poderosos, como a própria família imperial. Talvez isso explique um pouco o porquê de ter demorado a se colocar publicamente como um homem negro e abolicionista. Isso começou a mudar a partir da década de 1870. As viagens para a Europa e para os Estados Unidos, onde presenciou exemplos mais visíveis de discriminação e apartheid racial, foram fundamentais para impactar os projetos políticos e a subjetividade de Rebouças.

Na década de 1880, passa a atuar ativamente no Brasil em projetos contra a escravidão. Foi um dos criadores da Sociedade Brasileira contra a Escravidão, junto com Joaquim Nabuco e José do Patrocínio, em 1880. E participou da Confederação Abolicionista (1883) e da Sociedade Central de Imigração (1883).

“Os mais sanhudos escravocratas confessam hoje publicamente: — a escravidão é um cancro. Já não há mais quem ouse negar que a escravidão é a gangrena nacional; que é a causa primária de todas as misérias e vergonhas que afligem este império; que é o obstáculo máximo à imigração, ao progresso da agricultora, da indústria e do comércio no Brasil”, escreveu Rebouças no texto de abertura do folheto “Abolição immediata e sem indemnisação”, publicado em 1883.

Monarquista, por considerar que o republicanismo brasileiro era liderado por antigos senhores de escravizados, Rebouças partiu para o exílio em 1889 junto com a família imperial. Depois da morte de Dom Pedro II em 1891, partiu para a África, para trabalhar e ajudar no desenvolvimento do continente. Foi nesse período que Rebouças passou a ver a África como “terra de origem” e a se declarar como homem negro, meio brasileiro e meio africano. Mas decepcionou-se com as dificuldades encontradas, como a pobreza decorrente da exploração de nações europeias. Morreu em Funchal, Portugal, em 9 de maio de 1898, em circunstâncias incertas, tendo sido encontrado no pé de um precipício, aos 60 anos.

Como legado para a realidade social dos negros pelo mundo, deixou textos e análises críticas, focados na construção de um país mais igualitário.

“O André Rebouças apontava como principal preocupação o 14 de Maio, ou seja, o dia seguinte à abolição. O que teria de ser feito, como a distribuição de terras, uma reforma agrária, para que os ex-escravizados pudessem ter um meio de sustento, de sobrevivência, e pudessem ser integrados à vida econômica do país”, diz o historiador Jorge Santana.

“Ao fim movimento abolicionista e a libertação dos escravizados, André Rebouças propôs para o orçamento do ano de 1890 um aporte, parte dos recursos de orçamento, para investimento nas pessoas libertas. Ele pensou o Brasil do futuro, da proteção social, escolarização, estradas, portos, tudo que poderia esse país um lugar moderno e melhor. Ele é uma grande referência para os que querem um Brasil melhor e mais unido”, diz o historiador Antonio Carlos Higino.

Filho de João Cândido rebate Marinha: “meu pai é um herói popular”

Após a Marinha se manifestar contra o reconhecimento de João Cândido como herói da pátria, o único filho vivo do líder da Revolta da Chibata criticou o posicionamento, mas diz que não se surpreende. Adalberto Cândido, conhecido como seu Candinho, avalia que há uma aversão à figura de João Cândido e conta que os familiares nunca foram procurados pela Marinha. 

“Ela não se envolve em nenhum evento relacionado com meu pai. Quando houve a cerimônia de instalação da estátua do meu pai na Praça XV, no Rio de Janeiro, não tinha ninguém da Marinha presente. Parece que nutrem um ódio. Eles deviam agradecer aos marinheiros por terem feito a Marinha evoluir. Mas não quero que meu pai seja herói da Marinha, quero que seja um herói do povo. Meu pai é um herói popular. A verdade é que a Marinha não se atualizou como deveria”, disse seu Candinho, em entrevista à Agência Brasil nesta sexta-feira (26).

