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Ditadura bloqueou reversão da desigualdade no Brasil

 

Em agosto de 1968, no quarto ano da ditadura militar (1964-1985), a revista Realidade (editora Abril) trazia a reportagem Eles estão com fome, do jornalista pernambucano Eurico Andrade (1939-2005). A matéria, que venceu o Prêmio Esso daquele ano, tratava da situação de subsistência dos trabalhadores rurais da Zona da Mata de seu estado, localizada no mapa da fome das Nações Unidas e onde viviam 1,5 milhão de brasileiros.

O primeiro personagem do texto é um lavrador chamado Berto Miranda, 45 anos, pai de cinco filhos. Era o começo do dia e ele estava se preparando para ir trabalhar no canavial de um engenho da região, quando a esposa o interpela: “Berto, tu vai levar essa farinha de cuia?” Ele responde devolvendo a indagação: “E eu vou comer o que de almoço?” A mulher encerra o diálogo da penúria: “É que só tinha esse restinho em casa, deixei para os meninos, o que é que se faz?”

Segundo o repórter Eurico Andrade, Berto Miranda deixou a cuia de farinha em casa. Sem levar a sua enxada, caminhou para o mato. “Antes do meio-dia, os outros lavradores trouxeram o cadáver: Berto se enforcara.”

No ano daquela reportagem, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 9,8%. O desempenho extraordinário abriu o chamado “milagre econômico brasileiro”, que durou seis anos e teve uma taxa média de crescimento de 11,2% ao ano. O Brasil da prosperidade econômica fenomenal era o mesmo do flagelo da indigência, mas o progresso miraculoso não chegava a lugares como a Zona da Mata de Pernambuco.

Antes da tragédia de Berto Miranda e da opulência do PIB, o Brasil já era um país de grandes desigualdades socioeconômicas. O período da ditadura militar, no entanto, tornou superlativas essas disparidades.

Em 1960, os 5% dos brasileiros mais ricos concentravam 28,3% da renda. Em 1972, a mesma proporção de ricos se apropriava de 39,8% da riqueza produzida no país. Os dados são tirados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do censo populacional no início dos anos 1960 e da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar de 1972.

Naquela período, o índice de Gini pulou de 0,497 para 0,622. O indicador, inventado pelo estatístico italiano Corrado Gini, vai de 0 a 1. Hipoteticamente, o índice em 0 corresponde a nenhuma desigualdade de renda entre as pessoas. O indicador em 1 significa que em tese toda riqueza está concentrada em uma única pessoa. Atualmente, o Gini nacional é 0,492 (renda individual), segundo a Carta de Conjuntura do quarto trimestre de 2023, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Política salarial

Para o sociólogo e economista Marcelo Medeiros, técnico do Ipea e professor visitante na Universidade Columbia (Estados Unidos), “é difícil dizer que a desigualdade atual seja um legado da ditadura militar”.

“Uma parte da desigualdade é herdada da ditadura, mas existe uma parte da desigualdade que a precede. O que a ditadura fez foi bloquear os mecanismos de reversão dessa desigualdade”, afirma Marcelo Medeiros.

“É difícil dizer que a desigualdade atual seja um legado da ditadura militar”, afirma o sociólogo e economista Marcelo Medeiros – UnB Notícias/Divulgação

De acordo com o especialista, o regime de arbitrariedade inaugurado em 1º de abril de 1964 “bloqueou as negociações trabalhistas na época”. “Bloqueou todas as organizações sociais, criou mecanismos, por exemplo, para desvalorizar o salário mínimo e não deixou os trabalhadores se queixarem disso pelos mecanismos que tinham. Eles destruíram sindicatos. O que a ditadura fez foi desbloquear as condições de reversão da desigualdade.”

O diagnóstico de Medeiros é semelhante ao do economista Luiz Aranha Correa do Lago, professor pleno da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Em artigo publicado no livro A Ordem do Progresso (editora Elsevier, 2014), ele detalha: “Após 1964, quando ocorreram numerosas intervenções nos sindicatos existentes e o movimento sindical perdeu suas características reivindicatórias, as negociações coletivas com relação a salários passaram a depender, de forma crescente, da aprovação governamental.”

O resultado da desmobilização forçada dos trabalhadores foi a contenção das remunerações. O poder aquisitivo do salário mínimo caiu em 42% no estado de São Paulo, de acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

Economista Luiz Aranha Correa do Lago diz que, após 1964, negociações salariais passaram a depender da aprovação governamental – Companhia das Letras/Divulgação

“No período de 1967-1973, a política salarial e a política de relações trabalhistas do governo tiveram como resultado uma contenção dos níveis de salário real […] favorecendo a acumulação de capital via manutenção de elevada taxa de lucro e possibilitando uma política de remuneração seletiva para o pessoal de nível mais elevado”, acrescenta Correa do Lago.

O bolo cresceu

A acumulação do capital em alguns setores da economia era propósito perseguido pelo governo militar. Para o historiador Jorge Luiz Ferreira, professor da Universidade Federal Fluminense, “as empresas tiveram ganho de produtividade, mas não foi repassado aos trabalhadores”.

“O bolo cresceu, como dizia o Delfim [Netto – ministro da Fazenda de 1967 a 1974], mas ele não foi repartido, ou foi repartido de maneira muito desigual”, destaca o historiador. Conforme Ferreira, “o objetivo era industrializar o país, fazer o país crescer, mas não tinha uma política de redistribuição de renda.”

O historiador lembra que “havia muitos trabalhadores disponíveis nas cidades que vieram do campo.” A disponibilidade de mão de obra depreciava os salários, e “os empresários demitiam e contratavam outro com facilidade.” O êxodo rural gerou inchaço nas cidades, crescimento das favelas, pauperização da população e deterioração do quadro social. “Aí começam a surgir nas ruas crianças vendendo limão e crianças abandonadas.”

Para o cientista político Thiago Aparecido Trindade, há semelhanças entre o golpe militar e o impeachment de Dilma Rousseff – UnB/Divulgação

A abundância de mão de obra nas cidades é reflexo da falta de reforma agrária como previam as reformas de base pretendidas pelo ex-presidente João Goulart, deposto em 1964. O cientista político Thiago Aparecido Trindade, professor da Universidade de Brasília (UnB), assinala que a reforma agrária é uma necessidade ainda presente no Brasil.

Ele também aponta semelhanças entre o golpe militar contra Jango e o impeachment da presidente Dilma Rousseff. “É muito parecido. Em ambos casos, havia tendência de redução da desigualdade. No fundo, a gente percebe que as decisões que foram tomadas, tanto num caso como no outro, foram elementos decisivos para concentrar a riqueza.”

O antropólogo Piero Leirner, professor da Universidade Federal de São Carlos e especializado em militares, aponta que a concentração de riqueza seguiu após o milagre brasileiro e o retorno da inflação no crepúsculo da ditadura. “A Inflação, na verdade, foi um mecanismo de concentração de renda. O sistema financeiro protegeu as pessoas mais ricas, que conseguiam, deixar o dinheiro em aplicações, naquelas coisas tipo overnight e tal.”

A inflação foi uma herança deixada pela ditadura que só foi contornada depois da redemocratização do país no Plano Real. Assim como o endividamento externo. Ambos processos agravaram as desigualdades socioeconômicas. “Contraímos dívida para beneficiar alguns grupos sociais, mas é uma dívida que teve de ser paga por todos. O que foi o endividamento? Foi uma socialização da concentração de renda”, descreve o sociólogo e economista Marcelo Medeiros.

Para ele, passados quase 40 anos de redemocratização, a desigualdade segue como um problema desafiando o Estado e a sociedade brasileira. “Enfrentar desigualdade implica enfrentar diretamente o conflito distributivo, que significa que algumas pessoas vão perder todas as posições que elas têm hoje. E essa perda de posições, ela gera reações. É óbvio que tem reações de natureza política de várias pessoas – não é só dos ultrarricos. Reações de vários grupos que vão tentar manter suas posições. Antes de tudo, a desigualdade é um problema de natureza política.”

Escolas foram usadas para difundir ideologias durante ditadura militar

 

Edson Luís, Ismael Silva de Jesus, Nilda Carvalho Cunha, Helenira Resende, Honestino Guimarães, Ana Kucinski, Vladimir Herzog. Esses são apenas alguns dos estudantes e professores que foram perseguidos e assassinados pela ditadura militar no Brasil, que teve, na educação, um dos principais braços da repressão. Nesse período, entre 1964 e 1985, disciplinas obrigatórias foram criadas com o objetivo de difundir a ideologia do regime e houve uma precarização do ensino e das escolas, com desvalorização salarial dos professores e falta de infraestrutura, além de censura e perseguições a professores e estudantes. O cenário é descrito por especialistas e pesquisadores entrevistados pela Agência Brasil.

Segundo o professor de história da educação básica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) João Victor Oliveira, durante a ditadura, as escolas foram alvo de mudanças substanciais. 

Professor de história da educação básica da UFMG João Victor Oliveira, – Arquivo pessoal

“Isso porque os ditadores vão entender que esse espaço é um lugar não só de uma formação de mão de obra para o mercado de trabalho – uma mão de obra barata. A gente costuma analisar esses currículos como currículos muito tecnicistas, excludentes, voltados a um capitalismo em ascensão, que os militares vão ser responsáveis por colocar em marcha -, mas também como lugar para difusão de ideologias, sobre o bastião da ideia de ordem e de obediência”, diz o professor que leciona, em Belo Horizonte, na escola estadual Juscelino Kubitschek de Oliveira.

Entre as mudanças que ocorreram na educação no período da ditadura estão a inclusão nos currículos das disciplinas Educação Moral e Cívica, no primeiro grau, atual ensino fundamental, Organização Social e Política do Brasil, a chamada OSPB, no segundo grau, atual ensino médio, e Estudos de Problemas Brasileiros, no ensino superior. 

“Eram três disciplinas nas quais se queria sintetizar a educação autoritária, a educação moral, a educação cívica, nesse viés autoritário da escola primária à universidade”, diz o professor da Faculdade de Educação da UFMG Luciano Mendes.

Nessas disciplinas, o conteúdo tinha por objetivo exaltar os portugueses e a escravidão, desconsiderando um processo de colonização que massacrou indígenas e o caráter criminoso da escravidão no Brasil, cujas consequências seguem até os dias atuais. “Por exemplo, para o currículo de história nessas disciplinas, a perspectiva que se tem é de apresentar o protagonismo dos portugueses, de apresentar o processo colonial como um projeto de sucesso, de entender a escravidão sob a ótica econômica e não sob a ótica da desumanização de determinados grupos sociais que foram compulsoriamente escravizados”, explica.

Também havia, de acordo com Mendes, a exclusão de disciplinas consideradas subversivas, como sociologia e filosofia. “Outras tiveram os conteúdos mudados. Foi reforçada a ideia da educação cívica, uma disciplina que foi muito reforçada pelos militares, porque eles compreendiam que as formações cívica e física eram intrínsecas”, diz. 

A educação física, com o objetivo de educar e organizar os corpos, além de organizar celebrações e desfiles referentes à ditadura, foi, segundo Mendes, incentivada.

