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Direitos humanos é para todos e deve proteger mais vulneráveis

“Direitos humanos para humanos direitos”. Esse é o pensamento de um terço da população brasileira que acredita que quem mais se beneficia dos direitos humanos são os bandidos. Cerca de 40% dizem que quem menos se beneficia é o pobre. Os números estão em pesquisa divulgada em 2022 pela ONU Mulheres. As garantias descritas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no entanto, buscam conferir dignidade a todos. A carta de princípios completou 75 anos no último dia 10 de dezembro. 

“Alguns dos discursos sobre os direitos humanos vêm de um desconhecimento sobre o que significam esses direitos e como eles estão presentes no dia a dia de todas as pessoas”, diz Moema Freire, coordenadora de Governança e Justiça do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Ela acrescenta é que é preciso um olhar especial para grupos vulnerabilizados. “[Que foram] historicamente marginalizados, que têm ainda menos acesso às políticas públicas e precisam de mais proteção do Estado como provedor desses direitos”, defende.

Moema destaca que esses direitos dizem respeito a todos os indivíduos, independentemente da condição social e da localização geográfica. “Isso é muito importante ter em mente. Os direitos humanos protegem primeiro um conjunto de direitos dos indivíduos para que eles possam existir como pessoa, com dignidade básica, educação, saúde, mas também uma proteção do Estado”, explica a coordenadora.

Ela lembra que a declaração, por outro lado, impõe limites à atuação do Estado para que não haja violações da liberdade das pessoas. “Ao mesmo tempo, garante condição, por exemplo, para que as pessoas possam participar da vida pública, votar, participar nas definições com relação às políticas públicas e ter acesso aos bens culturais, à preservação do meio ambiente”, exemplifica.

Neidinha Bandeira, ativista da Associação de Defesa dos Direitos Humanos e da Natureza Canindé, reconhece na sua vivência a importância dessas garantias. “O direito humano para mim é o direito à vida e ao território. Isso significa que você tem que ter garantidas saúde, educação, moradia. Seu território protegido. Demarcação das terras indígenas e dos quilombos. Respeito à decisão das pessoas. Respeito à sua religiosidade, à sua espiritualidade. Direitos humanos é garantir às pessoas todos os aspectos da vida.”

A ativista Neidinha Bandeira fala sobre os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos – Foto TV Brasil

Visão distorcida

Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), acha que dois aspectos colaboram para essa visão distorcida sobre direitos humanos. Primeiro o que ele chama de patrimonialismo.

“É a ideia de que no Brasil as leis têm dono. As leis pertencem a algo, a alguém, algum sistema de interesse que é responsável por definir a sua aplicação ou não. O escopo de sua aplicação, os regimes de excepcionalidade e que, portanto, a lei, no sentido daquilo que governa o espaço público, é sempre interpretada como um privilégio”, argumenta.

O segundo aspecto é uma forte tradição autoritária. “A nossa incapacidade histórica de perceber transformações democráticas e regressões democráticas. Soluços democráticos. A gente teve períodos anteriores, desde a Proclamação da República até a abolição da escravatura, em que os ganhos democráticos são sentidos como benesses senhoriais: alguém que está concedendo, deixando, dando uma certa dignidade para o outro”, lembra.

Para o historiador Marcos Tolentino, a saída é a educação. “É importante a gente falar de direitos humanos na escola. Não só para evitar interpretações equivocadas sobre o que essa discussão significa, sobre o que está por trás desse direitos, mas também para a gente entender que nós todos somos beneficiados por termos o guarda-chuva dos direitos humanos reconhecido pelo Estado brasileiro, por termos leis que garantam os nossos direitos.”

LGBTQIA+ reivindicam direitos básicos para existir de forma plena

“Você conhece alguma coisa humana não nomeada?”. Quem lança a pergunta é uma ativista pelos direitos LGBTQIA+ e que está a frente de uma casa de acolhimento em São Bernardo Campo. “A importância de ter um nome? A importância de ter uma vida. O nome define sua vida. Eu sou Neon Cunha, mulher negra, ameríndia e transgênera. Nessa ordem de importância.”

Ter um nome é um direito tão básico que sequer há uma referência a isso na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completou 75 anos no último dia 10 de dezembro. Mas o direito de existir e viver com dignidade já aparece de cara no primeiro artigo. “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”, diz o texto.

Neon aprendeu bem jovem que precisaria lidar com o racismo, a discriminação, a violência de gênero e a transfobia. Ao fazer parte de um grupo que tem uma expectativa média de vida de 35 anos, Neon também aprendeu com a morte. 

