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Frei Betto: segmento dos indígenas foi o mais atingido pela ditadura

Ao todo, são 79 livros editados no Brasil. Um deles, foi selecionado através de votação popular para guiar uma mesa de conversa: Tom Vermelho do Verde. Na quarta-feira (11), as palavras do frade dominicano, jornalista e escritor Frei Betto mobilizaram as atenções na última edição de 2024 do Clube de Leitura, evento realizado pelo Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) no Rio de Janeiro. Embora seja um romance, a história narrada na obra escolhida tem como pano de fundo o drama vivido pelos indígenas waimiri atroari durante a ditadura militar.

Lançado em 2022, Tom Vermelho do Verde aborda acontecimentos da década de 1970 que Frei Betto só tomou conhecimento décadas mais tarde. Embora engajado na luta contra a ditadura, mal sabia ele na época dos horrores que a Floresta Amazônica testemunhava. Em entrevista à Agência Brasil, ele diz que hoje considera que os indígenas foram os mais atingidos pela violência empreendida ao longo do governo militar.

Realizado sempre na segunda e quarta-feira de cada mês, o Clube de Leitura tem entrada gratuita, mediante retirada prévia de ingresso na bilheteria. De acordo com Suzana Vargas, mediadora e curadora da iniciativa, o convite aceito por Frei Betto para o último encontro do ano deu ao público a oportunidade de “refletir como a literatura é capaz de elevar a outro patamar nossa consciência existencial e cidadã, muitas vezes ocupada por preocupações puramente materiais”.

Clube do Livro do CCBB-RJ com Frei Betto. Foto:  Alexandre Brum/Clube do Livro CCBB-RJ

Na entrevista concedida à Agência Brasil antes do encontro, Frei Betto transita por múltiplos temas. Conta detalhes sobre Tom Vermelho do Verde e provoca reflexões sobre o período militar e sobre os desafios no mundo atual. Compartilha ainda informações sobre o trabalho que desenvolve em Cuba, voltado para a promoção da soberania alimentar, e chama atenção para a presença da religiosidade na vida das pessoas.

Agência Brasil: Tom Vermelho do Verde é um romance que aborda questões indígenas e ao mesmo tempo faz uma denúncia da violência empregada pela ditadura militar. De onde surgiu a inspiração para esse livro?

Frei Betto: Há mais de 10 anos, eu li um livro sobre uma expedição “pacificadora” – entre aspas – de indígenas que foi massacrada na Amazônia. Por absoluta incompetência, as pessoas que se envolveram nessa expedição foram à área dos waimiri atroari. E era um padre que dirigia essa expedição. Um padre sem nenhuma experiência, apenas já tinha tido contato com os yanomami que são mais ou menos vizinhos dos waimiri atroari. Eu fiquei muito impressionado com o relato.

A ideia de uma ficção me bate e fica remoendo. Quando vem uma inspiração que me morde por dentro, eu me sinto grávido desse romance. E assim foi: durante 10 anos, eu pesquisei muito sobre os waimiri atroari e depois, em algum momento, resolvi colocar no papel baseado naqueles fatos reais, mas mudando completamente vários aspectos da história. Por exemplo, a figura do padre não aparece no romance. Aparece um sertanista vinculado a Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas].

Agência Brasil: E por que exatamente esse relato te impressionou?

Frei Betto: Eu pensava que o segmento mais atingido pela ditadura militar havia sido o pessoal que integrou a resistência armada, o movimento estudantil, o movimento sindical ou mesmo os grupos e partidos clandestinos. Mas não foi nada disso. O segmento mais atingido foram os povos indígenas. Principalmente na abertura de duas rodovias.

Uma é a Transamazônica, que liga a Paraíba ao Peru. A outra é a BR-174, entre Manaus a Boa Vista, que é menos conhecida e que é a que eu descrevo no romance. Para abrir essa rodovia, a ditadura massacrou mais de 2 mil waimiri atroari com incêndio nas palhoças, com napalm, helicópteros como metralhadora e vários outros recursos. Colocavam o fogo nas choças dos indígenas com as famílias todas lá dentro, inclusiva com crianças. Então eu quis primeiro descrever o mundo amazônico. O romance trabalha muito a questão da linguagem indígena. E ao mesmo tempo resgatar a memória do povo waimiri atroari.

Agência Brasil: Dentre suas diversas obras, Tom Vermelho do Verde foi o livro escolhido pelo público para ser o tema do Clube de Leitura do CCBB. A que você atribui esse interesse?

Frei Betto: Confesso que me surpreendeu um pouco. Geralmente quando há esse processo de escolha mediante votação do público leitor, os preferidos costumam ser Cartas da Prisão, Batismo de Sangue ou até o meu romance mais conhecido que é o Hotel Brasil. Eu acho que o fato do tema indígena estar na pauta atualmente pode ter suscitado o interesse. E a ligação com a questão da ditadura talvez tenha pesado. Além disso, o romance está entre os 10 finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura, que é atualmente o mais importante do Brasil. Então pode ser que isso também tenha influído.

Agência Brasil: O debate em torno da ditadura militar está sendo mais revisitado diante dos desdobramentos da tentativa de golpe ocorrida no ano passado? Como você, que integrou a resistência na década de 1970, vê o cenário hoje?

Frei Betto: O Brasil cometeu um erro histórico muito grave que foi não apurar os crimes da ditadura militar. Ao contrário, países como a Argentina, o Chile e o Uruguai levaram os criminosos aos tribunais. Inclusive generais. Na Argentina, alguns foram condenados à prisão perpétua.

Já o Brasil criou uma aberração jurídica que foi a anistia recíproca. E como é que você pode anistiar alguém que sequer foi denunciado, investigado, julgado e condenado? Isso não existe. O resultado é que ficou esse resquício nas nossas academias militares, onde o golpe de 1964, que foi uma violação grave da Constituição brasileira e da democracia, é glorificado como revolução, como avanço. E aqueles torturadores e assassinos são considerados heróis.

Não me surpreende a tentativa de golpe no 8 de janeiro de 2023. Nem essa trama recém-descoberta de que se pretendia assassinar o presidente Lula, o vice Alckmin e o juiz Alexandre de Moraes e criar campos de concentrações para recolher os opositores do governo. Isso é consequência dessa falha grave de não haver uma punição rigorosa. Não se separou o joio do trigo. Então esse resquício, como brasa debaixo do lixo, continua aquecido e de repente pode virar fogo.

Enquanto não houver uma revisão rigorosa, nós vamos estar sempre ameaçados por esse setor militar fundamentalista, que é bastante representativo. Embora os comandantes da Aeronáutica e do Exército tenham se negado a participar do golpe, a Marinha aceitou. E mesmo na Aeronáutica e no Exército, a recusa foi dos comandantes, não propriamente da tropa. Tanto que nós estamos vendo aí vários oficiais presos e outros denunciados. É uma situação que coloca um entrave para nossa democracia.

Agência Brasil: A orientação do presidente Lula para que os órgãos da administração direta não realizassem eventos que lembrassem os 60 anos do golpe reitera esse erro?

Frei Betto: Seguramente. Deve-se resgatar a memória do golpe. Felizmente isso não foi suficientemente acatado pelo correligionários do presidente. O próprio Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, de onde ele veio, fez um ato. Se não se manter viva essa memória, tudo tende a se repetir.

Agência Brasil: Um tema que sempre mobilizou a sua militância é a questão da fome. Temos visto neste ano uma mobilização muito intensa do governo brasileiro para articular um programa de combate à fome de amplitude mundial. E aí foi lançado no Rio de Janeiro, durante a Cúpula dos Líderes do G20, a  Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza . Como você tem visto essa mobilização? Você acha que ela é promissora?

Frei Betto: Talvez um dos sintomas do caráter perverso do capitalismo seja existir pessoas com fome, em um planeta que é habitado por 8 bilhões de pessoas e que tem uma produção alimentícia capaz de alimentar 12 bilhões de bocas. Não há falta de alimentos, há falta de Justiça. Temos quase 1 bilhão de pessoas que vivem em situação de desnutrição, fome, etc. É um absurdo isso. Mostra como o sistema é cruel e perverso.

Infelizmente, essas mobilizações são periodicamente refeitas e atualizadas, mas não levam a nada. É um escândalo ver como os países que assinam esses tratados, na hora de abrir o bolso, não contribuem como deveriam. Enquanto isso, gastam mais de 2 trilhões de dólares por ano com armamentos. Quando se trata da morte, não falta dinheiro. Quando se trata da vida, falta. É a perversidade do sistema capitalista. Não há futuro positivo para a humanidade enquanto esse sistema perdurar.

No mundo de hoje, o capital tem supremacia sobre os direitos humanos. Há que fazer essa inversão: os direitos humanos têm que estar acima dos interesses do capital. A situação é grave, mas podemos dizer que o governo Lula tem feito muito no sentido de combater a fome. Isso não é por acaso. O Lula é único chefe de Estado progressista que veio da miséria. Todos os outros, inclusive líderes da história do socialismo, como Lenin, Ho Chi Minh, Mao Tsé-Tung, Fidel, vieram da classe média. O Lech Walesa, na Polônia, também veio da classe trabalhadora, mas não da pobreza.

Agência Brasil: Essa origem estaria relacionada com uma maior sensibilidade?