Os dois especialistas ressaltam que, nesse período, havia também resistência e que muitos docentes utilizaram as disciplinas obrigatórias para sanar as lacunas deixadas pela exclusão de história, filosofia e promover uma educação crítica dentro das salas de aula.

Educação era melhor?

Ainda nos dias de hoje existe uma crença de que as escolas, durante a ditadura, eram melhores, e que de lá para cá o ensino apenas piorou. Dados mostram que isso não é verdade. 

Professora de História da América da Universidade Federal Fluminense (UFF) Samantha Quadrat – Arquivo pessoal

“É uma lenda urbana, não era melhor, porque você não tinha o caráter da educação que é levar aquele estudante a uma reflexão, a uma construção do conhecimento. Você tinha uma universidade excludente, você tinha uma educação também excludente e com conceitos muito tradicionais”, diz a professora de História da América da Universidade Federal Fluminense (UFF) Samantha Quadrat, que é pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi) e que administra o projeto Lugares de Memória. “Viver uma ditadura não é algo bom, não tem nada de positivo numa ditadura, seja ela qual for”, ressalta a professora.

Samantha destaca que é importante considerar os movimentos educacionais que precederam a ditadura. Antes do golpe militar de 1964, o Brasil era presidido por João Goulart e a educação passava por um momento de reformulação, com mais espaço para a educação popular. “É uma ditadura que interrompe projetos importantes para a educação do Brasil”, diz Samantha, lembrando que a educação, à época, era voltada para as elites. As camadas populares não concluíam os estudos ou sequer tinham acesso à escola.

O professor de história da educação básica da UFMG João Victor Oliveira complementa afirmando que a escola era vista como melhor no passado porque era profundamente elitizada. “Estamos falando de quadros que frequentavam a sala de aula, muito mais restritivos e muito menos populares. Então, nesse ponto de vista, uma escola para poucos, evidentemente, é muito mais fácil de organizar. E quanto mais essa classe trabalhadora vai adentrando o espaço da escola, embora a política da ditadura tenha ampliado as vagas, ela não garantiu nenhum tipo de estrutura que desse conta dessa ampliação. Essa piora dos quadros da escola pública, como é lido, está muito associada a essa ideia preconceituosa, excludente, antirrepublicana e antidemocrática de que foram as classes populares que estragaram a escola pública.”

Até 1971, a escola era dividida em educação primária (composta de quatro anos), seguida de um exame de admissão e uma etapa secundária (composta de sete anos: quatro de ginásio e três de colégio). Esse sistema foi reformado pelos militares que criaram o primeiro grau, de oito anos, e o segundo grau, de três, com a Lei 5692/1971. Eles acabaram também com o exame de admissão, para não limitar o acesso às fases seguintes. Para atender a interesses capitalistas de formação de mão de obra, era importante, segundo os pesquisadores, incluir as camadas populares na educação formal. 

Pesquisas mostram, no entanto, que essa inclusão não alterou as repetências nem as taxas de conclusão do ensino. Dados citados no livro O ponto a que chegamos, do jornalista Antônio Gois, mostram que os brasileiros estudavam em média 2,6 anos em 1965 e, em 1985, essa taxa sobre para 3,5 anos de estudo entre a população de 25 anos ou mais. Números inferiores a outros países como Coreia, com 7,8 anos de estudo em 1985; Chile, com 6 anos e México, com 4,1.

A expansão da educação proposta pelos militares não veio acompanhada de mais recursos, o que levou a uma precarização do ensino. Segundo o portal Memórias da Ditadura, criado pelo Instituto Vladimir Herzog, em 1982, quase no final da ditadura, o Brasil aparecia como o país da América Latina com menor percentual de gasto público na educação, com um investimento de apenas 6,5% do Produto Interno Bruto (PIB), de acordo com o Banco Mundial. O Haiti aparecia como penúltimo colocado da lista, logo acima do Brasil, com um investimento de 11,3%.  

Mais tarde,  em 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), vigente até hoje, o primeiro e segundo grau se transformam nos atuais ensinos fundamental e médio.

Heranças da ditadura na educação

Professor da Faculdade de Educação da UFMG Luciano Mendes – Arquivo pessoal

Para Mendes, a ditadura ajudou a consolidar uma escola desinteressante aos estudantes e que não incentiva a participação. “Ela não é escola gostosa, não é uma escola alegre, porque a gente baniu dessa escola muito aquilo que faria a escola também diferente, as artes, a brincadeira, tudo isso, porque é uma escola cada vez mais militarizada. Ter uma escola em que impera o silêncio, em que a discussão, em que o debate não subsiste, não pode estar presente, essas também são heranças fortes da ditadura. Uma escola que tem dificuldade de pulsar no mesmo ritmo dos movimentos sociais, uma escola que, digamos, muitas vezes, se esconde atrás dos muros”, diz.

Outra herança, de acordo com o especialista, é a precarização do ensino e, sobretudo, a precarização do trabalho dos professores.

“Essa é uma característica acentuada pela ditadura, expandida pela ditadura e da qual a gente não se recuperou. O Brasil paga os piores salários dos professores da educação básica, [está entre os] os piores salários do mundo. A carga horária de trabalho dos professores é muito alta. O número de alunos e alunas que as professoras brasileiras têm que lidar cotidianamente é acima da média mundial. Tudo isso torna a vida de professores e professoras muito estafante, e não é por acaso que é uma das profissões onde mais se adoece.”

Já de acordo com Samantha, da UFF, uma das heranças é a tecnicidade do ensino, a busca pela formação de mão de obra barata sem preocupação de estimular a capacidade crítica dos estudantes, para que possam ter autonomia na sociedade. Agora, na avaliação dela, a história se repete com a reforma do ensino médio que  oferece, sobretudo nas escolas públicas, um currículo e um ensino técnico de baixa qualidade. A reforma está sendo discutida no Brasil. Professores e estudantes relataram que, enquanto em escolas particulares estudantes tinham acesso a laboratórios e a um ensino com mais estrutura, em algumas escolas públicas ensinava-se a fazer brigadeiro, como cuidar de pets e como fazer sabonete.

“Através dos cursos técnicos a ideia é de que a universidade não era para todos. Para o estudante da escola pública nem era dado o direito de sonhar com a universidade”, diz a professora. 

Na avaliação de Samantha, o chamado Novo Ensino Médio mantém o ensino para poucos. “É uma reforma excludente, é uma reforma autoritária, é uma reforma que pouco se preocupa com aquele estudante da escola pública, ao contrário, a ideia de que vai ser um estudante trabalhador, ou seja, você ceifa sonhos, você ceifa perspectivas de futuro, você não oferece coisas que você deveria oferecer a todo jovem brasileiro, independentemente da idade, se ele é periférico ou não, se ele é negro, se ele é branco, então você pensa uma outra educação”. 

Outra herança apontada pela especialista é a ascensão de grupos particulares na educação brasileira. Até então, a educação pública era considerada de excelência. Com a falta de investimento na ditadura e a deterioração da escola pública, a escola particular passa a ser enaltecida. Grupos particulares e fundações passam também a atuar  e influenciar a educação, chegando até mesmo a disputar o orçamento público, de acordo com a pesquisadora.  “O que a gente vê hoje é uma disputa por essa educação, o seu orçamento gigante e eu acho que o grande entrave dessa ditadura foi a ascensão dos grupos privados, tanto nas universidades como nas escolas”, diz.

Ditadura na sala de aula

Para que a história não se repita e para que as novas gerações tenham acesso ao que foi de fato a ditadura, o professor de história da UFMG defende que o tema seja trabalhado nas salas de aula. Apesar de já estar previsto no currículo, na prática, esse ensino encontra algumas barreiras. “O que eu tenho observado, seja na minha atuação como professor, seja no meu trabalho como pesquisador, é que, ainda mais num contexto pós-pandêmico, há uma urgência muito grande no espaço escolar, que é a formação para sensibilidades”, diz o professor.

“A cena de tortura parece não comover tanto os estudantes como comovia anos atrás. Os episódios de perseguição, morte, assassinato, parecem não produzir uma consternação desses estudantes, como isso acontecia há alguns anos. De certa forma, o que nós precisamos, tanto quanto ensinar sobre o aparelho repressivo da ditadura, é formar igualmente as sensibilidades dessas juventudes, dessas crianças, que nem sempre têm a oportunidade de estudar esse tema na escola. Em geral, esse é um assunto vinculado ao terceiro ano do ensino médio ou ao nono ano do ensino fundamental. E esse currículo que nós chamamos de história do tempo presente quase não tem tempo de ser trabalhado pelo excesso e pelas prescrições curriculares, especialmente a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) colocada em vigor recentemente”.

Segundo o professor, a internet facilitou o acesso a documentos, mas é importante que o tema seja trabalhado para que os jovens saibam quais documentos são ou não confiáveis. “Nós dizemos que as fontes históricas estão à palma da mão, dos telefones celulares, enfim. Mas é preciso continuar esse letramento, de modo que essas mesmas pessoas consigam ler isso tudo de maneira crítica e ir além para que nunca mais aconteça”, defende o professor.

Jovens e a democracia

Os professores não são os únicos preocupados em levar uma formação crítica às escolas, os estudantes têm se mobilizado em defesa da democracia. Um exemplo é o Movimento Democratizou, criado por estudantes de Aracaju para ampliar a educação política e o protagonismo dos jovens em uma sociedade democrática. O projeto conta com embaixadores nas escolas e em vários estados.

Estudante de ciências sociais Rebeca Sousa é uma das embaixadoras do Democratizou – Rebeca Figueiredo

A estudante de ciências sociais Rebeca Sousa é uma das embaixadoras do Democratizou. Ela conheceu o projeto quando estava no final do ensino médio e logo se identificou. “Para mim, a democracia é a principal forma de a gente conseguir a pluralidade de debates. A democracia é importante porque ela consegue, através da sua pluralidade, da população, que é a base dela, o contato com as pessoas, e a escuta dessas mesmas pessoas. A gente consegue trazer maior representatividade, maior escuta da diversidade”, diz.

Na avaliação da estudante, os jovens, que foram fundamentais na resistência durante a ditadura, também são essenciais nos dias de hoje para manutenção da democracia. 

“Para mim, a juventude ela é a flor da resistência. Muitas vezes eu vejo os adultos nesse lugar de conformismo. De ‘Ah, é isso mesmo, não tem o que fazer’. Eu acho que a juventude traz esse gás, de dizer: ‘não, peraí, isso está muito errado, a gente precisa correndo fazer uma mudança’. Eu acho que o espírito da juventude é essa chama de mudança, de inquietação”, defende.

Escolas foram usadas para difundir ideologias durante ditadura militar

 

Edson Luís, Ismael Silva de Jesus, Nilda Carvalho Cunha, Helenira Resende, Honestino Guimarães, Ana Kucinski, Vladimir Herzog. Esses são apenas alguns dos estudantes e professores que foram perseguidos e assassinados pela ditadura militar no Brasil, que teve, na educação, um dos principais braços da repressão. Nesse período, entre 1964 e 1985, disciplinas obrigatórias foram criadas com o objetivo de difundir a ideologia do regime e houve uma precarização do ensino e das escolas, com desvalorização salarial dos professores e falta de infraestrutura, além de censura e perseguições a professores e estudantes. O cenário é descrito por especialistas e pesquisadores entrevistados pela Agência Brasil.