A inclusão de João Cândido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria depende da aprovação do Projeto de Lei 4046/2021, atualmente tramitando na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados. Na segunda-feira (22), a Marinha enviou uma carta oficial endereçada ao deputado federal Aliel Machado (PV), que preside a comissão. Deflagrada no Rio de Janeiro em 1910 como reação aos castigos corporais aplicados aos marinheiros, a Revolta da Chibata foi descrita pela Marinha como uma “deplorável página da história nacional” que se deu pela “ação violenta de abjetos marinheiros”.

A carta foi assinada pelo comandante da Marinha, Marcos Sampaio Olsen. “A Força Naval não vislumbra aderência da atuação de João Cândido Felisberto na Revolta dos Marinheiros com os valores de heroísmo e patriotismo; e sim, flagrante que qualifica reprovável exemplo de conduta para o povo brasileiro”, registra o texto.

O Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria é um livro de aço voltado para perpetuar, através do registro do nome, a memória dos brasileiros que se destacaram na história do país. Desde que foi criado, em 1992, já foram homenageados 64 pessoas, entre eles Tiradentes, Anita Garibaldi, Chico Mendes, Zumbi dos Palmares, Machado de Assis e Santos Dumont. Ele fica depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, monumento localizado em Brasília. A inclusão de novos nomes só ocorre mediante aprovação de lei pelo Congresso Nacional.

Na carta enviada à Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, o comandante Olsen classifica a revolta como “subversão” e “ruptura de preceitos constitucionais organizadores das Forças Armadas”. Ele sustenta que houve desrespeito à hierarquia e à disciplina e menciona ainda que inocentes morreram no episódio.

Seu Candinho contesta. Segundo ele, a Marinha naquela época desrespeitava suas próprias regras internas, prática que mudou graças ao movimento dos marinheiros. “Não havia essa disciplina. Pelo código disciplinar, o limite eram 25 chibatadas. Deram 250 em um marinheiro”.

Embora reconheça o “justo pleito pela revogação da prática repulsiva do açoite”, Olsen alega que os marinheiros estavam interessados em “vantagens corporativistas e ilegítimas”. Também consta no texto que o reconhecimento de João Cândido como herói passaria a “mensagem de que é lícito recorrer às armas que lhe foram confiadas para reivindicar suposto direito individual ou de classe”.

Em postagens nas suas redes sociais, o deputado federal Lindbergh Farias (PT), autor do Projeto de Lei 4046/2021, manifestou indignação com a posição da Marinha. “A nossa luta para ver João Cândido herói nacional não vai parar”, escreveu o deputado, compartilhando também imagens de uma visita feita a seu Candinho nesta sexta-feira (26).

Rio de Janeiro (RJ), 08/11/2023 – Adalberto Cândido, o Candinho, filho de João Cândido Felisberto, o marinheiro líder da Revolta da Chibata, conhecido como Almirante Negro. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

 

Tramitação

O Projeto de Lei 4046/2021 já foi aprovado no Senado Federal. Na Câmara dos Deputados, embora tramitando há mais de dois anos, ele ainda encontra-se nas primeiras etapas. A Comissão de Cultura deve ser a primeira a analisá-lo. A deputada Benedita da Silva (PT) foi designada relatora e apresentou seu parecer em julho de 2022, mas até hoje ele não foi votado. A parlamentar se manifestou de forma favorável e considera que a inclusão de João Cândido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria seria uma “reparação histórica”.

“Somente em 2008, no governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi sancionada anistia póstuma ao marinheiro João Cândido e colocada na Praça XV, na cidade do Rio de Janeiro, uma estátua em homenagem à sua bravura e heroísmo, depois de muita resistência da Marinha”, registra o relatório da parlamentar. A estátua que ela menciona foi revitalizada em 2022 e transferida para a Praça Marechal Âncora, localizada de frente para o mar.