Frei Betto: O Lula foi retirante. A mãe dele viu quatro filhos morrerem de fome. Pegou os outros oito filhos e saiu de Garanhuns no pau de arara para para buscar um futuro melhor em São Paulo. Então isso o toca. No seu primeiro mandato, ele conseguiu tirar o Brasil do mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU), com o programa Fome Zero, que depois foi transformado em Bolsa Família. No governo Temer, o Brasil voltou ao mapa da fome. Ainda continua. Mas os dados do IBGE tem mostrado, nesse novo governo Lula, há uma redução significativa do número de pessoas na extrema pobreza.

O problema é que a elite brasileira não tem absolutamente nenhuma sensibilidade para questão social. Ela naturaliza a desigualdade e não apoia nenhuma política eficaz no sentido de combater as causas estruturais. Alguns até apoiam iniciativas solidárias, mas não se interessam em saber a raiz do problema. Por que que existe gente sem alimento?

Eu me lembro quando a União das Nações Indígenas, a UNI, tinha sua sede nacional em São Paulo, em uma sala no nosso convento. E me lembro de uma reunião onde alguns indígenas foram à São Paulo pela primeira vez. Eles ficaram chocados porque não entendiam como havia gente com fome pedindo esmola na porta de um supermercado. Na cabeça deles, era um nó. O alimento, para um grupo tribalizado, não tem valor de troca. Ele só tem valor de uso. E o capitalismo e a sociedade que nós vivemos transformou o alimento em valor de troca. Ou seja, quem não paga não come.

Na proposta dos países socialista, alimentação é um dever do Estado e um direito do cidadão. Principalmente em Cuba, onde atualmente trabalho junto à FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura] na questão de soberania alimentar. Os três principais direitos humanos são assegurados a toda à população cubana: alimentação, saúde e educação. Isso deveria ser universal, mas infelizmente não é.

Agência Brasil: Você sempre se dedicou muito a compreender a trajetória de Cuba. O país vem atualmente enfrentando dificuldades para assegurar o fornecimento de energia à população. Passados oito anos da morte de Fidel Castro, a situação hoje é mais complicada?

Frei Betto: Desde que caiu o muro de Berlim, Cuba enfrenta sucessivamente inúmeras dificuldades por várias razões. Primeiro por ser uma ilha com poucos recursos. Cuba não tem nenhum rio e toda energia cubana é movida a petróleo. Acontece que Cuba não produz nenhum barril de petróleo. Então isso tudo tem que ser importado. Talvez hoje a gente possa dizer que houve erros, como a aposta na monocultura de cana. Cuba chegou a ter a maior produção mundial de açúcar. Mas o fato é que hoje Cuba importa 80% dos alimentos que consomem. E isso é um absurdo.

Esse projeto no qual estou envolvido – o Plano de Soberania Alimentar e Educação Nutricional – tem como objetivo substituir as importações de maneira que o cubano produza os seus próprios alimentos. Não é fácil porque nós temos vícios alimentares. Por exemplo, o cubano não pode passar um dia sem pão. Mas o pão é feito de trigo e Cuba não produz um pé de trigo. Acontece que Cuba produz milho e mandioca, mas o cubano não tem nenhum hábito de comer pães de milho e de mandioca. Isso demanda um trabalho de gerações. Tem que começar dentro da infância porque é muito difícil mudar hábitos alimentares de adultos.

Também é preciso dizer que Cuba sofre um bloqueio genocida. Não tem outra palavra porque são 64 anos de sabotagem permanente à economia cubana. De longe, a gente muitas vezes não tem ideia do que significa o bloqueio. Hoje Cuba tem relações comerciais com inúmeros países, mas não tem crédito porque não tem saldo para pagar as dívidas que contraiu. E lida com o problema do fornecimento do petróleo para energia, que está relacionado com os apagões. Os três maiores fornecedores de petróleo para Cuba já não podem continuar fornecendo no volume que faziam antes. A Venezuela está numa crise econômica. O Irã está em guerra e a Rússia também.

Agência Brasil: É possível acreditar em dias melhores para os moradores da ilha?

Frei Betto: É muito difícil encontrar saídas estruturais. Se você me perguntar qual é o futuro de Cuba, eu não sei responder. Mas eu fico impressionado com a resiliência daquele povo. É uma resistência heroica: contrariou todos os prognósticos de que o socialismo lá acabaria pelo efeito dominó depois da queda do muro de Berlim. Embora muitos cubanos saiam de Cuba, não o fazem por razões políticas e ideológicas e sim por razões econômicas. Muito jovens buscam uma oportunidade melhor de trabalho já que o país está literalmente quebrado.

Haveria uma saída se a China fizesse com Cuba o que a União Soviética fazia. Os soviéticos praticamente incorporaram Cuba como mais um de seus Estados membros. A questão é que a China não foi cristianizada. Isso é uma tese amadora minha de que só países que foram cristianizados são solidários.

A Rússia foi e, por isso, é solidária. Mas a China não foi. O substrato cultural do povo chinês são duas tradições muito individualistas: o confucionismo e o budismo. São tradições espirituais de aprimoramento pessoal, não propriamente de abertura para o social. Então os chineses não são solidários. Os chineses são “toma lá dá cá”. Eles sempre querem saber o que recebem em troca. Os cubanos são muito agradecidos com a relação que possuem com a China, mas ela poderia fazer mais.

Agência Brasil: Mas ao mesmo tempo que o cristianismo fornece as bases para a noção de solidariedade, a partir dele tem crescido também discursos religiosos fundamentalistas. É um cenário que traz preocupações?

Frei Betto: O fundamentalismo sempre existiu tanto na religião como na política. Inclusive se você ler o evangelho, principalmente o capítulo 23 de Mateus, todo o atrito de Jesus é com os fundamentalistas religiosos: fariseus, saduceus. Ele inclusive xinga, chama de raça de víboras, de sepulcros caiados, etc. Então a extrema-direita sempre manipulou a religião para sacramentar os seus interesses. O problema é que a esquerda cometeu o erro de não perceber a força da religião na cultura popular. Também devido ao Iluminismo e à toda a fase racionalista do ateísmo, o marxismo acabou adotando uma profissão de fé ateia. Meio paradoxal o que eu acabo de dizer, mas é um pouco isso.

É muito difícil na América Latina você encontrar um povo não religioso. Se você perguntar a uma faxineira, a um vigia de obra, a um trabalhador da construção civil, o que ele acha da vida, da morte e do mundo, ele certamente vai te dar uma resposta em categorias religiosas. E isso só foi percebido pela esquerda através da Teologia da Libertação, que acabou tendo muita influência. Resultou na maior rede de movimento popular criada no Brasil do século 20, que foram as Comunidades Eclesiais de Base, que por sua vez geraram um número significativo de militantes tanto sindicais, quanto políticos.

Infelizmente, quando vieram os dois pontificados conservadores, com João Paulo II e Bento XVI, elas arrefeceram. Até hoje a Igreja está penalizada por esses dois pontificados, porque duraram 34 anos. Toda essa geração atual de padres e bispos basicamente é fruto desse período. E o Papa Francisco, por mais que ele seja identificado com a Teologia da Libertação, ele não consegue provocar as mudanças que ele gostaria de fazer. Ele se esforça, mas enfrenta resistência. Eu digo que a Igreja Católica hoje é um corpo conservador com a cabeça progressista.

Agência Brasil: Em agosto você completou 80 anos. Se considera hoje tão otimista quanto aquele jovem Frei Betto que atuou na resistência contra a ditadura e que acreditava em uma grande mudança social?

Frei Betto: Eu acho o seguinte: você não pode viver sem utopia. Eu estou convencido que quanto mais utopia, menos drogas. E quanto menos utopia, mais drogas. Não dá para viver sem sonhos. Se o sonho não é político, se o sonho não é social, o sonho vai ser químico. Às vezes, converso com adolescentes em escolas e eles perguntam: ‘na geração do senhor, tinha muita gente curtindo droga?’. Eu respondo que existia sim, mas não eram tantos porque nós éramos viciados em utopia. A gente injetava utopia na veia.

Eu sou de uma geração que confundia o seu tempo pessoal com o seu tempo histórico. Eu achava que eu ia assistir o Brasil sair da ditadura e caminhar para o socialismo. E me arrisquei por isso. Achava que a gente poderia fazer uma revolução. Eu me enganei, mas não tenho nenhuma vergonha de ter me enganado, não me arrependo de nada. Acho que há muitos méritos na minha geração. Eu sei que o meu tempo histórico não vai coincidir o meu tempo pessoal. Porém insisto: não vou participar da colheita, mas faço questão de morrer semente. Eu continuo socialista. Não tanto socialista, mas convicto de que, dentro do capitalismo, a humanidade não tem futuro.

Agência Brasil: Em que medida você acha que o desenvolvimento tecnológico e a força das redes sociais impactam a juventude? Elas podem ser um espaço para promover a utopia?

Frei Betto: Eu costumo dizer nós não estamos vivendo uma época de mudança, nós estamos vivendo uma mudança de época. Tivemos a modernidade, a pós-modernidade e estamos entrando agora numa outra época que eu não sei ainda que nome vai ter. É uma época regida pela cultura digital. É uma coisa inteiramente nova. E a nossa luta deverá se dar em várias trincheiras. Primeiro é preciso fazer com que essas plataformas sejam controladas pelo Estado. Isso é fundamental porque são armas extremamente poderosas. Estão sendo mal usadas na mão da iniciativa privada.