Segundo o professor de história da educação básica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) João Victor Oliveira, durante a ditadura, as escolas foram alvo de mudanças substanciais. 

Professor de história da educação básica da UFMG João Victor Oliveira, – Arquivo pessoal

“Isso porque os ditadores vão entender que esse espaço é um lugar não só de uma formação de mão de obra para o mercado de trabalho – uma mão de obra barata. A gente costuma analisar esses currículos como currículos muito tecnicistas, excludentes, voltados a um capitalismo em ascensão, que os militares vão ser responsáveis por colocar em marcha -, mas também como lugar para difusão de ideologias, sobre o bastião da ideia de ordem e de obediência”, diz o professor que leciona, em Belo Horizonte, na escola estadual Juscelino Kubitschek de Oliveira.

Entre as mudanças que ocorreram na educação no período da ditadura estão a inclusão nos currículos das disciplinas Educação Moral e Cívica, no primeiro grau, atual ensino fundamental, Organização Social e Política do Brasil, a chamada OSPB, no segundo grau, atual ensino médio, e Estudos de Problemas Brasileiros, no ensino superior. 

“Eram três disciplinas nas quais se queria sintetizar a educação autoritária, a educação moral, a educação cívica, nesse viés autoritário da escola primária à universidade”, diz o professor da Faculdade de Educação da UFMG Luciano Mendes.

Nessas disciplinas, o conteúdo tinha por objetivo exaltar os portugueses e a escravidão, desconsiderando um processo de colonização que massacrou indígenas e o caráter criminoso da escravidão no Brasil, cujas consequências seguem até os dias atuais. “Por exemplo, para o currículo de história nessas disciplinas, a perspectiva que se tem é de apresentar o protagonismo dos portugueses, de apresentar o processo colonial como um projeto de sucesso, de entender a escravidão sob a ótica econômica e não sob a ótica da desumanização de determinados grupos sociais que foram compulsoriamente escravizados”, explica.

Também havia, de acordo com Mendes, a exclusão de disciplinas consideradas subversivas, como sociologia e filosofia. “Outras tiveram os conteúdos mudados. Foi reforçada a ideia da educação cívica, uma disciplina que foi muito reforçada pelos militares, porque eles compreendiam que as formações cívica e física eram intrínsecas”, diz. 

A educação física, com o objetivo de educar e organizar os corpos, além de organizar celebrações e desfiles referentes à ditadura, foi, segundo Mendes, incentivada.

Os dois especialistas ressaltam que, nesse período, havia também resistência e que muitos docentes utilizaram as disciplinas obrigatórias para sanar as lacunas deixadas pela exclusão de história, filosofia e promover uma educação crítica dentro das salas de aula.

Educação era melhor?

Ainda nos dias de hoje existe uma crença de que as escolas, durante a ditadura, eram melhores, e que de lá para cá o ensino apenas piorou. Dados mostram que isso não é verdade. 

Professora de História da América da Universidade Federal Fluminense (UFF) Samantha Quadrat – Arquivo pessoal

“É uma lenda urbana, não era melhor, porque você não tinha o caráter da educação que é levar aquele estudante a uma reflexão, a uma construção do conhecimento. Você tinha uma universidade excludente, você tinha uma educação também excludente e com conceitos muito tradicionais”, diz a professora de História da América da Universidade Federal Fluminense (UFF) Samantha Quadrat, que é pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi) e que administra o projeto Lugares de Memória. “Viver uma ditadura não é algo bom, não tem nada de positivo numa ditadura, seja ela qual for”, ressalta a professora.

Samantha destaca que é importante considerar os movimentos educacionais que precederam a ditadura. Antes do golpe militar de 1964, o Brasil era presidido por João Goulart e a educação passava por um momento de reformulação, com mais espaço para a educação popular. “É uma ditadura que interrompe projetos importantes para a educação do Brasil”, diz Samantha, lembrando que a educação, à época, era voltada para as elites. As camadas populares não concluíam os estudos ou sequer tinham acesso à escola.

O professor de história da educação básica da UFMG João Victor Oliveira complementa afirmando que a escola era vista como melhor no passado porque era profundamente elitizada. “Estamos falando de quadros que frequentavam a sala de aula, muito mais restritivos e muito menos populares. Então, nesse ponto de vista, uma escola para poucos, evidentemente, é muito mais fácil de organizar. E quanto mais essa classe trabalhadora vai adentrando o espaço da escola, embora a política da ditadura tenha ampliado as vagas, ela não garantiu nenhum tipo de estrutura que desse conta dessa ampliação. Essa piora dos quadros da escola pública, como é lido, está muito associada a essa ideia preconceituosa, excludente, antirrepublicana e antidemocrática de que foram as classes populares que estragaram a escola pública.”

Até 1971, a escola era dividida em educação primária (composta de quatro anos), seguida de um exame de admissão e uma etapa secundária (composta de sete anos: quatro de ginásio e três de colégio). Esse sistema foi reformado pelos militares que criaram o primeiro grau, de oito anos, e o segundo grau, de três, com a Lei 5692/1971. Eles acabaram também com o exame de admissão, para não limitar o acesso às fases seguintes. Para atender a interesses capitalistas de formação de mão de obra, era importante, segundo os pesquisadores, incluir as camadas populares na educação formal. 

Pesquisas mostram, no entanto, que essa inclusão não alterou as repetências nem as taxas de conclusão do ensino. Dados citados no livro O ponto a que chegamos, do jornalista Antônio Gois, mostram que os brasileiros estudavam em média 2,6 anos em 1965 e, em 1985, essa taxa sobre para 3,5 anos de estudo entre a população de 25 anos ou mais. Números inferiores a outros países como Coreia, com 7,8 anos de estudo em 1985; Chile, com 6 anos e México, com 4,1.

A expansão da educação proposta pelos militares não veio acompanhada de mais recursos, o que levou a uma precarização do ensino. Segundo o portal Memórias da Ditadura, criado pelo Instituto Vladimir Herzog, em 1982, quase no final da ditadura, o Brasil aparecia como o país da América Latina com menor percentual de gasto público na educação, com um investimento de apenas 6,5% do Produto Interno Bruto (PIB), de acordo com o Banco Mundial. O Haiti aparecia como penúltimo colocado da lista, logo acima do Brasil, com um investimento de 11,3%.  

Mais tarde,  em 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), vigente até hoje, o primeiro e segundo grau se transformam nos atuais ensinos fundamental e médio.

Heranças da ditadura na educação

Professor da Faculdade de Educação da UFMG Luciano Mendes – Arquivo pessoal

Para Mendes, a ditadura ajudou a consolidar uma escola desinteressante aos estudantes e que não incentiva a participação. “Ela não é escola gostosa, não é uma escola alegre, porque a gente baniu dessa escola muito aquilo que faria a escola também diferente, as artes, a brincadeira, tudo isso, porque é uma escola cada vez mais militarizada. Ter uma escola em que impera o silêncio, em que a discussão, em que o debate não subsiste, não pode estar presente, essas também são heranças fortes da ditadura. Uma escola que tem dificuldade de pulsar no mesmo ritmo dos movimentos sociais, uma escola que, digamos, muitas vezes, se esconde atrás dos muros”, diz.

Outra herança, de acordo com o especialista, é a precarização do ensino e, sobretudo, a precarização do trabalho dos professores.

“Essa é uma característica acentuada pela ditadura, expandida pela ditadura e da qual a gente não se recuperou. O Brasil paga os piores salários dos professores da educação básica, [está entre os] os piores salários do mundo. A carga horária de trabalho dos professores é muito alta. O número de alunos e alunas que as professoras brasileiras têm que lidar cotidianamente é acima da média mundial. Tudo isso torna a vida de professores e professoras muito estafante, e não é por acaso que é uma das profissões onde mais se adoece.”

Já de acordo com Samantha, da UFF, uma das heranças é a tecnicidade do ensino, a busca pela formação de mão de obra barata sem preocupação de estimular a capacidade crítica dos estudantes, para que possam ter autonomia na sociedade. Agora, na avaliação dela, a história se repete com a reforma do ensino médio que  oferece, sobretudo nas escolas públicas, um currículo e um ensino técnico de baixa qualidade. A reforma está sendo discutida no Brasil. Professores e estudantes relataram que, enquanto em escolas particulares estudantes tinham acesso a laboratórios e a um ensino com mais estrutura, em algumas escolas públicas ensinava-se a fazer brigadeiro, como cuidar de pets e como fazer sabonete.

“Através dos cursos técnicos a ideia é de que a universidade não era para todos. Para o estudante da escola pública nem era dado o direito de sonhar com a universidade”, diz a professora. 

Na avaliação de Samantha, o chamado Novo Ensino Médio mantém o ensino para poucos. “É uma reforma excludente, é uma reforma autoritária, é uma reforma que pouco se preocupa com aquele estudante da escola pública, ao contrário, a ideia de que vai ser um estudante trabalhador, ou seja, você ceifa sonhos, você ceifa perspectivas de futuro, você não oferece coisas que você deveria oferecer a todo jovem brasileiro, independentemente da idade, se ele é periférico ou não, se ele é negro, se ele é branco, então você pensa uma outra educação”. 

Outra herança apontada pela especialista é a ascensão de grupos particulares na educação brasileira. Até então, a educação pública era considerada de excelência. Com a falta de investimento na ditadura e a deterioração da escola pública, a escola particular passa a ser enaltecida. Grupos particulares e fundações passam também a atuar  e influenciar a educação, chegando até mesmo a disputar o orçamento público, de acordo com a pesquisadora.  “O que a gente vê hoje é uma disputa por essa educação, o seu orçamento gigante e eu acho que o grande entrave dessa ditadura foi a ascensão dos grupos privados, tanto nas universidades como nas escolas”, diz.

Ditadura na sala de aula

Para que a história não se repita e para que as novas gerações tenham acesso ao que foi de fato a ditadura, o professor de história da UFMG defende que o tema seja trabalhado nas salas de aula. Apesar de já estar previsto no currículo, na prática, esse ensino encontra algumas barreiras. “O que eu tenho observado, seja na minha atuação como professor, seja no meu trabalho como pesquisador, é que, ainda mais num contexto pós-pandêmico, há uma urgência muito grande no espaço escolar, que é a formação para sensibilidades”, diz o professor.

“A cena de tortura parece não comover tanto os estudantes como comovia anos atrás. Os episódios de perseguição, morte, assassinato, parecem não produzir uma consternação desses estudantes, como isso acontecia há alguns anos. De certa forma, o que nós precisamos, tanto quanto ensinar sobre o aparelho repressivo da ditadura, é formar igualmente as sensibilidades dessas juventudes, dessas crianças, que nem sempre têm a oportunidade de estudar esse tema na escola. Em geral, esse é um assunto vinculado ao terceiro ano do ensino médio ou ao nono ano do ensino fundamental. E esse currículo que nós chamamos de história do tempo presente quase não tem tempo de ser trabalhado pelo excesso e pelas prescrições curriculares, especialmente a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) colocada em vigor recentemente”.