O Ministério Público Federal (MPF) também encaminhou um posicionamento favorável ao projeto em novembro do ano passado. No documento, cita-se uma tentativa de silenciamento da história de João Cândido. Há também críticas diretas à posição que vem sendo adotada pela Marinha, acusada de promover “esquecimentos das chibatadas, dos castigos corporais e da resistência contra o tratamento desumano sofrido por aqueles marinheiros”.

Há um inquérito do MPF em andamento voltado para para fortalecer a memória em torno do legado de João Cândido, o que inclui, por exemplo, a criação de museus. Além disso, há uma cobrança para que a anistia concedida em 2008 produza efeitos e gere compensação financeira à sua família. Para o MPF, é preciso levar em conta o direito às promoções que João Cândido teria se não tivesse sido expulso da Marinha e a pensão por morte.

Nesta quarta-feira (24), durante uma audiência na Câmara dos Deputados, o MPF voltou a reforçar sua posição. O procurador da República, Julio Araujo, destacou na ocasião que a atuação de João Cândido e seus companheiros foi fundamental para promover mudanças na Marinha, abolindo práticas abomináveis e contribuindo para uma instituição mais justa e deixando para trás práticas do período da escravidão.

Amor pela Marinha

“Meu pai dizia que amava a Marinha, independente de tudo o que ele passou”, conta seu Candinho. Seu relato coincide com a conclusão de pesquisas realizadas pelo historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), José Murilo de Carvalho. Na década de 1980, ele publicou um artigo traçando o perfil de João Cândido. Em sua análise, ele levou em conta bordados que o marinheiro produziu durante horas vagas a bordo de um navio. Em um deles, foi grafado as palavras “liberdade” e “ordem”, conceitos que bem poderiam ser considerados antagônicos.

“João Cândido cresceu numa instituição militar onde prevalece a disciplina. Além disso, o lema republicano ‘ordem e progresso’ tinha forte influência entre os marinheiros. Mesmo após sua expulsão, João Cândido manteve um relacionamento sentimental com a instituição. Ele foi visto idoso se despedindo quando o navio Minas Geraes foi desligado. A liberdade, para ele, significava o direito a um tratamento que não fosse assemelhado aos escravos, como os próprios marinheiros diziam. Mas sem perder de vista a importância da disciplina”, explicou José Murilo de Carvalho alguns anos atrás em entrevista à EBC.

Na ocasião, o historiador também destacou que a reputação de João Cândido se tornou alvo de disputa após o fim da revolta. “De um lado, ele era vilipendiado pelo discurso oficial e, de outro, passou a ser exaltado e transformado num mito, sobretudo pelo movimento negro. Sua reputação ficou entre a calúnia e a mitificação”.

Revolta da Chibata

Filho de ex-escravos, João Cândido nasceu no ano de 1880 em uma fazenda cuja localização situa-se dentro dos atuais limites do município de Encruzilhada do Sul (RS). Ele ingressou na Marinha aos 15 anos de idade. Por sua atuação à frente da Revolta da Chibata, foi apelidado de almirante negro. A mobilização que ele liderou entre os dias 22 e 27 de novembro de 1910 contestava os baixos salários, a ausência de um plano de carreira e, sobretudo, as chicotadas aplicadas como punições.

A revolta envolveu a tomada de embarcações atracadas na Baía de Guanabara. A primeira delas foi o navio Minas Geraes e logo se expandiu. Posteriormente, eles assumiram o controle das embarcações São Paulo, Bahia e Deodoro, direcionaram canhões para o Rio de Janeiro e fizeram alguns disparos. João Cândido seria posteriormente homenageado por sua liderança, na letra da música “Mestre Sala dos Mares”, composta por Aldir Blanc na década de 1970.