Eu acho que antes de mais nada precisamos responder: para que servem as chamadas redes sociais, que eu prefiro chamar pelo nome técnico de redes digitais? Servem para facilitar nossa comunicação, para nos informar. Não é para o dono fazer dinheiro. Só que as plataformas hoje só visam o lucro. Ainda que as aparências possam nos enganar. É como aconteceu com a televisão. Ninguém ligaria a televisão para ver só anúncio. Então precisava ter filme, programa de auditório, telejornal. Ninguém também vai entrar numa rede dessa para ver anúncio. Então elas oferecem outras coisas. Mas a questão é o que está por trás. Nas redes, há várias maneiras do usuário ser atingido pelo consumismo. Não é só pelo anúncio explícito.

Hoje, existe uma doença já catalogada e diagnosticada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) chamada nomofobia, que é a dependência do celular. É preciso ler A Máquina do Caos, de Max Fisher. Como as redes digitais tornam um usuário dependente? Muito simples: as pessoas guardam mais as ofensas que receberam nos últimos cinco ou dez anos do que os elogios. Então quanto mais ódio nas redes, mais dependência. Além disso, as redes incutem nos seus usuários um individualismo e um narcisismo. Ela é o meu espelho: eu posto e quero saber como foi a repercussão do que eu postei. E minha ação passa a depender do retorno. Hoje, há inúmeros casos de suicídio de jovens provocado pelo cancelamento.

Mas as redes são maravilhosas do ponto de vista de facilitar comunicação e promover democratização da informação. Os grandes veículos estão desesperados, porque hoje a maioria das pessoas está pouco se lixando para a TV Globo, o SBT, a Record, o Estadão, a Folha de S. Paulo. As pessoas estão buscando os seus nichos de informação e comunicação. Então o que eu acho é que é preciso uma regulação. E é preciso uma educação digital nas escolas. Assim como tem ou deveria ter uma boa educação em português, em matemática. Isso é fundamental.

Grupo de filhos e netos de perseguidos pela ditadura completa 10 anos

Era 5 de dezembro de 2014. Em uma audiência pública realizada no auditório do 11º andar da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), filhos e netos de perseguidos políticos durante a ditadura militar receberam um pedido oficial de desculpas do Estado. Era algo esperado há muito tempo, que veio verbalizado meio de representantes da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio), criada pela Lei Estadual 6.335/2012 para apurar delitos e atos antidemocráticos praticados por forças do Estado durante o regime militar instaurado a partir do golpe de 1964.

Ligia Maria Motta Lima Leão de Aquino, professora, membro do Coletivo Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, formado por familiares de mortos, desaparecidos, torturados e perseguidos políticos, fala sobre sua história, no auditório da UERJ. Foto:  Tânia Rêgo/Agência Brasil

“Até hoje eu fico arrepiada toda vez que me lembro desse momento. Parece uma bobagem, mas esse pedido de desculpas tem um sentido muito forte”, diz a professora universitária Lígia Maria Mota Lima Leão de Aquino.

Aquela audiência pública marca a fundação do Grupo de Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, que completa neste mês 10 anos de existência.

Ao longo de todos esses anos, conhecendo melhor uns aos outros, passaram a reconhecer que suas vidas são alvos de “efeitos transgeracionais” provocados pela violência de Estado. Para relembrar essa trajetória e celebrar essa união, o grupo voltou a se reunir no mesmo auditório da Uerj no último dia 5.

Lígia faz questão de se apresentar pelo seu nome completo, mencionando que por trás desses sobrenomes há diversos parentes que foram perseguidos pelos militares. Hoje docente da Faculdade de Educação da Uerj, ela considera que as ações da ditadura geraram impactos sentidos ainda hoje em sua família.

“Meu avô era o jornalista Pedro Mota Lima. Ele foi diretor do Tribuna Popular e era do Partido Comunista. Já no Ato Institucional número 1, editado após o golpe militar de 1964, o nome do meu avô e de dois tios estavam lá como pessoas cassadas. E no caso dos meus tios, perderam não apenas seus direitos políticos, mas também o trabalho no Banco do Brasil. Um deles conseguiu ir para o exterior e o outro foi preso”, relata.

A celebração dos 10 anos do grupo teve início com o depoimento em vídeo de artista e professora Rita Maurício, filha do ex-preso político José Luiz Maurício. Ela relata que as torturas deixaram seu pai louco e ele não conseguiu concluir o sonho de se formar em medicina. Contou também que os familiares, em particular sua mãe, precisaram abdicar de projetos pessoais para cuidar do pai, que tinha momentos de crise, inclusive com internações, e houve até mesmo tentativas de suicídio.

“Aquela arvore que eu gostava tanto de brincar e que depois meu avô cortou para que meu pai não tentasse mais se enforcar ali”, citou. Para Rita, toda esta atmosfera no ambiente familiar a fez com que ela não desenvolvesse na infância todas as suas potencialidade e também apresentasse uma baixa autoestima. Mãe de dois filhos, ele conta que se vê cometendo com eles erros similares ao que sua mãe cometia com ela.

“Família para mim sempre foi difícil de assimilar. O fato de muitas vezes família ser para mim um sinônimo de inferno tem tudo a ver com sequelas emocionais que a ditadura provocou na minha família. Hoje vejo que o meu relacionamento conturbado com a minha mãe é o principal efeito transgeracional da violência de Estado na minha vida”.

Clínicas do Testemunho

O Grupo de Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça surge como um desdobramento do projeto Clínicas do Testemunho, impulsionado no Rio de Janeiro pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). Através dele, eram oferecido atendimento psicológico aos perseguidos políticos. Logo, porém, terapeutas envolvidas começam a observar a ocorrência dos efeitos transgeracionais e propõem estender a iniciativa também para abarcar os filhos e netos.

“O projeto cumpria, inicialmente, um papel de reparação, porque a violência do Estado no período da ditadura não foi apenas física, mas também psicológica. Então a reparação pecuniária é importante, mas ela não é única e nem é suficiente. Então uma outra forma de reparação envolve a construção de centros de memória e a garantia de atendimento para que as pessoas em sofrimento psicológico por conta dessa violência tenham ferramentas para poder lidar com isso e até ressignificar essas experiências vividas”, diz Lígia Maria.

A professora Márcia Curi Vaz Galvão, membro do Coletivo Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, formado por familiares de mortos, desaparecidos, torturados e perseguidos políticos. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

A partir dos atendimentos em grupo, os filhos e netos dos perseguidos políticos passaram a ficar mais unidos e passaram a ser organizar, mantendo contato através das redes sociais e organizando uma agenda de atividades. Passados alguns anos, eles buscaram nacionalizar a mobilização incorporando pessoas que participaram das Clínicas do Testemunho que foram conduzidos em outros estados, eventualmente com outros nomes.

“Há 11 anos, eu não conhecia ninguém que está aqui. E hoje em dia é uma relação muito forte”, conta a professora da educação básica Márcia Curi Vaz Galvão. Ela nasceu em 1971 no Uruguai, onde seu pai, Arakém Vaz Galvão, se exilou após deixar a prisão. Sua mãe, a uruguaia Glady Celina Cury Bermudez, integrava o Movimento de Libertação Nacional (Tupamaros). Ela também foi presa, ficando privada da liberdade por quatro anos.

“Eu tinha um ano, quando entraram na casa e a levaram. Depois eu passei muitos anos no exílio. Com oito anos, eu aprendi meu quinto idioma, porque eu vivi na Suécia, na França, na Catalunha, na Espanha. Ia aprendendo o idioma e mudando de escola. E nunca me foi explicado o que estava acontecendo.  Eu era muito pequena e minha mãe não falava muito. Cheguei no Brasil por ser filha de brasileiro em 1979 com aquela pseudo-anistia, que anistiou torturadores”, explica.

Segundo Márcia, as Clínicas do Testemunho permitiram que ela pudesse compreender melhor suas emoções.

“Eu pude dizer como me sentia, como uma pessoa fora de lugar. Quando eu era criança, se eu dizia para minhas amigas que eu tinha morado na França, achavam chique. Mas eu morei lá porque minha família foi presa. Então eu tinha dificuldade de fazer parte de grupos, de núcleos, de um circuito de pessoas. E de repente, eu encontro pessoas que têm questões semelhantes. E começo a perceber o silêncio oceânico que eu carregava desde a infância. E aí pude finalmente me identificar. Foi muito poderoso. É uma libertação”, afirma.

Mudança de rumo

Há casos em que o encontro com a história familiar gerou uma mudança de rumo na vida profissional. A advogada pernambucana Rose Michelle é sobrinha de Rosane Alves Rodrigues, ex-diretora do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade de Pernambuco (UPE). Perseguida, ela precisou exilar-se no Chile e na Dinamarca.

Rose conta que, mesmo na família, havia uma certo silenciamento em torno da história da tia. A eleição de Jair Bolsonaro em 2018, que adotava um discurso de defesa de agentes envolvidos na ditadura militar, lhe acendeu um alerta de que precisava compreender melhor o que havia acontecido. Foi quando ela fez contato com o Grupo de Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça. Especialista em direito empresarial, Rose passou então a atuar em outra esfera: direitos humanos.