Segundo o professor, a internet facilitou o acesso a documentos, mas é importante que o tema seja trabalhado para que os jovens saibam quais documentos são ou não confiáveis. “Nós dizemos que as fontes históricas estão à palma da mão, dos telefones celulares, enfim. Mas é preciso continuar esse letramento, de modo que essas mesmas pessoas consigam ler isso tudo de maneira crítica e ir além para que nunca mais aconteça”, defende o professor.

Jovens e a democracia

Os professores não são os únicos preocupados em levar uma formação crítica às escolas, os estudantes têm se mobilizado em defesa da democracia. Um exemplo é o Movimento Democratizou, criado por estudantes de Aracaju para ampliar a educação política e o protagonismo dos jovens em uma sociedade democrática. O projeto conta com embaixadores nas escolas e em vários estados.

Estudante de ciências sociais Rebeca Sousa é uma das embaixadoras do Democratizou – Rebeca Figueiredo

A estudante de ciências sociais Rebeca Sousa é uma das embaixadoras do Democratizou. Ela conheceu o projeto quando estava no final do ensino médio e logo se identificou. “Para mim, a democracia é a principal forma de a gente conseguir a pluralidade de debates. A democracia é importante porque ela consegue, através da sua pluralidade, da população, que é a base dela, o contato com as pessoas, e a escuta dessas mesmas pessoas. A gente consegue trazer maior representatividade, maior escuta da diversidade”, diz.

Na avaliação da estudante, os jovens, que foram fundamentais na resistência durante a ditadura, também são essenciais nos dias de hoje para manutenção da democracia. 

“Para mim, a juventude ela é a flor da resistência. Muitas vezes eu vejo os adultos nesse lugar de conformismo. De ‘Ah, é isso mesmo, não tem o que fazer’. Eu acho que a juventude traz esse gás, de dizer: ‘não, peraí, isso está muito errado, a gente precisa correndo fazer uma mudança’. Eu acho que o espírito da juventude é essa chama de mudança, de inquietação”, defende.

Ditadura militar ou civil-militar? Saiba o que está por trás dos nomes

Se o dia 31 de março de 1964 ficou marcado na história do Brasil pelo golpe militar contra a democracia, a forma de recontar a ditadura que nasce dele é motivo de disputas desde os primeiros momentos de sua consolidação. A escolha de que palavras usar para essa narrativa pode revelar repúdio ao autoritarismo, apontar corresponsáveis pela manutenção do regime ou defender seus crimes contra os direitos humanos. 

Para entender essas escolhas, a Agência Brasil conversou com especialistas sobre o uso de termos-chaves relacionados ao período de exceção, que durou 21 anos. Professores especializados no assunto trataram de conceitos como “ditadura militar”, “ditadura civil-militar”, “golpe”, “revolução”, “presidente” e “ditador”. Os usos dessas palavras dão ênfases a como esse período da história brasileira pode ser interpretado.

Ditadura civil-militar

Uma pesquisa no Google, página de busca mais utilizada no país, revela que o termo “ditadura militar” é mais comum que “ditadura civil-militar”.

O professor titular de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), Daniel Aarão Reis, atribui para si a implementação do termo civil-militar. Essa qualificação da ditadura começou a ser escrita por ele no livro Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade, publicado no ano 2000.

Historiador Daniel Aarão Reis ressalta que os civis tiveram participação decisiva no golpe militar – Arquivo pessoal

Na perspectiva de Aarão Reis, o uso do termo não significa uma proposta para conceituar de outra maneira o regime de exceção. “A ditadura deve ser chamada conceitualmente de ditadura militar porque as corporações militares eram, efetivamente, as que mandavam no país, governavam o país. Então é razoável manter esse nome conceitualmente”, explica.

No entanto, o historiador explica que o uso do civil-militar foi para recuperar uma evidência que estava sendo obscurecida, “a participação ativa, consciente e fundamental dos civis desde a instauração da ditadura, em 1964”.

Ele cita exemplos que deram impulso ao surgimento do regime ditatorial. Um deles foi a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 19 de março de 1964, movimento popular religioso e conservador.

Outro foi o comportamento do então governador mineiro Magalhães Pinto, que criou um governo de unidade nacional e deu ordens para tropas golpistas se movimentarem.

Mais um exemplo é a atuação do então presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, que declarou vago o cargo de presidente da República nas primeiras horas do dia 2 de abril, com o presidente João Goulart ainda em território brasileiro.

“Tem um quadro de participação decisiva de civis no golpe. Pode-se corretamente dizer que o golpe foi civil-militar”, ressalta Aarão Reis.

O professor acrescenta que os civis sempre participaram do regime ao longo da ditadura.

“Quando lancei essa expressão, foi nesse sentido, para chamar a atenção, porque a expressão ditadura militar, a partir de certo momento, passou a ocultar a participação de civis”.

O professor conta que essa participação foi exercida por veículos de imprensa, acadêmicos, e ministros com grande influência, como Delfim Netto, “um czar da economia”. “Foi para desvelar esse ocultamento que foi proposta a questão da ditadura civil-militar”.

Aarão Reis explica que há também a designação ditadura empresarial-militar, usada notadamente por historiadores de orientação marxista, para dar mais ênfase a participação e apoio de empresários.

O professor da UFF não considera o uso adequado, pois, a despeito de o “capitalismo ter dado um salto à frente na ditadura”, a expressão individualiza um grupo e não inclui uma série de outros agrupamentos, como eclesiásticos, líderes políticos e sindicais que deram sustentação ao regime militar.

Comando militar

Autor do livro Passados Presentes: o Golpe de 1964 e a Ditadura Militar, o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que não há dúvida de que o golpe e a ditadura só existiram devido ao apoio de importantes setores sociais, principalmente das classes médias e altas, “embora em certos momentos a ditadura conseguiu empolgar alguns grupos populares”.

Rodrigo Patto não acha necessário o uso do termo civil para indicar que a ditadura teve apoio fora das Forças Armadas- Arquivo pessoal

Ele lista entre os principais apoiadores civis, empresários urbanos e rurais, lideranças religiosas, parlamentares e elites burocráticas, principalmente no Judiciário.

No entanto, o pesquisador não considera necessário usar o adjetivo civil para indicar que a ditadura teve apoio externo à corporação militar.

“Nenhuma ditadura dura mais que um par de anos sem apoio de civis. Além disso, os adjetivos que são utilizados para indicar isso, como empresarial, midiática, civil, burocrática, eclesiástica, geram outros problemas ou inadequações. Principalmente pelo fato de que nem todos civis e demais grupos sociais apoiaram a ditadura de maneira unânime. Assim, a expressão ditadura civil-militar pode levar à ideia de que todos os civis apoiaram, o que não é verdade”, pondera.

Já a expressão ditadura militar, na visão de Sá Motta, é mais apropriada porque as forças armadas apoiaram o regime em bloco, tanto mais depois que os discordantes foram expurgados das fileiras, e as novas gerações de militares “foram socializadas de acordo com os valores da ditadura”.

“Os militares foram a alma e a força dirigente à frente da ditadura, ocuparam os principais postos e definiram quais civis ocupariam as outras funções. Eles governaram de olho nos interesses de outros grupos, principalmente o empresariado, mas as políticas voltadas à industrialização decorriam também do projeto político de fortalecer e legitimar a ditadura”, analisa.

O historiador da UFMG sinaliza, inclusive, que essa hegemonia dos militares é o que distingue o período aberto em 1964 de outros momentos de exceção da história brasileira, como o Estado Novo de Getulio Vargas (1937-1945).

Sá Motta acredita que um efeito colateral do uso do termo civil-militar pode servir ao propósito dos golpistas, quando afirmam que a ruptura não foi golpe e, sim, revolução, porque teria tido muito apoio social.

“Há riscos políticos envolvidos no uso tanto da expressão ditadura militar (apagar o apoio civil) como ditadura civil-militar (exagerar o apoio civil). De toda forma, eu prefiro usar apenas ditadura militar porque é mais preciso e adequado para expressar o que foi o regime político vigente no Brasil entre 1964 e 1985, quando fomos governados por ditadores militares, de triste memória”, contextualiza.

Retirada de culpa

Aarão Reis, da UFF, pontua que outro elemento que justifica o uso da designação civil-militar é evitar que civis que tenham apoiado o regime sejam vistos como responsáveis pelo processo de redemocratização. Ele cita o nome do ex-presidente José Sarney (1985-1990), primeiro civil a suceder a sequência de cinco generais na presidência da República, sem eleição direta.

“José Sarney foi um homem da ditadura o tempo todo, foi um líder do partido Arena [Aliança Renovadora Nacional], criado em 1965 e que deu sustentação à ditadura durante todo o tempo que ela durou. Fazer do José Sarney a inauguração de um novo tempo me parece problemático”, afirma.

“Sarney foi eleito em parâmetros criados pela ditadura, eleição indireta, e foi um homem representativo das elites civis que serviram à ditadura e que, só no finalzinho do processo de transição, é que mudaram de lado”, completa.

Golpe

Na batalha da historiografia do período, outro termo que já foi alvo de controvérsias é revolução, para se referir à ruptura institucional iniciada em 31 de março de 1964. Sá Motta enxerga no uso da palavra revolução uma tentativa de impor uma visão mais simpática ao regime militar.

“Os defensores de 1964 rejeitam o termo ‘golpe’ por implicar sentido negativo, enquanto ‘revolução’ e ‘movimento’ têm conotações mais simpáticas, sugerindo a imagem de que teria sido um período de mudanças positivas”.

Ele observa que há um paradoxo, pelo fato de a palavra revolução ser – em termos históricos – mais comumente utilizada por correntes de esquerda. “Ao ponto de alguns líderes da ditadura afirmarem que 1964 teve perfil mais próximo de uma contrarrevolução”.

“Apesar das polêmicas com a terminologia, a ditadura manteve ‘revolução’ como sua designação oficial, em grande parte por razões de propaganda e de estratégia de legitimação”, explica o professor, lembrando, por exemplo, que o termo é usado no sentido positivo para se referir a fatos históricos ocorridos em 1922 (Levante do Forte de Copacabana) e 1930 (movimento armado liderado pelos estados de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul, que culminou com o fim da Primeira República e o início da Era Vargas).

Nos anos 60, em todo o mundo, a palavra revolução ganhou um grande prestígio, complementa Aarão Reis. Ele atribui essa valorização a feitos como as revoluções Chinesa (1949), Cubana (concluída em 1959) e Argelina (1962).

“Então você tem um quadro de revoluções que tornaram muito popular a palavra. Nesse sentido, os golpistas de 64, que estavam empreendendo um golpe do estado e iriam liderar mais tarde um processo de modernização conservadora, se permitiram se apropriar dessa palavra e batizaram o golpe e a ditadura como uma revolução”.

Ditadores

Os pesquisadores ouvidos pela Agência Brasil identificam que a narrativa sobre o regime militar passa a ideia de que o país teve uma ditadura sem ditadores, em que os generais que ocuparam o Palácio do Planalto eram sempre aludidos como presidentes, em vez de ditadores.

Sá Motta detalha que eles eram presidentes de fato, pois ocupavam a presidência da República e eram reconhecidos como tal. “Mas eram presidentes ditadores, pois chegaram ao poder não devido a eleições populares, mas à escolha da elite militar, que após decidir quem seria o presidente enviava os nomes para serem chancelados por um colégio eleitoral, como determinava a Constituição autoritária de 1967”.