Diante das ameaças, foi anunciado o fim dos castigos corporais e a anistia aos revoltosos, o que levou os marinheiros a encerrarem a mobilização. Apesar da promessa, diversos participantes foram presos ou expulsos de Marinha. João Cândido e outros líderes chegaram a ser enviados para a solitária no Batalhão Naval na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro. Posteriormente, foram excluídos da Marinha. Quando morreu em 1969, ele morava em uma casa em uma rua sem saneamento básico ou luz elétrica. Com 89 anos, ele faleceu em decorrência de um câncer de intestino e passou seus últimos dias no Hospital Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.

Herói da II Guerra Mundial foi torturado pelo regime militar

O fato de ser herói da II Guerra Mundial, onde participou de 94 missões como piloto de caça com o avião P-47, contra a média de 35 ações de um piloto norte-americano no mesmo conflito, não livrou o brigadeiro Rui Moreira Lima de ser preso três vezes durante o regime militar e cassado pelo AI-1. Até hoje não foi anistiado pelo Estado brasileiro, segundo relata à Agência Brasil o filho dele, o economista Pedro Luiz Moreira Lima.

O Ato Institucional número 1, assinado em 9 de abril de 1964 pela junta militar, composta pelo general do Exército Artur da Costa e Silva, tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo e vice-almirante Augusto Hamann Rademaker Grünewald, suspendia por dez anos os direitos políticos de todos os cidadãos vistos como opositores ao regime, entre congressistas, militares e governadores. Nesse período, surgiu a ameaça de cassações, prisões, enquadramento como subversivos e eventual expulsão do país. O AI-1 foi o embrião da Lei de Segurança Nacional, publicada em 3 de Março de 1967.

 Pedro Luiz Moreira Lima, economista e filho do brigadeiro Rui Moreira Lima Tânia Rêgo/Agência Brasil

Acusado de ser comunista, uma contravenção grave na época, Rui Moreira Lima recusou-se a entregar a Base Aérea de Santa Cruz, que comandava, no Rio de Janeiro, foi posto na reserva e preso pela primeira vez. Foram cassadas licenças de voo de oficiais da Aeronáutica, entre elas a de Rui. Sua carteira de voo foi recuperada apenas em 1979, quando, devido à idade, não tinha mais condições de executar pilotar. Pedro Luiz contou que o pai foi um dos milhares de militares, dentre os quais cerca de 2 mil oficiais, atingidos pela ditadura que não poderiam recorrer à Justiça comum para reaver seus direitos, de acordo com o Artigo 181 da Constituição de 1967.

Ato de força

O artigo 181 dizia que “ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964, assim como os atos do governo federal, com base nos Atos Institucionais e nos Atos Complementares e seus efeitos, bem como todos os atos dos ministros militares e seus efeitos, quando no exercício temporário da Presidência da República”. Pedro Luiz definiu: “foi um ato de força. Foi com este artigo que o pai abandonou sua luta pelo direito de voar e sua promoção. Somente na Constituição de 88 esse artigo foi derrubado e, sem dúvida, graças ao pai”.

O economista conta que a ditadura queria expulsar o pai das Forças Armadas. “Teve gente que pensou em até eliminar todos os oficias cassados. Em 1988, ele entrou na Justiça comum e chegou, em 1992, ao posto de major-brigadeiro”. Rui Moreira Lima morreu, entretanto, em 13 de agosto de 2013, aos 94 anos, sem conseguir obter a mais alta patente da Aeronáutica em tempos de paz, que é a de tenente-brigadeiro-do-ar. Sem acatar o pedido para que expulsassem o brigadeiro Rui Moreira Lima da Força Aérea, o presidente Castelo Branco, que o conhecia desde jovem, acabou reformando-o como coronel e não como major-brigadeiro, contrariando as leis militares, que justificavam o posto pelo tempo de serviço prestado e pelas ações na II Guerra Mundial.