Relato semelhante foi compartilhado pela professora e psicóloga Kenia Soares Maia. Ela é prima de Jessie Jane, militante que participou do sequestro de um avião na expectativa de trocar os reféns pela liberdade de presos políticos. O plano fracassou. Vital Cardoso de Souza, pai de Kenia e tio de Jessie, filiado ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), também chegou a ser preso por dois meses. Pelo parentesco com a sobrinha, os agentes da repressão queriam saber se ele tinha envolvimento no caso.

“Eu assumi minha identidade de filha de preso político muito por conta do governo Bolsonaro. Porque até então a minha vida corria relativamente em uma certa normalidade. Foi quando o Bolsonaro assumiu que eu me vi em pânico de viver tudo que o meu pai viveu, tudo que a minha prima viveu. E aí eu me vi obrigada a me engajar na luta por memória, verdade e justiça. Eu percebi que essa luta não terminou, não estava resolvido, muito longe disso. Então eu busquei um coletivo que pudesse me acolher”, conta Kenia.

Além da terapia

 Kenia Soares Maia e Felipe Lott, membros do Coletivo Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, formado por familiares de mortos, desaparecidos, torturados e perseguidos políticos. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Embora tenha se desdobrado de um projeto com objetivos mais terapêuticos, o Grupo de Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça atua hoje em diversas frentes. Segundo Kenia, há um diálogo com a Defensoria Pública da União (DPU) para que seja levado um pedido de anistia coletivo à Comissão de Anistia, órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

“É uma anistia simbólica, que inclui um conjunto de medidas reparadoras: o fortalecimento da Comissão de Mortos e Desaparecidos, a facilitação de acesso aos arquivos, a volta da Clínica dos Testemunhos – que é uma medida de reparação obrigatória indicada pela pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – e novas investigações sobre o que aconteceu no Cone Sul na Operação Condor. Enfim, uma série de demandas que a gente tem”, explica.

De acordo com a advogada Rosa Costa Cantal, a reinstalação da Comissão de Mortos e Desaparecidos, que havia sido dissolvida durante o governo de Jair Bolsonaro, foi uma promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A medida só saiu do papel em julho desse ano, segundo ela, após muita pressão.

Rosa Costa Quental, advogada, membro do Coletivo Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, formado por familiares de mortos, desaparecidos, torturados e perseguidos políticos. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

“Lula orientou para que não houvessem eventos que relembrassem os 60 anos do golpe. Foi muito difícil. Agora ficamos sabendo que havia um plano para assassinar o presidente Lula. Isso só mostra como as medidas de reparação do passado são importantes para não repetição no presente”, disse.

Rosa é filha de Maria Aparecida Costa Cantal, militante da Aliança Nacional Libertadora (ALN) que ficou presa por cerca de três anos. Seu pai, Wellington Cantal, saiu do Ceará para estudar direito no Rio de Janeiro e também foi alvo da repressão. Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Duque de Caxias (RJ), ele se envolveu com questões judiciais envolvendo disputas de terras.

“Defendeu inúmeros posseiros de terra, na luta contra os grileiros. Os grileiros, muitos deles militares, forjavam títulos de propriedades nos cartórios, falsificavam documentos e expulsavam famílias de posseiros que já estavam na terceira geração ocupando aquelas terras e cultivando nelas. E meu pai acaba sendo perseguido e é preso”, conta Rosa, acrescentando que posteriormente ele foi novamente preso e torturado, tendo sobrevivido a um ataque cardíaco.

Ela afirma que sentiu que devia dar sequência à luta de seus pais por democracia.

“Esse é um grupo propositivo também. A gente discute diferentes questões como, por exemplo, a punição dos torturadores. Essa é uma bandeira muito importante. E estamos debatendo questões objetivas envolvendo a violência policial. O grupo tem uma grande atuação aqui no Rio de Janeiro e lá em São Paulo, onde estão explodindo essas situações”.

O historiador Felipe Lott, membro do Coletivo Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, formado por familiares de mortos, desaparecidos, torturados e perseguidos políticos. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Para Felipe Lott, pesquisador em história, os recorrentes casos de violência policial no Brasil indicam que a ditadura não foi superada. “São práticas altamente referendadas institucionalmente. Não são casos isolados, apesar de certos setores da sociedade gostarem de repetir isso. Esses casos estão arraigados na tradição brasileira”, avalia.

Ele é neto de Edna Lott, deputada que teve seu mandato cassado e foi posteriormente assassinada quando procurava informações de seu filho desaparecido. “Sempre que vem à tona novos casos de violência do Estado fica clara a importância de a gente continuar fazendo esse trabalho”, acrescenta.

Performance no ato AI-5 Nunca Mais reforça memória contra ditadura

Um corpo humano adulto é formado por 250 gramas de sal. Em frente à sede do antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no centro do Rio de Janeiro, foram carregados e posicionados oito sacos de 25 quilos de sal, totalizando 200 quilos. Mais do que apenas sal, os sacos têm um simbolismo maior: 800 pessoas.

São pessoas que lutaram contra a ditadura militar e cuja memória e ausência são lembradas na performance artística de Julia Cseko, que fez parte do ato AI-5 Nunca mais, realizado nesta sexta-feira (13), para lembrar a assinatura, em 13 de dezembro de 1968, do Ato Institucional nº 5, o mais repressor dos 17 atos institucionais decretados na ditadura militar e que marcou o início do período mais sangrento do regime autoritário.

“[A performance é] Para a gente pensar nas pessoas que perdemos, na fisicalidade das ausências que temos e tudo que perdemos também na ditadura. Foram vidas, foi a sanidade. A polícia apenas se tornou mais truculenta, mais violenta. A corrupção se tornou uma coisa cada vez endêmica”, disse a artista.

O ato, que reúne artistas, pessoas que viveram a ditadura e que perderam entes queridos no período, políticos, ativistas e defensores dos direitos humanos é realizado há 11 anos em frente ao Dops e reivindica que esse espaço se torne um espaço de memória de toda a repressão e tortura que ocorreu justamente no local. 

Centro de memória 

O prédio da Polícia Central é atualmente um dos bens do patrimônio histórico e artístico do estado do Rio de Janeiro. Hoje, não há qualquer indicação ou placa do papel desse edifício ao longo da história. Nele funcionou o Dops, criado para assegurar e disciplinar a ordem militar no país. Ele foi utilizado principalmente durante o Estado Novo e na ditadura militar. Foi usado como um aparato do Estado para perseguir e torturar quem se opunha aos regimes autoritários.

“Nós lutamos, há muitos anos, para transformar esse prédio num centro de memória. Essa é mais uma iniciativa, sempre lembrando que nós não queremos nem ditadura, nem sequer AI-5, que foi um período onde nós perdemos muitos companheiros, tivemos muitos desaparecidos. Além daqueles que lutavam contra a ditadura, muitos segmentos foram atingidos vilmente por uma crueldade inaceitável. Então, ditadura nunca mais, AI-5 nunca mais”, disse uma das organizadoras do ato Vera Vital Brasil, do Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia.

O historiador Paulo Cesar Azevedo Ribeiro, que também integra o Coletivo, ressalta a importância em transformar o edifício em um espaço de memória. 

“Isso aqui foi palco de prisões de gente famosa, de Graciliano Ramos [um dos mais importantes autores da literatura brasileira], de Nise da Silveira [psiquiatra brasileira reconhecida por revolucionar o tratamento mental]. É, enfim, um lugar simbólico”, lembra.

“Aqui tem 600 metros quadrados. Imagina, no centro da cidade do Rio de Janeiro, um centro de memória e cultura, com oficinas para os jovens aprenderem, com cinema, com arte, para armazenar o que se sabe. O Rio de Janeiro merece isso. Nós não temos um centro de memória das lutas contra a repressão”, defende o historiador.

Para não repetir

Segundo a Comissão Nacional da Verdade, 50 mil pessoas foram presas apenas em 1964, ano do golpe militar, e boa parte delas sofreram torturas. A comissão também identificou pelo menos 434 pessoas mortas ou desaparecidas pelas forças ditatoriais.

Para a secretária dos Direitos Humanos do Partido Comunista do Brasil, Dilceia Quintela, a preservação da memória é importante para que a história não se repita.

“Todos os anos, sempre no dia 13 de dezembro, nós viemos aqui para rememorar, para não deixar que seja esquecida ‘aquela página infeliz da nossa história’, como diria Chico Buarque. E no ano que completa 60 anos do golpe, com golpistas andando por aí, né? Com o que aconteceu no dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília, com tudo que se descobriu, com a tentativa de golpe ainda lá em 2022, após as eleições. Não podemos deixar passar desapercebido”, alerta.

Em novembro, a Polícia Federal deflagrou uma operação para desarticular uma organização criminosa responsável por planejar um golpe de Estado para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva após o pleito de 2022. O plano que incluía o assassinato de Lula e do vice-presidente, Geraldo Alckmin, foi impresso no Palácio do Planalto, em novembro daquele ano.