“Eles eram as duas coisas, portanto, presidentes e ditadores, e, naturalmente, preferiam o primeiro título e recusavam o segundo, que tem sentido negativo”, complementa.

Os ocupantes da presidência durante o regime militar foram os generais Humberto de Alencar Castello Branco (1964-1967), Arthur da Costa e Silva (1967-1969), Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974-1979) e João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979-1985).

“Esse tique de chamar os ditadores de presidente é uma expressão do conservadorismo no Brasil e uma expressão também da falta de reflexão da sociedade brasileira sobre a ditadura”, avalia o professor Aarão Reis.

O professor chama atenção também para o “número extraordinário” de logradouros públicos e escolas que conservam nomes dos ditadores. Um exemplo é a Ponte Rio-Niterói, batizada de Presidente Costa e Silva.

O professor da UFF, que diz haver falhas também na rememorização da ditadura do Estado Novo de Vargas, aponta que a não reflexão adequada sobre desvios do passado pode acabar resultando em atalhos para novos erros.

“Você não está imune à repetição dos erros, mas quando você não reflete, é praticamente certo que vai haver uma tendência muito forte a repeti-los”.

Uso de imóveis privados para tortura une civis e militares na ditadura

Uma casa discreta em um bairro residencial, um sítio usado para churrascos em fim de semana e até uma sala do complexo industrial de uma multinacional, lugares com pouco em comum, além de terem sido usados para tortura e execuções. Ao longo dos anos, pesquisadores e ativistas têm lembrado em diversos momentos que a ditadura que comandou o Brasil entre 1964 e 1985 não era apenas militar, mas foi conduzida também por tentáculos civis. Inclusive a violenta repressão contra os opositores teve participação de agentes sem vínculo direto com os quartéis.

Essas conexões ficam claras na existência de diversos pontos onde eram conduzidos interrogatórios e desaparecimentos forçados fora de qualquer estrutura militar ou governamental. Apesar de conhecidos, o caráter completamente não oficial desses imóveis em relação a estruturas públicas deixou poucas evidências para que seja possível saber exatamente quantos eram e o que se passou nesses locais.

“Esses espaços clandestinos possibilitaram uma articulação exatamente para fora das institucionalidades. E isso acho que dava mais margem para organizações paralelas atuarem nesses espaços. Ao mesmo tempo em que também criava laços de participação da sociedade civil nesses processos”, diz a historiadora e pesquisadora do Memorial da Resistência Julia Gumieri.

A existência desses locais surge em diversas investigações feitas sobre os crimes cometidos pela ditadura ao longo dos anos. A Comissão Nacional da Verdade mapeou a existência de centros de tortura em vários estados, como Rio de Janeiro, Pará e Minas Gerais.

Na comissão parlamentar de inquérito (CPI) aberta pela Câmara Municipal de São Paulo em 1990, as investigações passaram por um sítio apontado como local de tortura e execuções em Parelheiros, extremo sul paulistano.

Ossadas de presos políticos no Cemitério Dom Bosco, em Perus, São Paulo – Marcelo Vigneron/Memorial da Resistência

O alvo inicial dos trabalhos da CPI era a vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, em Perus, zona norte paulistana, onde foram ocultados os restos mortais de opositores assassinados pela repressão. Porém, os trabalhos também investigaram a existência da Fazenda 31 de Março, na região de Marsilac, no extremo sul da capital paulista, próximo à divisa com Itanhaém e Embu-Guaçu.

Difícil identificação

Havia a suspeita de que esse teria sido o lugar para onde o dramaturgo e militante Maurício Segall, filho do pintor Lasar Segall, foi levado ao ser sequestrado pelo regime. Ao depor na Câmara Municipal, Segall não reconheceu o local pelas fotos apresentadas pelos vereadores.

“Estou olhando isto aqui e diria que não é a casa onde estive. Por duas razões: a primeira é que, mesmo vendado – isso me lembro perfeitamente – eu desci uma escadinha de onde o carro estava parado para chegar à entrada da casa. Isso me lembro na ida e na volta. Eu ia meio amparado, porque estava vendado. E aqui, me parece pelo menos, não há possibilidade de ter escada, não tem nada”, respondeu ao ver as fotos do local na investigação feita pelos vereadores em 1990, puxando da memória o que havia passado em 1970.

Escritor e ex-preso político Ivan Seixas foi coordenador da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo  – Arquivo Pessoal/Memorial da Resistência

A fazenda era de propriedade do empresário Joaquim Rodrigues Fagundes, que morreu antes de ser ouvido pela CPI. O escritor e ex-preso político Ivan Seixas disse que o filho de um dos militares que frequentavam o sítio contou que o local também servia de ponto de confraternização para os agentes da repressão. “Tinha o filho de um milico, do capitão Enio Pimentel Silveira, que era funcionário da prefeitura. A gente pediu e ele concordou em ir [até a Fazenda 31 de Março], porque ele ia lá para churrascos. O pai dele e o [delegado Sérgio] Fleury faziam churrascos e levavam os filhos”, disse em entrevista à Agência Brasil. Seixas foi coordenador da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo e assessor especial da Comissão Nacional da Verdade.

É provável que Segall não tenha reconhecido o local porque a equipe do delegado Sérgio Fleury o levou para outro sítio, em Arujá, na Grande São Paulo, a norte da capital. Diversos depoimentos relatam que o delegado, um dos mais conhecidos torturadores da ditadura, tinha a sua disposição uma chácara, que nunca teve localização exata identificada.

Durante o tempo que esteve preso nesse sítio, Segall presenciou a morte de Joaquim Ferreira Câmara, conhecido pelo codinome de Toledo, um dos líderes da Ação Libertadora Nacional (ALN). Segundo relato de outro conhecido agente da repressão, Carlos Alberto Augusto, chamado de Carlinhos Metralha, após ser capturado no Rio de Janeiro e ficar em cativeiro em diversos locais, Eduardo Collen Leite, o Bacuri, também teria passado pelo sítio usado por Fleury em Arujá.

“O sítio aparentemente tinha dois quartos, uma sala/cozinha e um banheiro. Os choques elétricos aplicados no pau-de-arara eram gerados num aparelho, acionado por manivela manual”, contou Segall em depoimento à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Também estavam presos no local Viriato Xavier de Mello Filho e Maria de Lourdes Rego Melo.

Durante a tortura, o artista viu um homem, que depois identificou como sendo Joaquim Câmara, com sintomas de um ataque cardíaco. Apesar de ter recebido atendimento médico, o líder da ALN morreu no local, o que fez com que os demais presos fossem levados de volta para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no centro da capital paulista.

Também pertencente ao empresário Joaquim Rodrigues Fagundes, dono da transportadora Rimet e da Fazenda 31 de Março, a chamada Casa da Mooca era utilizada para manter presos durante dias opositores da ditadura. O relatório final da Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo denuncia que o imóvel localizado na Rua Fernando Falcão, no bairro da Mooca, zona leste paulistana, foi colocado a serviço da repressão na década de 1970. Segundo o documento, o local também pode ter sido usado como cativeiro para Bacuri.

Lugares ainda não revelados

Sair vivo de um lugar como esse não era a regra. “Foram poucos sobreviventes desses espaços de modo geral, exatamente porque, como eles não eram parte das estruturas oficiais, o objetivo não era prender. O objetivo era recolher informações, torturar e executar, porque você não pode ter sobreviventes, testemunhas desses espaços não oficiais”, explica Julia Gumieri.

Sem registros e sem testemunhas, é possível, segundo a pesquisadora, que alguns desses locais não tenham sequer sido mencionados nas investigações feitas até agora. “Imaginando o que se perdeu de documentação não localizada e mesmo de falta de sobrevivente que os próprios colegas de militância não souberam, é muito provável que tenha existido muito mais, que seja uma camada ainda pequena que a gente sabe sobre”, acrescenta a historiadora.

 Sítio 31 de Março, onde teriam sido mortos os militantes Sônia Angel Jones e Antônio Carlos Bicalho Lana – Wikipedia

Na Fazenda 31 de Março, teriam sido mortos em 1973 os militantes da ALN Sônia Angel Jones e Antônio Carlos Bicalho Lana. Na CPI de 1990, o ex-deputado Afonso Celso, único sobrevivente conhecido do sítio, contou sobre o que passou lá. Apesar de vendado, ele se lembrava que atravessou uma linha férrea para chegar ao local. “Fui conduzido para um subterrâneo, ou uma sala subterrânea ou coisa assim, porque existiam quatro degraus. Quatro degraus, não, quatro lances de escada, e lá imediatamente me despiram e passaram a me torturar”, relatou aos vereadores.

“Eu provavelmente desmaiei ou qualquer coisa assim, das sevícias de que fui vítima. Depois acordei e vejo que me botaram já num outro tipo de tortura, que não era mais pau-de-arara”, segue a história contada por Celso. “Me puseram no que eles chamavam ‘piscina’, que era uma espécie de poço, de fundo cimentado, mas cheio de lodo. Eu pisava no lodo, e ali eles brincavam de afogamento. Me sufocavam, me afogavam”, disse na ocasião.

Fazenda em Araçariguama, na Rodovia Castelo Branco, usada para tortura e execução de opositores ao regime – Andréia Lago/Memorial da Resistência

Outros lugares só foram conhecidos por revelações dos próprios agentes da repressão, como Marival Chaves Dias do Canto, ex-sargento que atuou no Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Mesmo estando dentro de um dos maiores centros de tortura da ditadura, Chaves negou ter participado desse tipo de violência ou operações de repressão na rua. Fez revelações em diversos depoimentos, tanto a CPI da Vala de Perus, como também a Comissão Nacional da Verdade. Foi o ex-agente da repressão que identificou a Boate Querosene, em Itapevi, e o Sítio em Araçariguama como locais usados para tortura e execução de opositores ao regime.

Em outros casos ainda existem dúvidas e lacunas. Até hoje não se sabe o local onde, em 1978, Robson Luz foi torturado e morto após ser preso acusado de roubar uma caixa de frutas. O processo relativo ao caso, que à época causou indignação e levou à formação do Movimento Negro Unificado, só foi desarquivado em 2022.

Ao analisar a documentação, a pesquisadora Renata Eleutério, do Centro de Pesquisa e Documentação Histórica Guaianás, diz que as informações são de que ele foi preso no 44º Distrito Policial, de Guaianases, zona leste paulistana. Porém, há indícios de que ele foi levado para outro local no período em que esteve sob poder dos policiais. “No processo, em um dos depoimentos, o rapaz indica que ele foi retirado daquela delegacia e levado para outro lugar. E aí depois foi jogado na delegacia, retirado de lá e jogado em qualquer outro canto”, revela a pesquisadora.

Não há clareza, no entanto, do local onde Luz teria recebido pancadas e choques elétricos. Mas existem diversos indícios de que alguns agentes da repressão à oposição política também atuavam na execução de presos por crimes comuns, como no caso da acusação feita contra Luz. “As estruturas e os executores estavam muito em diálogo, eventualmente eram até os mesmos, como o Esquadrão da Morte [grupo de extermínio], que era um grupo de policiais da Polícia Civil vinculados ao Dops [Departamento de Ordem Política e Social]”, exemplifica Julia Gumieri.