“Uma coisa que me marcou muito ao longo da vida foi que todas as minhas amigas foram enterradas de uma forma que eu nunca reconheci. Se eu tivesse que procurar hoje essas pessoas em uma lápide, eu jamais teria acesso. Porque as famílias requereram, porque o Estado requereu. Algumas foram como indigentes, outras as famílias ‘limparam essa sujeira’ que elas fizeram. Limparam seus nomes enterrando o morto. Não a morta”, relata.

Foi assim que Neon pediu para morrer. Ela entrou com um processo na Organização dos Estados Americanos (OEA), em 2014, para ter o direito de ser reconhecida como mulher. Foi ao limite. Pediu que, caso a sua existência, expressa no gênero e no nome, não fosse reconhecida, queria a autorização para uma morte assistida.

“Quando é que você percebe que não dá mais para viver sobre a condição do outro, sobre a condição imposta? Qual era a estratégia de sobrevivência? Porque eu nunca fui lida como homem. Eu me dei conta que eu não tinha nada mesmo”, conta a ativista sobre a decisão de levar a frente o processo.

Neon relata que foi expulsa de casa em 1992. “Aconteceu tudo o que tinha que acontecer com uma pessoa trans. Mas eu perdi mais o quê? O que não vai ter é esse nome [masculino] na lápide. Eu abri o processo, pedi uma morte assistida e denunciando também, mais uma vez, o Brasil nesse crime que ninguém conseguia nomear, que ninguém conseguia expor. Eu não falo nem de transfobia, eu falo de cissexismo. Essa ideia de que o gênero da pessoa cis é mais legítimo do que a pessoa trans”, explica.

Com a vitória, retificou o nome e o sexo sem precisar fazer cirurgias de redesignação de sexo. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) é de 2018 e abriu caminho para que homens e mulheres trans tivessem acesso ao mesmo direito.

“Transição? Todo mundo está em transição. A pessoa sai de feto, de feto para bebê, de bebê para criança e olha que estou só usando os termos neutros que cabem à primeira infância. E depois que se desenvolve para adolescente e depois para uma idade adulta. Eu não estou falando nem de gênero. Eu estou falando de uma transição humana. Transição está posta o tempo todo. Mas só essa determinada categoria de pessoas que reivindicam outro processo humano que é exigido o reconhecimento.”

Conquistas

A população LGBTQIA+ tem conquistado avanços na sociedade brasileira: o direito à união entre pessoas do mesmo sexo, o direito à retificação de sexo e o direito de adoção de filhos. No Brasil, essas decisões estão vinculadas, geralmente, ao Poder Judiciário. Na política, o Brasil elegeu, em 2022, as duas primeiras deputadas federais trans. 

Para Marcos Tolentino, historiador e ativista, a Constituição de 1988 abriu o caminho. “A inspiração da Constituição de 88 em relação à Carta da Declaração Universal de Direitos Humanos é justamente buscar essa ideia de uma cidadania que é de todas as pessoas, de todos os setores sociais que estão no Brasil e, a partir disso, prever algumas especificidades”, aponta. 

O historiador acrescenta que com a Constituição brasileira começam a ser previstas algumas especificidades, como direito de gênero, direito de povos indígenas e direito de pessoas negras. “Por entender que são grupos, são pessoas, são setores sociais que já vinham desse processo de exclusão de direitos.”

Mas ainda há muito a avançar. Há 14 anos o Brasil lidera o ranking dos países que mais matam pessoas trans. Em 2022, foram 131 pessoas assassinadas, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Vinte pessoas tiraram a própria vida em razão da discriminação e do preconceito. 

“Toda vez que eu acesso esse lugar do direito humano, eu fico perguntando quando ele vai ser pleno para nós. E essa plenitude é justamente pelo que vou lutar. Eu vou lutar por políticas públicas, vou lutar enquanto ativista, vou disputar a política institucional, vou. Mas vai ser pleno? Toda vez que eu penso nisso, nessa questão de direito à humanidade plena, eu espero que um dia essa humanidade entenda que trans é um código de liberdade”, propõe.

Apenas 5% dos povos negros da AL têm direitos à terra reconhecidos

No último dia 5 de dezembro, durante a Convenção nas Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP28), realizada em Dubai, Emirados Árabes, líderes afrodescendentes do Brasil, Colômbia e Honduras apresentaram resultados do estudo “Territorialidade dos Povos Afrodescendentes da América Latina e do Caribe em Hotspots de Biodiversidade”.