Botar sal

A artista Julia Cseko nasceu nos Estados Unidos, porque o pai, o compositor Luiz Carlos Cseko, se viu obrigado a deixar o país para evitar a perseguição pela ditadura. Atualmente, vendo que a ditadura e os crimes cometidos no período têm pouca repercussão na América do Norte, ela utiliza o financiamento de uma bolsa para elaborar obras de arte com essa temática, como a performada desta sexta-feira.

“A gente está num momento histórico complicadíssimo. Querem anistiar pessoas que tentaram fazer um golpe. Acho que anistia para essas pessoas nem pensar. Isso é importante dizer também. E é esse o símbolo de estar junto, em solidariedade, resistindo, continuando esse trabalho de resistência, continuando o trabalho de luta pelos direitos humanos, com os coletivos. É uma colaboração muito bonita. É isso. Vamos lá, vamos botar sal aqui”, convoca.

Exposição em Porto Alegre rememora imprensa negra na ditadura

Termina na próxima quarta-feira (18) a exposição Grupo Tição e a Imprensa Negra no RS – 132 Anos de História, no saguão da Escola de Comunicação, Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre.

Tição foi uma publicação em formato de revista e de jornal que circulou entre março de 1978 e outubro de 1980, período de abertura política e de distensão da ditadura cívico-militar (1964-1985).

A revista/jornal teve apenas três edições, mas até hoje a publicação é estudada em razão do pioneirismo de tratar questões do interesse da população negra em um estado de população hegemonicamente branca, sob contexto histórico delicado como foi o da ditadura.

“O objetivo da Tição foi exatamente dar visibilidade para pautas importantes para a população negra, garantindo um mínimo de visibilidade aos negros em um estado que é visto, inclusive nos nossos dias, como um lugar onde teria ocorrido apenas colonização europeia”, explica à Agência Brasil o curador da exposição Deivison Campos, pesquisador e coordenador do curso de jornalismo da PUCRS.

Para Deivison Campos, Tição estabeleceu “diálogos” com outras publicações contemporâneas do movimento negro da época em outras cidades como o jornal Sinba, da Sociedade de Intercâmbio Brasil-África, que circulava no Rio de Janeiro, e como o Jornegro, produzido pela Federação das Entidades Afro-Brasileiras do Estado de São Paulo.

O contato com a imprensa negra em outras cidades confirma a importância do movimento negro de Porto Alegre para o país. O pesquisador assinala que “não por acaso foi aqui que surgiu a ideia do 20 de novembro, como Dia da Consciência Negra”, como propôs o Grupo Palmares, fundado no início dos anos 1970 na cidade.

Deivison Campos destaca que a publicação Tição tratava em suas pautas da identidade negra, das “peculiaridades culturais” e “demandas de cidadania”, desafiando um regime ditatorial que pregava a ideia de que o Brasil era “uma democracia racial, onde todos são iguais”.

Censura prévia

Para o publicitário Juarez Ribeiro, editor do jornal Nação Z, a existência da publicação era contestatória, mesmo sem assumir uma linha editorial explicitamente de embate e conflito.

“Era um projeto voltado para a divulgação da cultura negra. Eu entendo muito mais como uma mensagem culturalista do que uma mensagem política, de engajamento pregando a transformação da sociedade ou enfrentamento do regime imposto. Mas não era uma ação explicitamente que pregava a transformação”, defende o publicitário em entrevista à Agência Brasil.

Com um discurso e presença que desagradavam ao autoritarismo vigente, Tição foi acompanhada de perto pelas forças de repressão e sofreu censura prévia. “Tínhamos que fazer boneco da publicação e levar para a Polícia Federal”, conta a atriz gaúcha Vera Lopes, envolvida no movimento negro de Porto Alegre e que trabalhou na publicação.

“No segundo número, acho que a gente foi duas ou três vezes à Polícia Federal. Ouvíamos: ‘tira isso’, ‘muda esse título’, ‘essa matéria não pode’, ‘essa foto aqui está ruim’. Falavam como se fossem editores”, rememora Vera Lopes.

Em sua opinião, a redação de Tição foi audaciosa. “Imagina nos anos [19]70, em pleno período terrível de ditadura, jovens negros editando uma revista. Era algo extremamente corajoso para aquela época.”

Além de Vera Lopes, trabalharam na Tição o poeta e ativista Oliveira Silveira, jovens jornalistas negros como Vera Daisy Barcellos, Jorge Roberto Freitas,  Walter Carneiro, Edilson Nabarro, Emílio Chagas, e Jeanice Dias Ramos.

Jeanice, que hoje atua no Núcleo de Jornalistas Afro-Brasileiros do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul, lembra que naquela época “o negro só aparecia na página policial dos jornais. E nós queríamos muito mais que isso.”

A jornalista informa que a publicação será retomada no próximo ano, em formato de revista em três edições. A primeira será dedicada à mulher negra. A segunda falará sobre juventude e a terceira, sobre racismo estrutural e segurança pública.

Serviço

Exposição Grupo Tição e a Imprensa Negra no RS – 132 Anos de História
Termina no 18 de dezembro (próxima quarta-feira)
Aberta de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 22h, no Saguão da Escola de Comunicação, Artes e Design – Famecos – Prédio 7 (Campus da PUCRS – Avenida Ipiranga, 6.681)

CNJ determina nova certidão de óbito para mortos pela ditadura

Parentes de pessoas mortas pela ditadura cívico-militar (1964-1985) no Brasil poderão pedir nova versão da certidão de óbito nos cartórios de registro civil.

No novo documento deverá constar como causa mortis a seguinte informação: “morte não natural, violenta, causada pelo Estado a desaparecido no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964.”

A determinação é do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que tem, entre outras atribuições, a de regrar e fiscalizar o funcionamento dos cartórios que prestam serviço delegado pelo poder público. O ato normativo foi aprovado por todos os conselheiros do CNJ reunidos nesta terça-feira (10), data em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 76 anos.

Para o presidente do CNJ e também presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, a medida “é um acerto de contas legítimo com o passado.” Segundo Barroso, “um período muito triste” e iniciado com um golpe de Estado.

“As pessoas questionam o termo golpe, mas este é o nome que, em ciência política e na teoria constitucional, se dá à destituição do presidente da República por um mecanismo que não esteja previsto da Constituição”, explicou Barroso.

Sem pedido de desculpas

O ministro aponta o caráter simbólico da decisão: “embora nunca tenha havido um pedido formal de desculpas, estamos tomando as providências possíveis para a reparação moral dessas pessoas.”

A ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, concorda com Barroso e diz: “esta é mais uma retomada pela dignidade daqueles que tiveram seus direitos negados, aviltados e forçosamente roubados.” Para Macaé, todos têm direito à verdade, e as instituições democráticas precisam ser sistematicamente defendidas.

O reconhecimento da morte causada pelo Estado em época da ditadura foi proposto ao CNJ pela pasta chefiada por Macaé Evaristo.

Têm direito a pedir uma nova versão da certidão de óbito familiares de 434 pessoas tidas como mortas ou desaparecidas, conforme o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

A CNV foi instituída no governo da presidenta Dilma Roussef e funcionou entre 18 de novembro de 2011 e 16 de dezembro de 2014. A comissão era formada por um colegiado de sete pessoas com a atribuição de investigar violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.

Apesar do reconhecimento das mais de quatro centenas de mortes durante a ditadura cívico-militar, a CNV não avançou na identificação dos assassinatos dos indígenas. Entidades de direitos humanos estimam que podem ter ocorrido mais de 8 mil assassinatos nessa população.

Lira critica indiciamento de deputados e cita ditadura militar

Com citações à cassação do deputado Márcio Moreira Alves durante a ditadura militar (1964-1985), o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP/AL), saiu em defesa dos deputados federais Marcel van Hattem (Novo/RS) e Cabo Gilberto Silva (PL/PB) na noite desta terça-feira (26). Ambos foram indiciados pela Polícia Federal (PF) por calúnia e difamação contra um delegado da PF em discursos proferidos na tribuna do Parlamento.

O presidente da Câmara destacou que não entra no mérito da fala dos parlamentares, mas ressaltou que os discursos na tribuna da Câmara não podem ser cerceados, e citou o caso do deputado Moreira Alves, cassado depois de proferir discurso, em 1968, denunciando a ditadura. Dias depois, o regime editou o Ato Institucional nº5 (AI-5), suspendendo os direitos e garantias políticas e individuais no país.

“Recordo aqui o caso do deputado Moreira Alves, que, durante o regime militar, foi alvo de retaliação justamente por sua coragem em defender a democracia e os direitos dos cidadãos. Sua cassação, baseada em discursos feitos na sagrada tribuna desta Casa, marcou um dos episódios mais sombrios de nossa história legislativa e serve como um alerta constante para nós. Aqueles que tentam restringir nossa liberdade de expressão legislativa desconsideram os danos profundos que essa prática causa ao Estado Democrático de Direito”, afirmou Lira.

O presidente da Câmara disse ainda que vê com grande preocupação o indiciamento dos parlamentares por discursos proferidos na tribuna, defendeu a imunidade material dos deputados e afirmou que tomará medidas para defender as prerrogativas da Casa.

“Não se pode cercear o direito fundamental ao debate e à crítica em tribuna, mediante ameaças de perseguição judicial ou policial. O Parlamento não é e não pode ser alvo de ingerências externas que venham a coibir o exercício livre do mandato”, destacou o presidente da Câmara, acrescentando que “nossa voz é a voz do povo, e ela não será silenciada”.