Boate Querosene, em Itapevi, foi identificada como local de tortura por um agente da repressão  – Cacalos Garrastazu/Memorial da Resistência

Não foi identificado, porém, até o momento que as casas e sítios usados pela repressão tenham abrigado outras atividades. “Eu não posso afirmar que o Esquadrão da Morte se utilizou de um desses espaços. Mas, se o Fleury é um delegado da polícia que é ativo nos processos de extermínio, tortura, e compõe o Esquadrão da Morte, assim, eventualmente, ele pode usar o mesmo espaço”, pondera a pesquisadora.

Essa rede de imóveis sem nenhuma ligação formal com o Estado é um aprofundamento dos procedimentos ilegais e clandestinos que já aconteciam no DOI-Codi e outras instalações militares. O que só era possível devido às diversas formas de apoio de empresários ao regime, com cessão de espaços, veículos, financiamento direto e até vigilância sobre os próprios empregados. A montadora Volkswagen reconheceu que ajudou a repressão a perseguir os próprios funcionários. O ferramenteiro Lúcio Bellentani contou que foi torturado dentro do complexo industrial em São Bernardo do Campo. A empresa fez um acordo de reparação com o Ministério Público Federal.

Doutrina de guerra

A tortura não era uma novidade para as instituições brasileiras. Na ditadura de Getúlio Vargas, os opositores também eram perseguidos e presos. “Durante os outros períodos, a repressão política era uma repressão feita por órgãos oficiais. Prendia, torturava e soltava”, diz Ivan Seixas. A ditadura instaurada a partir do golpe de 1964, no entanto, incorporou uma visão de guerra contra a própria população, baseada, em grande parte, nas guerras coloniais da França na Indochina (Vietnã) e na Argélia.

“A doutrina da guerra revolucionária, como os franceses chamavam, foi um elemento-chave para preparar a organização e a estruturação dos serviços de informação brasileiros, que foram calcados nos serviços de informações franceses durante a Guerra da Argélia [1954 a 1962]”, diz o pesquisador Rodrigo Nabuco de Araújo, autor do livro Diplomates en Uniforme [Diplomatas de Farda], que trata da atuação dos militares franceses a partir dos serviços de diplomacia no Brasil entre 1956 e 1974.

O nome mais conhecido por trazer as expertises francesas para o Brasil é o general Paul Aussaresses. Antes de morrer, em 2013, o oficial reconheceu ter utilizado a tortura para combater a insurgência argelina. “Ele disse que torturou, que matou, que formou torturadores, e por isso ele acabou perdendo tudo. Ele perdeu a patente de general, perdeu o salário de aposentadoria de general. Foi um golpe muito grande que ele levou depois de ter dito tudo o que disse”, contextualiza Araújo antes de afirmar que Aussaresses não foi o principal responsável por trazer as estratégias francesas para o Brasil.

“Tem um outro que é muito mais insidioso do que o que o Aussaresses que é o Yves Boulnois”, destaca o pesquisador. Chegando ao Brasil em 1969, o coronel francês ajudou, segundo Araújo, na estruturação do DOI-Codi e esteve presente nas operações contra a guerrilha comandada por Carlos Lamarca no Vale do Ribeira. “Ele participou da organização da operação e depois da supervisão, da análise dos dados que foram colhidos durante os interrogatórios, durante as torturas”, detalha Araújo a respeito do papel estratégico de Boulnois.

O coronel chegou ao Brasil em 1969 como adido militar. Em correspondência enviada ao então ministro dos Exércitos da França, Pierre Messmer, Boulnois informava sobre os avanços na estruturação das forças da repressão brasileiras. “Com vários meses de treinamento adequado, cada unidade é, agora, capaz, independente de qual seja a missão específica, de participar de uma operação de guerrilha”, escreveu ao superior em correspondência acessada por Araújo e disponibilizada em seu livro.

 

Hierarquias paralelas

A experiência francesa de enfrentar guerrilhas em um ambiente urbano, como aconteceu na Argélia, influenciou, segundo o pesquisador, na criação da Operação Bandeirante, que reprimiu os grupos armados que lutavam contra a ditadura em São Paulo. “Os militares do 2º Exército em São Paulo se inspiraram amplamente das sessões administrativas especiais, que eram organizações civis e militares na Guerra da Argélia, para estruturar a Operação Bandeirantes e transformar essa experiência da guerra colonial francesa, na Guerra da Argélia, em algo possivelmente utilizável no Brasil”, explica Araújo.

“Se inspirou nessa centralização da informação, que é o caso francês, dessa reunião de civis e militares em um só comando, e da organização das operações, o que eles chamavam de hierarquias paralelas. Quer dizer, que você tinha uma rede de comando, uma hierarquia de comando que vem de cima para baixo, mas você tinha uma hierarquia paralela, uma organização e uma estrutura clandestina”, detalha o pesquisador.

As teorias dos militares franceses surgem também da tentativa de entender a derrota para as forças de libertação das antigas colônias. “Tinha a ver com uma negligência dos militares da dimensão política e psicológica do conflito”, diz a respeito das conclusões dos oficiais o coordenador do Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Acácio Augusto.

O papel da tortura

“Para essa teoria, a sociedade está dividida em três grupos”, explica o professor. Esse pensamento estratégico parte, segundo ele, do princípio de que há uma minoria ativa, que luta contra a dominação colonial, no caso das ex-colônias francesas, ou contra a ditadura, no caso do Brasil. Há os apoiadores dos processos de dominação e há  “uma grande maioria, que eles chamam de neutra e pacífica, e que está à mercê de ser conquistada pela causa revolucionária, que deve ser disputada pelas forças da ordem”.

Por isso, para além do enfrentamento militar, foi feito, de acordo com Augusto, um esforço para evitar que o conjunto da população simpatizasse ou apoiasse os grupos de resistência. Ao mesmo tempo, os grupos de oposição são tratados como inimigos e desumanizados. “A tortura não era um ato de barbárie, não era um excesso do regime, era a própria forma de atuação do regime, inclusive gerida cientificamente. A ideia da tortura era produzir informação”, enfatiza.

O desaparecimento dos torturados, principalmente os que nunca foram registrados em estruturas oficiais do Estado, serve, segundo Araújo, a alguns propósitos. Por um lado, evita a responsabilização e repercussão pública das mortes, enquanto, por outro desestabiliza os opositores do regime.

“É uma forma de você criar uma incerteza muito grande em torno do que aconteceu com essa pessoa e dessa forma de criar uma impunidade em torno das pessoas que cometeram esses crimes”, diz o pesquisador.

O general francês Aussaresses, que ficou conhecido pelos cursos relacionados a tortura que promovia em Manaus, é também, segundo Araújo, protagonista de um evento que ilustra como a violência era instrumentalizada pelos colonialistas. “Ele solicitou o estádio de futebol da cidade. Ele torturou os presos em frente uns dos outros, depois matou todo mundo. Abriu uma vala comum, jogou todos os corpos ali, jogou cal quente em cima, e em cima disso ele jogou concreto armado. Quer dizer que não tem como saber quem está enterrado ali. Todos desapareceram”, conta o historiador sobre os fatos ocorridos na antiga cidade de Philippeville, atual Skikda, na Argélia.

Caminhada em São Paulo homenagea vítimas da ditadura

Os 60 anos do golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil serão lembrados pela Caminhada do Silêncio pelas Vítimas da Violência de Estado, que ocorrerá no domingo (31) na zona sul paulistana.

Esta será a quarta edição do evento em São Paulo que se relaciona com as caminhadas que ocorrem em outros países que passaram por regimes autoritários no mesmo período, como a Argentina e o Uruguai.

“Muito inspirado por essas outras caminhadas que a gente passou a fazer aqui no Brasil também, e esse ano a gente não tem só em São Paulo, mas também no Rio de Janeiro”, disse o coordenador do Instituto Vladmir Herzog, Lucas Barbosa.

Além do instituto, participam da organização do ato o Movimento Vozes do Silêncio, o Núcleo de Preservação da Memória Política e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo.

Trajeto

A caminhada sairá do local onde funcionou o Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), na Rua Tutóia, um dos principais locais responsáveis pela tortura e assassinato dos opositores à ditadura.

A concentração será às 16h e deve reunir pelo menos 10 organizações, como a União Nacional dos Estudantes, a Ordem dos Advogados do Brasil – São Paulo, a Comissão Arns e a Anistia Internacional. Por volta das 18h, o grupo segue em direção ao Monumento em Homenagem aos Mortos e Desaparecidos Políticos, no Parque Ibirapuera.

Na avaliação de Barbosa, a discussão do passado é necessária, para evitar que os crimes contra a humanidade, contra a democracia voltem a se repetir. “Por que aconteceu o 8 de janeiro?”, questiona. “Pela certeza da impunidade. Quando certas figuras das forças armadas, não vou dizer que a totalidade das forças armadas, mas quando certas figuras se permitem, digamos assim, sentar à mesa para discutir um plano golpista de ataque à democracia, é senão a certeza da impunidade, de que nada vai ser feito, de que nada vai acontecer”, compara.

Por entender essa relação é que, segundo Barbosa, a caminhada também faz homenagem às populações periféricas, que seguem sofrendo com a violência policial.

“Não é somente olhar para o passado, mas é entender que o passado reflete diretamente, quando não articulado, quando não encarado da maneira adequada, ele reflete diretamente no presente. Então, acho que vítimas de violência do Estado hoje, por exemplo, como as chacinas, é senão um reflexo de uma polícia truculenta do passado, e que nunca foi responsabilizada até hoje.”

Caminhada em São Paulo homenageia vítimas da ditadura

Os 60 anos do golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil serão lembrados pela Caminhada do Silêncio pelas Vítimas da Violência de Estado, que ocorrerá no domingo (31) na zona sul paulistana.

Esta será a quarta edição do evento em São Paulo que se relaciona com as caminhadas que ocorrem em outros países que passaram por regimes autoritários no mesmo período, como a Argentina e o Uruguai.

“Muito inspirado por essas outras caminhadas que a gente passou a fazer aqui no Brasil também, e esse ano a gente não tem só em São Paulo, mas também no Rio de Janeiro”, disse o coordenador do Instituto Vladmir Herzog, Lucas Barbosa.

Além do instituto, participam da organização do ato o Movimento Vozes do Silêncio, o Núcleo de Preservação da Memória Política e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo.

Trajeto

A caminhada sairá do local onde funcionou o Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), na Rua Tutóia, um dos principais locais responsáveis pela tortura e assassinato dos opositores à ditadura.

A concentração será às 16h e deve reunir pelo menos 10 organizações, como a União Nacional dos Estudantes, a Ordem dos Advogados do Brasil – São Paulo, a Comissão Arns e a Anistia Internacional. Por volta das 18h, o grupo segue em direção ao Monumento em Homenagem aos Mortos e Desaparecidos Políticos, no Parque Ibirapuera.

Na avaliação de Barbosa, a discussão do passado é necessária, para evitar que os crimes contra a humanidade, contra a democracia voltem a se repetir. “Por que aconteceu o 8 de janeiro?”, questiona. “Pela certeza da impunidade. Quando certas figuras das forças armadas, não vou dizer que a totalidade das forças armadas, mas quando certas figuras se permitem, digamos assim, sentar à mesa para discutir um plano golpista de ataque à democracia, é senão a certeza da impunidade, de que nada vai ser feito, de que nada vai acontecer”, compara.