Esse estudo mostrou que apenas 5% dos povos negros dessas regiões têm reconhecimento legal de seus direitos coletivos à terra e ao território. Esses povos estão presentes em 205 milhões de hectares, englobando 16 países da região. Além disso, dados demonstram que as comunidades de povos negros da América Latina contribuem para a preservação do meio ambiente em seus territórios.

Essa foi a primeira análise regional a documentar a presença territorial dos povos afrodescendentes e sua importância para a América Latina e o Caribe em termos de desenvolvimento, mitigação e adaptação às mudanças climáticas e conservação.

O evento foi encerrado nessa terça-feira (12). O objetivo era convocar os Estados e os parceiros da região da América Latina e Caribe a promover e implementar reformas para o reconhecimento e a titulação dos territórios dos povos afrodescendentes, como forma de garantir um caminho eficaz para a mitigação e a adaptação às mudanças climáticas.

A discussão foi organizada pela Rights and Resources Initiative (RRI) e contou com a presença de Susana Muhamad, ministra do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Colômbia; Omaira Bolaños, da RRI; Jose Luis Rengifo, do Proceso de Comunidades Negras (PCN); Katia Penha, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) do Brasil; Gregoria Jimenez, da Organização para o Desenvolvimento das Comunidades Étnicas (Odeco), de Honduras; e Clemencia Carabali, da Associação de Mulheres Afrodescendentes do Norte do Cauca (Asom).

A diretora do Programa para a América Latina da RRI, Omaira Bolaños conversou com a Agência Brasil:

Agência Brasil: Como o estudo “Territorialidade da Biodiversidade dos Povos Afrodescendentes na América Latina e no Caribe”, apresentado na COP 28, em Dubai, pode contribuir para reduzir os efeitos das mudanças climáticas?

Omaira Bolaños: É importante destacar que esse é o primeiro estudo a documentar a presença territorial dos povos afrodescendentes e sua importância para a América Latina e o Caribe em termos de desenvolvimento, mitigação e adaptação às mudanças climáticas e conservação. Trata-se de um esforço conjunto entre a RRI, a PCN, a Conaq, o Observatório de Territórios Étnicos e Camponeses (Otec) e outras 20 organizações de base que o acompanham.

A análise revela que há 205 milhões de hectares em 16 países da região com a presença territorial de povos afrodescendentes. Entretanto, apenas 5% têm reconhecimento legal de seus direitos coletivos à terra e ao território. Essa análise também mostra que há mais de 1.271 áreas protegidas dentro ou adjacentes aos territórios dos povos afrodescendentes, 77% das quais têm transformação natural reduzida, o que demonstra a enorme contribuição dessas comunidades na proteção de áreas de alto valor ecossistêmico.

O Brasil é um país significativo diante dos dados acima, pois 67% dessas áreas estão localizadas em municípios certificados com a presença de comunidades quilombolas sem titulação coletiva.

Agência Brasil: Que papel as comunidades tradicionais podem desempenhar na mitigação das mudanças climáticas?

Omaira Bolaños: As comunidades são as protagonistas dessa ação. As conclusões do estudo identificam a situação de modo que, a partir desse ponto de partida, há muito trabalho a ser feito para o reconhecimento e a proteção dos direitos das populações quilombolas dentro dos regimes legais de direitos de propriedade coletiva. O meio ambiente é preservado quando os territórios quilombolas são protegidos. A gestão territorial quilombola é conservacionista por excelência.

Agência Brasil: Embora a população afrodescendente na América Latina e Caribe represente cerca de 30% da população total da região, os direitos das comunidades tradicionais ainda não são reconhecidos por muitos países. O que deve ser feito para reverter essa situação?

Omaira Bolaños: Um evento dessa magnitude, que reúne líderes regionais para apresentar os resultados do estudo sobre a presença territorial dos povos afrodescendentes e sua importância para a América Latina e o Caribe em termos de desenvolvimento, mitigação e adaptação às mudanças climáticas e conservação, já é um passo importante para envolver diferentes governos na necessidade de implementar políticas que reconheçam os direitos de posse territorial dos povos afrodescendentes e sua importância na agenda global e nas metas de mitigação das mudanças climáticas e conservação da biodiversidade.

Segundo Omaira Bolaños, estudos mostram que quando detêm direito à propriedade, comunidades afrodescendentes aumentam a capacidade de evitar o desmatamento. Foto: Ricardo Alvez

Agência Brasil: As florestas tropicais representam cerca de 87 milhões de hectares nos territórios mapeados dos povos afrodescendentes, muitos dos quais estão localizados em áreas consideradas de biodiversidade. O que pode ser feito para garantir que esses territórios sejam reconhecidos como de grande valor para a preservação do planeta? E que políticas públicas os governos deveriam introduzir para proteger e garantir os direitos das pessoas de ascendência africana, como os quilombolas?