Calúnia e difamação

O deputado Marcel van Hatten disse que foi indiciado por calúnia e difamação ao afirmar, em agosto deste ano, que o delegado Fábio Alvarez Shor estaria fraudando as investigações contra o ex-assessor da Presidência no governo Jair Bolsonaro, Filipe Martins, preso por suposta tentativa de golpe de Estado.

“Eu quero que as pessoas saibam, sim, quem é esse dito policial federal que fez vários relatórios absolutamente fraudulentos contra pessoas inocentes, inclusive contra Filipe Martins”, afirmou da tribuna Hatten enquanto segurava uma foto do delegado da PF.

O deputado Cabo Gilberto Silva disse que também foi indiciado por “denúncias na tribuna da Câmara dos Deputados sobre a conduta do delegado Fábio, que está à frente de vários inquéritos ilegais contra inocentes brasileiros”.

Procurada, a Polícia Federal informou que não se manifesta sobre investigações em curso. 

Art. 53

O deputado Arthur Lira e os deputados indiciados citam, em suas defesas, o Artigo 53 da Constituição, que define que “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), no entanto, prevê alguns limites à imunidade parlamentar. No inquérito que apura a suposta organização criminosa criada para atacar o STF e o processo eleitoral brasileiro, o chamado inquérito das fakes news, o ministro Alexandre de Moraes diz que “a jurisprudência da Corte é pacífica no sentido de que a garantia constitucional da imunidade parlamentar material somente incide no caso de as manifestações guardarem conexão com o desempenho da função legislativa ou que sejam proferidas em razão desta; não sendo possível utilizá-la como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”.

Em outro julgamento, em 2020, o então ministro do STF Marco Aurélio afirmou que “a imunidade parlamentar pressupõe nexo de causalidade com o exercício do mandato”. 

“Declarações proferidas em contexto desvinculado das funções parlamentares não se encontram cobertas pela imunidade material”, argumentou o ministro na ocasião.

Em caso julgado em 2017, a ministra do STF Rosa Weber ponderou que “a verbalização da representação parlamentar não contempla ofensas pessoais, via achincalhamentos ou licenciosidade da fala”. 

Outras manifestações do STF sobre a imunidade parlamentar prevista no Art. 53 podem ser consultadas na página do STF.

Lira critica indiciamento de deputados e cita ditadura militar

Com citações à cassação do deputado Márcio Moreira Alves durante a ditadura militar (1964-1985), o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP/AL), saiu em defesa dos deputados federais Marcel van Hattem (Novo/RS) e Cabo Gilberto Silva (PL/PB) na noite desta terça-feira (26). Ambos foram indiciados pela Polícia Federal (PF) por calúnia e difamação contra um delegado da PF em discursos proferidos na tribuna do Parlamento.

O presidente da Câmara destacou que não entra no mérito da fala dos parlamentares, mas ressaltou que os discursos na tribuna da Câmara não podem ser cerceados, e citou o caso do deputado Moreira Alves, cassado depois de proferir discurso, em 1968, denunciando a ditadura. Dias depois, o regime editou o Ato Institucional nº5 (AI-5), suspendendo os direitos e garantias políticas e individuais no país.

“Recordo aqui o caso do deputado Moreira Alves, que, durante o regime militar, foi alvo de retaliação justamente por sua coragem em defender a democracia e os direitos dos cidadãos. Sua cassação, baseada em discursos feitos na sagrada tribuna desta Casa, marcou um dos episódios mais sombrios de nossa história legislativa e serve como um alerta constante para nós. Aqueles que tentam restringir nossa liberdade de expressão legislativa desconsideram os danos profundos que essa prática causa ao Estado Democrático de Direito”, afirmou Lira.

O presidente da Câmara disse ainda que vê com grande preocupação o indiciamento dos parlamentares por discursos proferidos na tribuna, defendeu a imunidade material dos deputados e afirmou que tomará medidas para defender as prerrogativas da Casa.

“Não se pode cercear o direito fundamental ao debate e à crítica em tribuna, mediante ameaças de perseguição judicial ou policial. O Parlamento não é e não pode ser alvo de ingerências externas que venham a coibir o exercício livre do mandato”, destacou o presidente da Câmara, acrescentando que “nossa voz é a voz do povo, e ela não será silenciada”.

Calúnia e difamação

O deputado Marcel van Hatten disse que foi indiciado por calúnia e difamação ao afirmar, em agosto deste ano, que o delegado Fábio Alvarez Shor estaria fraudando as investigações contra o ex-assessor da Presidência no governo Jair Bolsonaro, Filipe Martins, preso por suposta tentativa de golpe de Estado.

“Eu quero que as pessoas saibam, sim, quem é esse dito policial federal que fez vários relatórios absolutamente fraudulentos contra pessoas inocentes, inclusive contra Filipe Martins”, afirmou da tribuna Hatten enquanto segurava uma foto do delegado da PF.

O deputado Cabo Gilberto Silva disse que também foi indiciado por “denúncias na tribuna da Câmara dos Deputados sobre a conduta do delegado Fábio, que está à frente de vários inquéritos ilegais contra inocentes brasileiros”.

Procurada, a Polícia Federal informou que não se manifesta sobre investigações em curso. 

Art. 53

O deputado Arthur Lira e os deputados indiciados citam, em suas defesas, o Artigo 53 da Constituição, que define que “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), no entanto, prevê alguns limites à imunidade parlamentar. No inquérito que apura a suposta organização criminosa criada para atacar o STF e o processo eleitoral brasileiro, o chamado inquérito das fakes news, o ministro Alexandre de Moraes diz que “a jurisprudência da Corte é pacífica no sentido de que a garantia constitucional da imunidade parlamentar material somente incide no caso de as manifestações guardarem conexão com o desempenho da função legislativa ou que sejam proferidas em razão desta; não sendo possível utilizá-la como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”.

Em outro julgamento, em 2020, o então ministro do STF Marco Aurélio afirmou que “a imunidade parlamentar pressupõe nexo de causalidade com o exercício do mandato”. 

“Declarações proferidas em contexto desvinculado das funções parlamentares não se encontram cobertas pela imunidade material”, argumentou o ministro na ocasião.

Em caso julgado em 2017, a ministra do STF Rosa Weber ponderou que “a verbalização da representação parlamentar não contempla ofensas pessoais, via achincalhamentos ou licenciosidade da fala”. 

Outras manifestações do STF sobre a imunidade parlamentar prevista no Art. 53 podem ser consultadas na página do STF.

Dia da Consciência Negra é reivindicação social desde a ditadura

Teve longa gestação o reconhecimento do Dia de Zumbi e da Consciência Negra em 20 de novembro como feriado civil em todo o país: 53 anos. O intervalo é maior do que o espaço de tempo entre a Lei Eusébio de Queiroz (1850), que proibiu em definitivo a importação de pessoas escravizadas para o Brasil, e a Lei Áurea (1888), que declarou “extinta” a escravidão no país: 38 anos.

A preferência pelo 20/11 se manifesta pela primeira vez em 1971, em plena ditadura cívico-militar, e partiu de um grupo de estudantes e militantes negros de Porto Alegre, interessados em literatura e artes. Eles não achavam adequadas as celebrações em torno do 13 de maio, dia da assinatura da abolição da escravatura pela princesa Isabel, princesa imperial regente – que formalmente pôs fim a cerca de 350 anos de escravidão negra no Brasil.

O coletivo de rapazes negros, formado em julho daquele ano, depois se denominou Grupo Palmares e era composto por Oliveira Ferreira da Silveira, Ilmo Silva, Vilmar Nunes e Antônio Carlos Cortes. Cortes, hoje experiente advogado especializado em direito civil e criminal e a única pessoa viva daquela formação original. Segundo ele, também pertenciam ao “grupo informal” Luiz Paulo Axis Santos e Jorge Antônio dos Santos, que tiveram atuação mais discreta.

 O poeta e pensador Oliveira Silveira, no Grupo Palmares – Foto Instituto Oliveira Silveira/Divulgação

Nós éramos seis, mas quatro botaram a cara para bater e dois ficaram ocultos, como estratégia nossa, porque se a ditadura nos eliminasse, esses outros dois dariam sequência”, lembra Antônio Carlos Cortes em entrevista à Agência Brasil. Ao longo do tempo, a composição do grupo mudou, inclusive com a entrada de mulheres.

“O grupinho de negros se reunia costumeiramente em alguns fins de tarde na Rua da Praia (oficialmente, dos Andradas), quase esquina com Marechal Floriano, em frente à Casa Masson”, descreveu o poeta Oliveira Silveira, já formado em Letras na época, em artigo assinado em 17 de outubro de 2003 e publicado no livro Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica.

Conforme o texto, no grupo Jorge Antônio dos Santos era “o crítico mais veemente” ao 13 de maio, mas havia na roda unanimidade contra ter aquela data como referência histórica de luta pela liberdade para os negros brasileiros.

“O 13 não satisfazia, não havia por que comemorá-lo. A abolição só havia ocorrido no papel; a lei não determinara medidas concretas, práticas, palpáveis em favor do negro. E sem o 13 era preciso buscar outras datas, era preciso retomar a história do Brasil”, anotou Oliveira Silveira.