Brigadadeiro Rui Moreira Lima –  Arquivo pessoal

Pedro Luiz contou que, anos depois, em decisão assinada em 24 de maio de 2016, o então presidente Michel Temer concedeu promoção post mortem a tenente-brigadeiro-do-ar a Rui Moreira Lima, publicada no Diário Oficial, mas cassada em 2019 pela Advocacia Geral da União (AGU), com assinatura do presidente Jair Bolsonaro. O argumento era que Moreira Lima não era piloto. “Era engenheiro e engenheiro não chega ao posto de quatro estrelas de tenente-brigadeiro”, relatou Pedro Luiz.

Prisões

Na primeira vez que foi preso, Rui Moreira Lima foi colocado no porão do navio de tropa Barroso Pereira, próximo à Ilha Fiscal, onde sofreu tortura psicológica e conviveu com ratos, percevejos e baratas. Não havia sanitário. As necessidades fisiológicas eram feitas em um buraco no chão. Fez greve de fome. Três dias depois, o comandante do Grupo de Caça na Itália e ex-ministro da Aeronáutica, Nero Moura, telefonou para o presidente Castelo Branco relatando as condições que seu comandado estava sofrendo e ele foi transferido para o navio Princesa Leopoldina, onde permaneceu 49 dias preso.

Quatro meses depois, foi preso novamente e levado para o quartel da 3ª Zona Aérea, sob o comando do brigadeiro João Adil de Oliveira. Ficou 90 dias detido, respondendo ao inquérito de Santa Cruz, como ficou conhecido, dirigido pelo brigadeiro Manoel José Vinhaes mas, principalmente, por seu assistente, coronel João Paulo Moreira Burnier. “Esse Inquérito foi terrível, sendo dirigido praticamente pelo Burnier. Ambos –Vinhaes e Burnier – não procuravam apurar a verdade, mas comprometer-me como subversivo”. A afirmação é do próprio brigadeiro Rui Moreira Lima, em entrevista concedida para o projeto História Oral do Exército e das Forças Irmãs na Revolução de 1964, publicado em 2003.

Brigadadeiro Rui Moreira Lima – Arquivo pessoal

Libertado e cassado, começou nova carreira como civil, aos 49 anos, no mercado de ações incentivadas, como sócio da empresa Jacel Jambock. Na última prisão, em 1970, o filho de Rui, Pedro Luiz, foi detido como forma de o governo ditatorial chegar até o então coronel Moreira Lima, dentro de sua empresa. O brigadeiro foi sequestrado, encapuçado e levado para o 15º Regimento de Cavalaria Mecanizado (RC Mec), situado na Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, comandado pelo coronel Mário Orlando Ribeiro Sampaio. Este era antigo comandado de Rui no Conselho de Segurança e no curso que fizeram na Alemanha Ocidental. Ali, o brigadeiro ficou incomunicável durante três dias, em uma espécie de masmorra, onde não conseguia deitar nem dormir, pois a cama tinha somente três pernas. Se precisasse ir ao banheiro, deveria chamar um dos vigias para acompanhá-lo. Até que, por ordem do General Sizeno Sarmento, foi libertado. “O pai achava que a intenção era sua morte e desaparecimento”, disse Pedro Luiz.

As perseguições não pararam, entretanto, depois da última prisão. A família recebia ameaças e xingamentos pelo telefone, vigias à paisana eram vistos rondando a rua e tinha sempre um órgão que implicava com o funcionamento da empresa do brigadeiro.

Senta a Púa!

Rui Barbosa Moreira Lima, ou brigadeiro Rui Moreira Lima, como era chamado, nasceu na cidade de Colinas, no Maranhão, em 12 de junho de 1919. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1938 para cursar a Escola Militar, vindo a se formar aviador na primeira turma da Escola da Aeronáutica. Tornou-se um dos primeiros membros da Força Aérea Brasileira (FAB). Inscreveu-se como voluntário para a II Guerra Mundial na Itália pelo 1º Grupo de Aviação de Caça, do qual foi o criador do lema Senta a Púa. Esse também foi o título do primeiro livro que publicou sobre a atuação do 1º Grupo de Aviação de Caça na guerra. “Foram 55 mil livros na primeira edição”, revelou Pedro Luiz. A obra já está na quarta edição. “São histórias humanas que aconteceram, com depoimentos de vários companheiros do brigadeiro”.