Por entender essa relação é que, segundo Barbosa, a caminhada também faz homenagem às populações periféricas, que seguem sofrendo com a violência policial.

“Não é somente olhar para o passado, mas é entender que o passado reflete diretamente, quando não articulado, quando não encarado da maneira adequada, ele reflete diretamente no presente. Então, acho que vítimas de violência do Estado hoje, por exemplo, como as chacinas, é senão um reflexo de uma polícia truculenta do passado, e que nunca foi responsabilizada até hoje.”

Honestino Guimarães, morto pela ditadura, será homenageado com diploma

Quando as aulas na Universidade de Brasília (UnB) começaram em 1965, o novo aluno Honestino Guimarães, do curso de geologia, se destacava. O rapaz loiro, de 18 anos de idade, de óculos de lentes grossas, olhos verdes e baixinho, chamava atenção por onde passava. Ele, que havia ingressado em primeiro lugar geral de toda a instituição, não era de se gabar. Ficou conhecido por ser carismático e engajado politicamente. Era inconformado com as injustiças e com a extinção de liberdades desde o golpe militar do ano anterior. Se estivesse vivo, Honestino completaria, nesta quinta (28), 77 anos de idade.

Honestino nunca pegou em armas, mas seus protestos foram a “acusação” para que, quase quatro anos depois, fosse preso e expulso da universidade em que um dia sonhou estudar. Faltavam poucas disciplinas (11 créditos) para chegar ao diploma de geólogo. Mas essa história do jovem que morreu em 1973 está prestes a ser reescrita.

Isso porque a universidade pretende reverter a expulsão do estudante e entregar à família o diploma post mortem de Honestino. Isso pode ocorrer no próximo dia 21 de abril (aniversário da UnB e de Brasília). “É um ato de justiça e de reparação. O que aconteceu com Honestino e com tantas pessoas naquela época foi brutal e inominável. A família, amigas e amigos de Honestino não puderam enterrá-lo. É um dever da universidade fazer a sua parte”, afirmou a atual reitora da instituição Márcia Abrahão, que é professora de geologia.

“Fico sempre muito emocionada quando toco nesse assunto, mas ele foi, sem dúvidas, uma fonte de inspiração para todo o meu trabalho em prol dos direitos humanos aqui na universidade”. A reitora explica que há um trâmite interno para confirmação da homenagem póstuma, o que inclui a aprovação pelo conselho do Instituto de Geociências. “Seria incrível fazer essa cerimônia na data do aniversário da UnB”.

“Aluno brilhante”

Entre os requerentes para a homenagem a Honestino, está um amigo dele de longa data, o economista Cláudio Almeida. Ele explica o pedido de homenagem a Honestino teve inspiração após decisão da Universidade de São Paulo (USP) de garantir diplomas honoríficos, no final do ano passado, para Alexandre Vannucchi Leme e Ronaldo Mouth Queiroz, ambos mortos em 1973 pela ditadura militar. Eles foram alunos do Instituto de Geociências (IGc) e militantes do movimento estudantil da USP.

“Honestino sempre foi um aluno brilhante. Quando estava na clandestinidade, os professores aceitavam que ele fizesse prova onde quer que fosse. É uma homenagem muito justa, eu acho que tardia inclusive, mas que é uma forma de reparar danos”, acredita o amigo, colega desde o ensino médio em Brasília. Cláudio Amaral recorda que, embora a luta estudantil tenha se tornado prioridade na rotina, o rendimento no curso de geologia era muito importante para ele. “Ele fez e cursou até o final”.

Quem também defendeu reparação para a imagem do universitário foi a pesquisadora Betty Almeida, biógrafa do líder estudantil, com o livro Paixão de Honestino. “Ele se interessou por política desde o ensino médio. Na universidade, esse interesse se ampliou e se desenvolveu. Ele assumiu uma posição de liderança nas lutas do movimento estudantil, no enfrentamento da ditadura, que na época estava se acirrando”, aponta a pesquisadora.

“Em defesa da universidade”

Ela avalia que Honestino quis tomar uma posição de luta pela defesa da universidade pública e gratuita. “Naquela época, havia os chamados acordos MEC-USAID, que eram acordos para encaminhar a universidade para privatização e tornar o ensino adequado a interesses de mercado e não a interesses de produção de conhecimento e desenvolvimento de pesquisa nacional”.

Para a biógrafa, os atos de memória, verdade, justiça e reparação ajudam a fazer com que a sociedade tenha conhecimento de que existiram essas pessoas. “Que o Brasil viveu uma ditadura sanguinária que perseguiu seus opositores com ferocidade”. Na UnB, além de Honestino, há mais dois desaparecidos, Ieda Delgado e Paulo de Tarso Silva. Segundo recorda Betty Almeida, os então estudantes chegaram a se formar e depois foram assassinados por causa das atividades políticas.

Honestino foi o único entre os desaparecidos da UnB que foi impedido de se formar. “Ele era um bom aluno, responsável e estudioso. Mas as atividades políticas foram colocando ele em evidência”. Um dos protestos foi no primeiro semestre naquele ano contra um professor chamado Roman Blanco, que era identificado com a prática de dedurar estudantes e professores que ele julgasse subversivos.

 “O docente falsificou documentos e aproveitou aquela situação em que a universidade perdeu quase 80% do seu corpo de professores e se incluiu como funcionário à custa de documentos falsos, inclusive”, disse a pesquisadora Betty Almeida.

Os estudantes, liderados por Honestino, queriam que o professor fosse excluído da universidade. Para isso, eles se organizaram e esvaziaram a sala dele de trabalho e também o apartamento onde ele morava no conjunto de prédios que abriga docentes.

“O reitor da época, que era o Caio Benjamin Dias, levou o Roman Blanco para um hotel. E, no dia 26 de setembro de 1968, o Romain Blanco foi demitido da universidade, mas o Honestino foi expulso no mesmo dia”, afirma a biógrafa. O relatório da Comissão Anísio Teixeira Memória e Verdade, que aborda a exclusão do estudante, aponta que teve relação justamente com a ação contra o professor Román Blanco ocorrida meses antes.

Tensão na universidade

Passada a ação que levou à expulsão do professor, Honestino foi preso, no dia 29 de agosto daquele ano, quando a universidade foi invadida por militares que espancaram, prenderam e torturaram estudantes e funcionários. Soldados invadiram até salas de aulas com armas e bombas de gás lacrimogêneo. Na época, o presidente da Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília (FEUB) era o líder estudantil.

Uma das testemunhas do evento, o também estudante de geologia Wilson Pereira ficou assustado, naquela manhã, com as caminhonetes que chegaram e com militares atirando para cima. “Saímos correndo no rumo da Esplanada e eu só voltei três dias depois. Aqueles dias foram de muita tensão. Lembro de militares entrando em nossas salas de aula atrás do Honestino”. Wilson entrou no curso em 1967.

A ação em agosto de 1968 fez com que 300 estudantes ficassem presos na quadra de basquete. “O Honestino era muito visado”, afirma Claudio Almeida, a essa altura, casado e com uma filha. No último encontro, antes do amigo desaparecer, Claudio ouviu de Honestino que, mesmo fora da universidade. manteria a luta. “Ele me disse ‘minha luta é pelo Brasil. E nos demos um grande abraço”.

Sensibilização

Para a família de Honestino, é motivo de felicidade a decisão da UnB de realizar a homenagem. “Alegraria muito o Honestino também. Ele mobilizava os estudantes e fazia toda a agitação em prol da democracia, da liberdade, dos direitos humanos, enquanto estudava muito outras coisas como economia mundial e política. Ele realmente era um ser muito engajado com os estudos”.

A família pretende aproveitar a ocasião de homenagens e quer preparar uma premiação para os estudantes de geologia conhecerem a história do líder estudantil e expressarem por que Honestino teria escolhido geologia como curso, como explica o sobrinho dele, Mateus Guimarães, que também pesquisa o legado do tio.

“Ele era um estudante inspirador, que lia jornal todos os dias e devorava os livros. Boa parte daquilo que motivou o Honestino a se insurgir contra a ditadura, e a se tornar o líder, foi justamente a defesa do projeto da Universidade de Brasília”, afirma o sobrinho. Honestino, segundo aponta Mateus, defendia a universidade utópica, genuinamente brasileira, voltada para os problemas dos povos oprimidos ao redor do mundo. Com a homenagem, Honestino deve voltar aplaudido mais de 50 anos depois de ameaças, violências, prisões, morte e silêncios.

Onze argentinos condenados à prisão perpétua por abusos na era da ditadura

27 de março de 2024

 

Os juízes que supervisionam um julgamento de alto nível sobre direitos humanos na Argentina condenaram 11 ex-funcionários por crimes contra a humanidade na terça-feira, no primeiro caso que se concentra na prática negligenciada da ex-ditadura militar de cometer violência sexual contra mulheres transexuais.

O julgamento no tribunal de La Plata, um subúrbio ao sul da capital, durou quase quatro anos e acrescentou novos detalhes e insights às atrocidades anteriormente narradas, aprofundando a compreensão da nação sobre a sua história traumática. Os demandantes transgêneros prestaram depoimento pela primeira vez em uma série de audiências arrepiantes que destacaram tanto o sofrimento da comunidade transgênero quanto a tática generalizada de violência sexual sob a ditadura de direita que governou a Argentina de 1976 a 1983.

Grupos de direitos humanos estimam que 30 mil pessoas suspeitas de se oporem ao governo militar foram raptadas, sistematicamente torturadas em centros de detenção clandestinos e “desapareceram” durante esse período.

No tão aguardado veredicto, 10 arguidos foram condenados à prisão perpétua e de um a 25 anos de prisão pelos seus papéis num esquema de repressão violenta que incluía assassinatos, tortura, violência sexual e rapto de crianças nascidas em cativeiro, entre outras alegadas crimes ocorridos em quatro centros de detenção clandestinos na província de Buenos Aires. Os juízes absolveram um ex-funcionário.

“O que há de diferente neste julgamento é que, pela primeira vez na Argentina e no mundo, são condenados crimes contra a humanidade cometidos contra mulheres trans no contexto do terrorismo de Estado”, disse a promotora Ana Oberlín à Associated Press. “Foi um bom veredicto, estamos mais do que satisfeitos.”

A ditadura militar promoveu os valores católicos tradicionais e via os argentinos LGBTQ como subversivos na sociedade heterossexual. Até mesmo ser abertamente gay pode levar à prisão.

O julgamento de terça-feira envolveu 600 vítimas e depoimentos de centenas de testemunhas que desenterraram relatos de abuso sexual contra mulheres transexuais, bem como casos de soldados que roubaram bebés às suas mães detidas antes de os entregarem para adopção a membros da ditadura e aos seus leais. Um ex-médico da polícia que supervisionava os nascimentos de mulheres em cativeiro estava entre os que foram condenados à prisão perpétua.

Centenas de homens e mulheres na Argentina cresceram com identidades falsas, alheios às suas verdadeiras origens como filhos dos “desaparecidos”.