Referências

Segundo ele, que também se tornou autor de teatro, o grupo conhecia a peça Arena conta Zumbi, de Gianfrancesco Guarnieri e musicada por Edu Lobo (1965). Zumbi dos Palmares também estava nas bancas de revista, no fascículo nº 6 da série Grandes Personagens da Nossa História, editado pela Abril Cultural. Na publicação constava o dia 20 de novembro de 1695 como data da morte de Zumbi.

Na Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul, o então estudante Antônio Carlos Cortes localiza o livro Quilombo de Palmares (1947), do historiador Edison Carneiro. O livro corroborava a data de 20/11, assim outros livros consultados posteriormente pelo grupo como As guerras nos Palmares (1938), do historiador português Ernesto José Bizarro Ennes, e Palmares – la guerrilla negra (1965), do historiador gaúcho Décio Freitas e editado inicialmente no Uruguai.

Além da data de Zumbi dos Palmares, o grupo previu realizar homenagens ao advogado Luiz Gama em 24 de agosto, e ao jornalista José do Patrocínio em 9 de outubro, datas de nascimento dos dois abolicionistas negros. “Estava delineada uma precária, mas deliberada ação política no sentido de apresentar, à comunidade negra e à sociedade em geral, alternativas de datas, fatos e nomes, em contestação ao oficialismo do 13 de maio”, explicou em artigo Oliveira Silveira.

Censura prévia

A primeira homenagem articulada pelo Grupo Palmares a Zumbi ocorreu no 20/11, um sábado à noite, no Clube Náutico Marcílio Dias, com o evento Zumbi, a homenagem dos negros do teatro. Antes da apresentação, no dia 18, o grupo foi chamado à sede da Polícia Federal para detalhar a programação do ato e obter liberação da censura.

“Todas as nossas manifestações tinham que passar pela Polícia Federal, pela censura, para que eles carimbassem autorizando aquele ato que a gente ia fazer em função do 20 de novembro de Zumbi dos Palmares. Mais do que isso, eu e o Oliveira chegamos a ser detidos”, lembra Antônio Carlos Cortes sobre depoimento forçado que tiveram de prestar.

A repressão política queria averiguar se o Grupo Palmares tinha ligações com a organização Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), que atuava na luta armada.

Liberados para fazerem a homenagem, no dia do evento os componentes do Grupo Palmares e a audiência no Clube Náutico Marcílio Dias formaram um círculo para conhecer e discutir a história de Palmares e seus quilombos com base nos estudos feitos pelos estudantes e militantes, defendendo a opção pelo 20 de novembro, em vez do 13 de maio, como data histórica para os negros brasileiros.

A partir de então, “Oliveira nunca deixou um ano de fazer alguma atividade no 20 de novembro”, recorda-se a atriz gaúcha Vera Lopes – desde jovem atuante no movimento negro de Porto Alegre. Para ela, a data da morte de Zumbi dos Palmares “é uma referência que remete para aquilo que a gente sempre, desde sempre viveu, que é a luta por vida digna. Em nenhum momento da história, as pessoas negras aceitaram ser escravizadas de bom grado. O tempo inteiro, houve resistência.”

Conjunto de quilombos 

O historiador e professor mineiro Marcos Antônio Cardoso, especialista em movimento negro, avalia que Zumbi e o quilombo de Palmares carregam outros atributos importantes. “Essa foi a primeira forma coletiva de organização de africanos no Brasil contra o regime de escravização. Foi uma experiência cultural, política e social.”

Palmares, na verdade um conjunto de quilombos que existiu por cerca de um século na Serra da Barriga na capitania de Pernambuco, hoje em União dos Palmares (AL), ia além do cultivo predominante de apenas uma cultura agrícola, como acontecia nos engenhos de cana de açúcar, e tinha formas mais horizontais de comando e de liderança do que o modelo escravagista.

Zumbi, nascido em Palmares, mas criado no Recife por um padre missionário, retorna à região e posteriormente assume a liderança do quilombo sucedendo, por volta de 1680, Ganga Zumba – que havia aceitado uma proposta de rendição e paz da coroa portuguesa.

Quinze anos após Zumbi ter assumido a liderança do Quilombo de Palmares, mantendo a resistência, o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho invade e destrói em 1694 o principal assentamento do quilombo (Mocambo do Macaco). Zumbi sobrevive por cerca de mais dois anos em outro reduto, até ser morto em 20 de novembro pelo capitão Furtado de Mendonça. Com o corpo esquartejado, Zumbi teve sua cabeça cortada exposta no Pátio do Carmo no Recife.

Utopia da igualdade 

Para Marcos Antônio Cardoso, apesar da derrota e morte de Zumbi “o processo de resistência, de guerrilha, de organização, é muito importante do ponto de vista de pensar a história do Brasil a partir do olhar dos chamados vencidos. O quilombo de Palmares é ressignificado na memória negra brasileira. Se transforma na utopia de construção de uma sociedade baseada na igualdade.”

O gesto do Grupo Palmares em Porto Alegre em defender a substituição das comemorações do 13 de maio para o 20 de novembro, no auge da repressão, não teve propósito imediato de mobilização política. Mas, em 1978, quando a sociedade civil volta a se articular em meio à abertura “lenta, gradual e segura” da ditadura cívico-militar, a bandeira de 1971 do pequeno coletivo gaúcho será abraçada Movimento Negro Unificado (MNU),

A historiadora, antropóloga, escritora e ativista do feminismo negro Lélia Gonzalez – Foto Tomaz Silva/Agência Brasil

“Graças ao empenho do MNU, ampliando e aprofundando a proposta do Grupo Palmares, o 20 de novembro transformou-se num ato político de afirmação da história do povo negro, justamente naquilo em que ele demonstrou sua capacidade de organização e de proposta de uma sociedade alternativa”, descreveu a intelectual e ativista Lélia Gonzalez no artigo O Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial.

Na sua opinião, “Palmares foi o autêntico berço da nacionalidade brasileira, ao se constituir efetiva democracia racial, e Zumbi, o símbolo vivo da luta contra todas as formas de exploração.”

Causas propostas, articuladas e abraçadas pelo MNU, como o 20/11, pautaram a redemocratização do Brasil e até se tornaram políticas públicas atuais, como o ensino da história da África nas escolas brasileiras, reivindicado desde o final dos anos 1970.

Em 2003, o 20 de novembro foi incluído por lei nos calendários escolares. Em 2011, a data é instituída oficialmente. No ano passado, também por lei, torna-se feriado nacional – após os estados de Alagoas, do Amazonas, Amapá, de Mato Grosso e do Rio de Janeiro e cerca de 1.200 municípios já terem acolhido a data como dia sem trabalho, mas com reflexão social.

Brasília – Senador Paulo Paim – Antonio Cruz/Agência Brasil

“É um feriado fundamental para que a gente sonhe um dia em ser um país de primeiro mundo. Nós só seremos um país de primeiro mundo quando pusermos fim a essa chaga do racismo, do preconceito e da discriminação”, afirma o senador Paulo Paim (PT-RS), relator do projeto de lei que transformou o Dia de Zumbi e da Consciência Negra em feriado cívico nacional.

Os negros são a maioria dos brasileiros. Pretos e pardos representam 55,5% da população – 112,7 milhões de pessoas em um universo 212,6 milhões. Conforme o Censo 2022 (IBGE), 20,6 milhões (10,2%) se reconhecem como “pretos” e 92,1 milhões (45,3%) se identificam como “pardos”.

De acordo com Paulo Paim, “toda pessoa negra tem que entender que é descendente de quilombola, e o princípio dos quilombos é esse: uma nação para todos.”

Tombamento de usina é novo capítulo de luta pela memória da ditadura

A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou na terça-feira (5), em segunda discussão, o tombamento por interesse histórico do Parque Industrial da Companhia Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes, Norte Fluminense. Agora, o governador Cláudio Castro tem até 15 dias úteis para sancionar ou vetar a medida.

O objetivo principal do tombamento é proteger o local de modificações que possam comprometer a integridade histórica. O projeto de lei permite só intervenções que estejam em conformidade com princípios de preservação e que promovam a criação de um espaço cultural, e impede qualquer destruição ou descaracterização da área.

O local ficou mais conhecido do público depois do depoimento do ex-delegado Cláudio Guerra à Comissão Nacional da Verdade, quando admitiu ter incinerado, na usina, os corpos de 12 desaparecidos políticos.

As vítimas foram: Ana Rosa Kucinski Silva, Armando Teixeira Frutuoso, David Capistrano da Costa, Eduardo Collier Filho, Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, João Batista Rita, João Massena Melo, Joaquim Pires Cerveira, José Roman, Luís Inácio Maranhão Filho, Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto e Wilson Silva.

O Complexo Cambahyba, formado por sete fazendas, também esteve no centro de disputas sociais mais recentes. Desde 1998, a área foi considerada improdutiva e alvo de reivindicações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em 2021, a Justiça Federal decretou a desapropriação de uma das fazendas para fins de reforma agrária, dando origem ao Acampamento Cícero Guedes, hoje habitado por 300 famílias.