Senta a Púa está na quarta edição – Tânia Rêgo/Agência Brasil

Após a abertura da democracia, ele lançou Diário de Guerra, contando as missões que efetuou nos céus da Itália, sendo a primeira em 6 de novembro de 1944 e a última em 1º de maio de 1945. Foi atingido pela artilharia antiaérea alemã em nove ocasiões, das quais saiu sem ferimento. Seu embarque para a guerra ocorreu quando sua esposa, Júlia Moreira Lima, estava grávida da primeira filha, aos 18 anos. Os três filhos do oficial são Claudia, Sonia e Pedro Luiz.

De espírito inquieto, se tornou ativista pela abertura e pela redemocratização do país, com atuação plena na Constituinte, pelas questões nacionalistas, pela retomada de direitos civis e militares dos brasileiros atingidos pelos golpes de Estado, e pela valorização da história do Brasil e da FAB.

Em 2021, a Editora Topbooks lançou Adelphi! Voando por Justiça e Liberdade, livro biográfico escrito pela museóloga Elisa Colepicolo e por Pedro Luiz Moreira Lima, contando a história do brigadeiro. “Meu pai era um historiador. Tudo que ele escrevia, ele guardava”. A base do livro foram os escritos deixados por Rui, que totalizaram 8 mil documentos, 6 mil fotos e algumas gravações que o oficial deixou. O termo Adelphi é uma saudação especial, destinada a reverenciar os pilotos de caça da Força Aérea Brasileira que pereceram nos céus da Itália, além de ser usado também para marcar eventos relevantes para a aviação de caça ou para a Força Aérea Brasileira. 

Expoente da cultura negra Abdias do Nascimento é Herói da Pátria

Um dos maiores ativistas do movimento negro no Brasil, Abdias do Nascimento terá o seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. A Lei  nº 14.800/2024, que estabelece a homenagem no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília, foi publicada, nesta terça-feira (9), no Diário Oficial da União.

Paulista, nascido em Franca em 1914, neto de africanos escravizados, Abdias do Nascimento foi um intelectual responsável por pensar, debater e difundir a cultura africana e o combate ao racismo, em diferentes linguagens, como escritor, ator, artista visual, professor e político. Considerado um dos maiores expoentes da cultura negra no século 20, ele foi responsável por criar o Teatro Experimental do Negro (TEN), companhia teatral formada por operários, empregadas domésticas e trabalhadores sem formação, que teve início em 1944 e chegou a ter um programa televisivo na extinta TV Tupi, com temáticas sobre cidadania e conscientização racial.

Neste contexto, Abdias também desenvolveu o projeto do Museu da Arte Negra (MAN), que abriu sua exposição inaugural, no Museu de Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em 1968, mesmo ano em que o intelectual partiu para o exílio nos Estados Unidos. Foi professor emérito de culturas africanas no Novo Mundo, na Universidade de Nova York e atuou em outras universidades norte-americanas.

Quando Abdias voltou ao Brasil, após 13 anos de afastamento durante o regime autoritário, fundou o Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros. Participou da fundação do Movimento Negro Unificado contra o Racismo e a Discriminação Racial e ajudou a criar o Memorial Zumbi.

Foi consultor da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), deputado federal e senador. Morreu aos 97 anos, em 2011, e teve suas cinzas depositadas na Serra da Barriga, em Alagoas, onde existiu a República dos Palmares.

Com a inscrição de seu nome no, também chamado Livro de Aço, Abdias recebe o mesmo título de Herói da Pátria dado ao líder quilombola Zumbi dos Palmares.