Oito dos demandantes relataram ter sido estuprados e torturados em um dos maiores centros de detenção clandestinos da Argentina, conhecido como Banfield Pit.

Os gritos de “Genocida, genocida!” irrompeu na sala do tribunal lotada de sobreviventes e parentes das vítimas. Depois que o veredicto foi lido, eles choraram e se abraçaram. Muitos exibiam retratos de seus entes queridos desaparecidos e cartazes com os slogans: “São 30 mil” e “Foi um genocídio”.

O veredicto surge no momento em que o presidente de extrema-direita, Javier Milei, e a sua vice-presidente, Victoria Villarruel, desafiaram o cálculo legal dos abusos dos direitos humanos cometidos durante a ditadura, um esforço que foi defendido pelos seus antecessores de esquerda. As organizações argentinas de direitos humanos levantaram especial preocupação sobre os laços familiares de Villarruel com os militares e o ativismo pelas vítimas de crimes cometidos por guerrilheiros de esquerda no início dos anos 1970. As vítimas da ditadura consideram que essa defesa justifica implicitamente a repressão estatal que se seguiu.

Villaruel e Milei lançaram publicamente dúvidas sobre o número de 30 mil desaparecidos, apontando para uma comissão independente que conseguiu identificar apenas 8.960.

A maior parte dos arguidos no julgamento de terça-feira já foram condenados noutros casos e transferidos para prisão domiciliária devido à idade e à deterioração do estado de saúde. Eles sintonizaram a audiência por videochamada. O tribunal ordenou que os réus em prisão domiciliar fossem submetidos a novos exames médicos para determinar se poderiam voltar à prisão.

Desde que o governo argentino revogou, em 2004, as leis de amnistia que protegiam antigos soldados, os tribunais do país proferiram 321 sentenças por crimes contra a humanidade e condenaram 1.176 pessoas. O esforço histórico para responsabilizar os líderes militares por abusos passados ​​continua, com mais de uma dúzia de julgamentos ainda em curso no país.

 

Exposição mostra os impactos das grandes obras durante a ditadura

A exposição Paisagem e Poder: construções do Brasil na ditadura, aberta na noite de terça-feira (19), no histórico Centro MariAntonia da Universidade de São Paulo (USP), procura refletir sobre as transformações ocorridas no Brasil nos anos da ditadura civil-militar. Com uma vasta documentação de época e material audiovisual, exposição mostra as contradições das grandes obras no período e seus impactos sociais e ambientais. A curadoria é dos arquitetos Paula Dedecca, Victor Próspero, João Fiammenghi, Magaly Pulhez e José Lira. Mostra fica em cartaz até o dia 30 de junho.

Nos 21 anos de ditadura civil-militar, o Brasil se transformou profundamente com a construção de conjuntos residenciais, estradas, barragens, viadutos, grandes hidrelétricas e avenidas. Mas foi também nesse período que os recursos naturais foram amplamente explorados, prédios e lugares históricos foram removidos ou destruídos, e em que as desigualdades sociais foram expandidas.

Em entrevista à Agência Brasil, o curador Victor Próspero, que acabou de defender seu doutorado na Faculdade de Arquitetura da USP, explica que essas obras, embora tenham sido projeto de desenvolvimento do país, guardam uma face contraditória, porque também retratam uma modernização conservadora e autoritária. 

Exposição Paisagem e Poder: construções do Brasil na ditadura, no Centro Maria Antonia da Universidade de São Paulo – Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

“Essa modernização conservadora foi diretamente ligada com a repressão. Não existe milagre econômico sem o rebaixamento dos salários e sem a intervenção dos sindicatos. Várias reformas estruturais deixaram os trabalhadores um pouco mais controlados, como a repressão e a lei de greves, por exemplo, que viabilizaram uma certa forma de modernização sem freios, sem oposição”, disse.

“Esse milagre [econômico] é baseado em números, como em um crescimento do PIB [Produto Interno Bruto, a soma de riquezas do país] sempre acima de 11%, por exemplo, mas que, na verdade, pressupõe um congelamento do salário mínimo e o controle dos sindicatos e da oposição. É um tipo de desenvolvimento econômico sem rebatimento no desenvolvimento social. É claro que tem um aumento do emprego, mas geralmente esse emprego está relacionado à exploração da mão de obra na construção civil”, avalia Próspero.

Um dos exemplos dessa contradição do período, segundo o curador, é a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Duas fotos apresentadas na exposição, colocadas lado a lado, ilustram essa contradição. Uma foto mostra a população visitando a usina durante a sua inauguração e a outra apresenta a usina vista de longe, em construção. “Essa representação do momento de inauguração mostra como essas grandes obras eram uma peça de propaganda importante para a ditadura. Já a outra imagem mostra Itaipu em obras e o grau de violência de transformação do espaço daquela paisagem. Ao lado dessa imagem, colocamos uma reportagem que destaca o Salto das Sete Quedas, que era um ponto turístico, uma paisagem reconhecida, e que dava certa identidade para a população daquela região, e que foi inundada para fazer a represa”.

Eixos

A exposição conta com diversos registros audiovisuais da época, como reportagens, fotografias, filmes, desenhos e diapositivos, além de documentos e cadernos técnicos. Também mostra que críticas já existiam naquele período, apresentando livros que contestavam o desenvolvimento exploratório e não igualitário desse modelo desenvolvimentista.

Todos esses registros foram agrupados em cinco eixos principais. O primeiro trata sobre a urbanização e o planejamento do território. Esse núcleo mostra que o incentivo ao desenvolvimento nos chamados “vazios demográficos”, com a criação da Rodovia Transamazônica e do Banco da Amazônia, por exemplo, também teve uma outra face, marcada pela violência e assimilação dos povos originários e pela devastação ambiental.

“Muitas populações originárias foram removidas e seus modos de vida foram transformados. Foi um tipo de produção do espaço muito violenta”, destacou o curador João Fiammenghi. 

“Essa exploração da Amazônia teve desenho, teve projeto e teve pesquisa. Ou seja, não foi uma destruição caótica, como a gente pensa. Era tudo parte de um plano, de um projeto de país, de uma ideologia do regime militar, de segurança nacional e de ocupação dos vazios demográficos, que não eram vazios, tinham pessoas, tinham pequenos agricultores e indígenas vivendo lá. Quisemos mostrar nesse eixo como que essa produção do espaço violenta foi muito planejada”, explicou.

O segundo núcleo trata sobre o extrativismo e sua relação com a produção de componentes para a indústria da construção civil. “E, com isso, a gente não pode deixar de falar do trabalho, da industrialização e do sindicalismo. Então, esse é um núcleo mais ligado com trabalho e produção”, destaca Fiammenghi. 

Em relação à questão trabalhista, por exemplo, a exposição destaca que o projeto desenvolvimentista da ditadura envolveu um alto número de acidentes e mortes trabalhistas.

O terceiro eixo, por sua vez, destaca o território e a integração nacional, tratando sobre a circulação entre as cidades, onde são apresentadas as rodovias, as grandes avenidas e as obras de construção de metrô. Há também um eixo todo dedicado à construção da cidade de São Paulo, que apresenta obras como o Minhocão e o Anhembi.

O último núcleo discute a questão da moradia e conta um pouco sobre a verticalização dos espaços urbanos e a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH). “Quando a gente adentra os anos 60 e, sobretudo, após o golpe civil-militar, a gente tem o desenho e a promoção de um grande plano habitacional naquele momento, que está ligado à implementação de um Sistema Financeiro de Habitação e ao Banco Nacional de Habitação. O banco se estrutura justamente nessa perspectiva de enfrentamento do déficit habitacional, mas com um discurso, já desde então, ligado a essa espécie de controle das massas e das populações moradoras desses territórios”, explicou a arquiteta, urbanista e também curadora da mostra Magaly Pulhez.

Criado com a proposta de reduzir o déficit habitacional, o BNH acaba, no entanto, se transformando em um “motor de arranque” da economia. “Fomentando a construção habitacional, fomenta-se a construção civil e, portanto, se agencia uma série de agentes privados, empresas, construtoras e incorporadoras. E o que a gente vai ver, a partir dessa movimentação toda, não é propriamente uma produção habitacional voltada para as massas populares necessitadas de fato, mas o banco funcionando nessa cadeia produtiva da construção civil”, disse Magaly Pulhez. 

“Apenas 15% da produção do banco nesse período foi voltada para atendimento das populações de baixa renda”, destacou.

A exposição também mostra outro grande paradoxo do período. O trabalhador responsável pela construção dessas grandes obras desenvolvimentistas era o mesmo que, aos finais de semana, precisava construir a sua moradia, quase sempre sem recursos suficientes. “Os trabalhadores que estão na própria indústria da construção civil construindo essas grandes obras não têm casa”, ressalta Magaly.

Centro

No ano passado, o Centro MariAntonia, espaço importante de luta e de resistência contra a ditadura brasileira, completou 30 anos.

O espaço é conhecido, principalmente, por ter sido palco, em outubro de 1968, de uma das mais importantes batalhas pela democracia na ditadura militar. Esse episódio ficou conhecido como a Batalha da Maria Antonia e envolveu estudantes de posições ideológicas opostas – os estudantes da USP e os estudantes do Mackenzie – e a polícia.

Nessa batalha, o prédio foi parcialmente incendiado e, em seguida, tomado pelo governo de São Paulo. Somente em 1993, a USP recebeu o prédio de volta e decidiu criar no local um espaço cultural, com exposições regulares e dedicadas à memória e à arte.

“Neste ano, nós achamos que seria muito bom olhar para esse período da ditadura pelo ângulo da arquitetura, do urbanismo, do planejamento, da geografia e do meio ambiente, ou seja, da paisagem e do espaço físico brasileiro”, explica José Lira, professor e diretor do Centro Maria Antônia.

“A exposição é principalmente uma mostra documental. Durante a seleção desses documentos, nós procuramos focalizar questões que são muito presentes no nosso território ainda hoje, como a questão do desrespeito às populações tradicionais e a questão envolvendo a exploração do meio ambiente. Hoje, o mundo inteiro está sensibilizado pelas questões da crise ambiental e climática. E nós vemos que, naquele momento [da ditadura], essa era uma das coisas menos observadas. A natureza era pensada como fonte inesgotável de riquezas e de recursos e explorada como se fosse substituível. Hoje a gente vê que é bem o contrário. Se a gente não construir de maneira a permitir que a natureza se reconstrua ou se conserve, a gente não tem futuro”, disse o diretor do centro à Agência Brasil.

Sua expectativa é de que a mostra possa enriquecer o debate sobre a ditadura e sobre o modelo de construção do país. “Nós esperamos que a exposição possa ser vista por esse cidadão comum, esse habitante do Brasil, principalmente interessado no seu espaço, interessado no ambiente em que ele vive, interessado nas suas cidades, no seu bairro, na sua qualidade de vida, nas suas liberdades, nos seus espaços públicos, para que nesse ano de 60 anos do golpe possa ajudar na autoanálise do país”.

Programação

Paralelo à exposição, o centro preparou uma programação gratuita e aberta ao público, com mesas de debates e exibições de filmes. 

Outras informações sobre a exposição e a programação paralela podem ser obtidas no site do Centro MariAntonia.