“Com a confirmação desse tombamento, temos a necessidade de conjugar as duas histórias [da ditadura e do MST], porque o espaço é muito emblemático da violência do Estado no Brasil. Ela não começa em 1974 e ela não termina em 1985, nem em 1988. Ela atinge principalmente setores mais subalternizados da sociedade. Isso até hoje, quando a gente fala de trabalhadores do campo, da cidade, da população negra, dos moradores de favelas, da população de LGBT+”, diz o historiador Lucas Pedretti.

“Que o passado desse local onde ocorreram graves violações de direitos humanos seja demarcado e essa história possa ser transmitida para as novas gerações”.

Memória x esquecimento

Tradicionalmente, o país é carente de políticas de memória sobre a ditadura militar, principalmente quando se fala de museus ou memoriais. No próprio estado do Rio, onde está a Usina Cambahyba, um conjunto de iniciativas passa por disputas sociais há anos.

Um exemplo é a Casa da Morte, em Petrópolis, na Região Serrana, local conhecido por ter abrigado centros clandestinos de tortura e assassinato. No segundo semestre desse ano, foi anunciado que o governo federal fechou uma parceria com a prefeitura para transformar a residência em um memorial sobre a ditadura militar.

Outro caso é o do prédio que pertenceu ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), no centro da capital fluminense, e que está há anos em disputa entre a Polícia Civil e movimentos sociais. Enquanto a polícia quer construir um museu sobre a própria história, grupos como o Coletivo RJ Memória Verdade Justiça e Reparação desejam que o prédio vire um centro de memória e de direitos humanos.

Em outubro desse ano, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) anunciou estar preparando recomendação para que o 1º Batalhão de Polícia do Exército no Rio de Janeiro, onde funcionou o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), seja transformado em um memorial. O DOI-Codi era um órgão de inteligência e repressão do governo militar.

Um dos poucos exemplos bem-sucedidos no estado é o do Museu do Trabalho e dos Direitos Humanos, inaugurado em maio desse ano no município de Barra Mansa, no mesmo local onde funcionou o 1° Batalhão de Infantaria Blindada do Exército. Lá, foi instalado um centro de tortura contra opositores do regime militar. O museu é organizado pelo Centro de Memória do Sul Fluminense Genival Luiz da Silva (CEMESF), da Universidade Federal Fluminense (UFF).

“Os defensores do esquecimento foram historicamente muito competentes no Brasil em garantir o silêncio sobre esse passado. É o predomínio da ideia de que são passados que não devem ser mexidos, devem ser esquecidos. Deixados de lado em nome da reconciliação e da pacificação. E podemos ver isso como algo mais amplo: sociedade e país que têm dificuldades em lidar com passados traumáticos. Até pouco tempo atrás, por exemplo, não havia nenhuma iniciativa no Rio de Janeiro sobre a escravidão”, diz Lucas Pedretti.

“A gente precisa cada vez menos pensar em vítimas compartimentadas, as da ditadura, dos comunistas, das vítimas da violência no campo, etc. Todos eles são grupos vitimados por uma mesma lógica de violência de Estado que tem como o último objetivo a manutenção de uma ordem social desigual, hierárquica e patriarcal”, complementa o historiador.

Dia da Democracia: reparação de vítimas da ditadura segue como desafio

A participação popular nas decisões e regras coletivas é defendida pela Organização das Nações Unidas (ONU) desde sua criação, em outubro de 1945, após a vitória do bloco aliado na Segunda Guerra Mundial. Foram necessários 62 anos para a ONU reconhecer o dia 15 de setembro como Dia Internacional da Democracia, em 2007, em alusão à Declaração Universal da Democracia, assinada dez anos antes em conferência interparlamentar, na cidade do Cairo, no Egito. 

Em 1997, quando o Brasil assinou a Declaração Universal da Democracia, a Constituição do país passava pelo processo de regulamentação, nove anos após a promulgação. A Ditadura Militar, acabada em 1985, ainda era um processo recente e uma memória próxima. O fim do estado de exceção da era Vargas estava a distantes 60 anos, em 1937, e mesmo a proclamação da República tinha pouco mais de um século. 

Na 17ª edição do Dia Internacional da Democracia, comemorado neste domingo (15), especialistas ouvidos pela Agência Brasil chamaram a atenção para a necessidade de manter continuamente ativa a defesa da democracia diante dos riscos experimentados nos últimos anos. O país agora passa por um duro processo de radicalização política e polarização que teve seu auge no pleito de 2017 e esteve perto de ameaçar a continuidade do respeito às urnas, na tentativa de golpe em 08 de janeiro de 2023. 

Acervo/Instituto Vladimir Herzog

“A democracia brasileira vem sofrendo com ataques sistemáticos e  a violação de sua constituição por parte de setores nada comprometidos com o estado democrático de direito. Isso ficou ainda mais evidente no último governo [de Jair Bolsonaro], e, sobretudo, com os atentados no dia 8 de janeiro de 2023. Se não fosse, justamente, o compromisso e a solidez de algumas das nossas instituições, não estaríamos falando hoje sobre a fragilidade da democracia brasileira, ou, até mesmo como aperfeiçoá-la”, destaca o diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sottili. 

Segundo ele, a democracia brasileira ainda carece de mecanismos robustos para a promoção de direitos e justiça, que impeçam a impunidade daqueles que atentaram contra o regime democrático no passado. 

“Quando um país não articula seu passado de violência, agindo contra aqueles que atentaram e atentam livremente e abertamente contra o estado democrático de direito, como o Brasil não fez no passado, o que temos é uma cultura de impunidade, que favorece ataques como os que temos visto”, ressalta. 

“Precisamos entender que o passado está sempre à nossa porta e enquanto não agirmos efetivamente, tornaremos a vivenciar episódios de ataques contra a nossa democracia hoje e amanhã”, acrescenta. 

Justiça

A procuradora Regional da República e presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugenia Gonzaga, enfatiza que o Brasil não fez sua Justiça de Transição, após o período da ditadura militar (1964-1985), e que agora paga pelo erro.

“No mundo todo, onde se estuda situações em que houve quebra da legalidade, em que se passou de ditaduras para regimes democráticos, verifica-se que se fez necessário promover a reparação das vítimas, a responsabilização dos autores, dos agentes de segurança que contribuíram para essa situação”, afirma. 

A falta de responsabilização abre caminho para a repetição de novas ações contra a democracia, segundo ela. “O 8 de Janeiro de 2023 tem tudo a ver com esse processo de não revelação da verdade, de omissão, de negação daquilo que aconteceu como golpe. Tem a ver com a impunidade desses autores, com a divulgação da falsa história de que [o golpe de 1964] salvou o país do comunismo”. 

Presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugênia Gonzaga. Bruno Spada/Câmara dos Deputados

“A defesa da democracia infelizmente é um processo muito delicado, muito difícil é por isso que a gente tem que ter instrumentos de combate a essas arbitrariedades e a essas tentativas de se jogar para baixo do tapete as investidas contra a democracia”, acrescenta.

A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos foi reinstalada em julho deste ano pelo presidente Lula, depois de ter sido encerrada em 2022, durante o governo Bolsonaro.

Sessenta anos após o golpe (confira especial), estudos apontam a existência de 144 pessoas desaparecidas na ditadura militar. Existem também casos de pessoas com a morte confirmada pelo Estado, mas com o corpo desaparecido. Entre elas, o estudante de geologia da Universidade de Brasília, Honestino Guimarães, possivelmente morto em 1973 por agentes da ditadura.

Desinformação

Segundo Nilmário Miranda, jornalista e ex-deputado federal, preso político nos anos 1970 e assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), a construção de memórias baseadas na verdade é um dos principais pilares da democracia. Esse processo, no entanto, foi colocado em xeque em razão das fake news. 

“Não há democracia com base em Fake News, apropriação e mudança da história. A Democracia só se relaciona com memória verdadeira e com a construção de memórias, por isso a sua manutenção e ações como a Comissão da Verdade vão além dos governos e se relacionam com políticas de Estado”, defende. 

Ex-ministro dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, durante ato na Ponte que se chamava Costa e Silva e passou a se chamar Honestino Guimarães na semana de luta pela Democracia (2023). Joédson Alves/Agência Brasil

“Há uma importância em manter a memória viva e ainda é válido e necessário lembrar o lema da Comissão: para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça. Isso tem de estar na vida do país, tem de fazer parte da educação, para evitar algo como o golpe que quase aconteceu em 8 de janeiro”, acrescenta. 

Ele lembra  que na ditadura militar foram 750 parlamentares cassados, mais de 30 mil pessoas relataram algum tipo de tortura e houve 434 mortos e desaparecidos. “Isso tem de ser de conhecimento de todos. Se não, volta, se repete. A História mostra que volta. A verdadeira democracia precisa disso”.

Avanço

Adriano Diogo, geólogo e político, preso político durante a Ditadura Militar, e membro da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, considera que a democracia tem enfrentado um grande desafio na era da comunicação digital. Ele ressalva, no entanto, que o sistema democrático ainda é o mais avançado que existe.

“Estamos em um momento difícil, em que o peso da comunicação digital atrapalha o processo, mas não podemos parar de lutar, de gritar, de disputar e ganhar eleições, que é a única forma de garantir a continuidade da Democracia”.

“Ela pode ter todos os seus problemas, mas é o mais avançado e revolucionário que temos no momento, e o que garante a participação do povo, que é o centro da decisão. É a partir da vontade popular que se constrói gerações”, acrescenta.