Omaira Bolaños: O Brasil é um país significativo diante dos dados acima, pois 67% dessas áreas estão localizadas em municípios certificados com a presença de comunidades quilombolas sem titulação coletiva. Apenas 1.093.645,1 hectares foram legalmente reconhecidos às comunidades quilombolas no Brasil. Ainda há pedidos de reconhecimento de 2.387.859,7 hectares de terras de comunidades quilombolas pendentes. O Brasil é um dos poucos países com um arcabouço legal robusto e uma estrutura institucional com capacidade para avançar na implementação de políticas de direitos de posse de terra para comunidades quilombolas em nível nacional e subnacional.

Vários estudos demonstram que, quando as comunidades têm direitos legais de posse sobre suas terras, sua capacidade de evitar o desmatamento e proteger a biodiversidade aumenta. Garantir os direitos à terra e aos recursos das comunidades quilombolas é uma das maneiras mais eficazes de avançar em direção às metas do Brasil em relação à mitigação das mudanças climáticas e à proteção da biodiversidade. O estudo mostra o papel significativo que as terras das comunidades afrodescendentes em toda a América Latina têm na proteção dos inestimáveis recursos florestais da Terra.

Esperamos que essa abordagem possa amplificar as vozes da população local e envolver proativamente governos, instituições multilaterais e atores do setor privado na adoção de reformas institucionais e de mercado para apoiar os direitos de posse das comunidades quilombolas, de modo que elas continuem desenvolvendo estratégias que apoiem a sustentabilidade da floresta e protejam a biodiversidade”.

Agência Brasil: Em 11 países, os direitos à terra desses povos foram reconhecidos, mas em outros isso ainda não aconteceu. O que as organizações não governamentais (ONGs) da América Latina e do Caribe ligadas à causa dos afrodescendentes propõem para remediar essa situação?

Omaira Bolaños: Acreditamos que a saída para a crise pode ser identificada pelas comunidades e territórios que sofrem esses impactos. Eles são os protagonistas dessa ação. Uma maneira é conhecer melhor os territórios, inclusive os que estão ao nosso redor. A coalizão para a produção do estudo em 16 países da região com a presença territorial de povos afrodescendentes, um esforço conjunto entre a RRI, o PCN, a Conaq, o Observatório de Territórios Étnicos e Camponeses (Otec) e outras 20 organizações de base que o acompanham, abre caminho para que sejam criadas soluções nas comunidades e nos territórios para problemas complexos.

A coalizão de organizações afrodescendentes e aliados que trabalham juntos nessa estratégia regional baseia-se em um roteiro que define duas grandes ações inter-relacionadas: o mapeamento de seus territórios e o ‘status’ legal do reconhecimento dos direitos de posse sobre esses territórios. Essas duas ações têm o objetivo de informar a cada um dos governos e às comunidades doadoras internacionais e bilaterais onde novas políticas precisam ser criadas ou implementadas e o nível de apoio – nacional ou subnacional – para garantir o avanço dos direitos à terra das comunidades afrodescendentes e quilombolas.

Em sabatina, Gonet comenta cotas raciais e direitos da população LGBT+

Indicado para ocupar o cargo de procurador-geral da República (PGR), Paulo Gonet negou ser contrário à política de cotas raciais e defendeu que casais homoafetivos devem ter acesso a direitos civis. Gonet enfrenta sabatina na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, nesta quarta-feira (13), e respondeu aos questionamentos do senador Fabiano Contarato (PT-ES), que é homossexual assumido.

O senador capixaba questionou Gonet sobre a posição dele em relação à política de cotas raciais e citou artigo escrito por ele em 2002. “O senhor chegou a afirmar: ‘O sistema de cotas é capaz de engendrar injustiças inaceitáveis, política e juridicamente’. O senhor chega a falar também em racismo reverso”, questionou o petista. 

Gonet respondeu que nunca foi contra as cotas e que o artigo foi lido “fora de contexto”. “Em nenhum momento eu disse que era contrário às cotas. E agora eu posso reafirmar: sou favorável às cotas, respeitadas as necessidades que as recomendam”, disse. 

O indicado a procurador-geral acrescentou que defende que a política seja revista periodicamente. “Porque se o problema que a cota quer resolver já for solucionado ao longo do período, ela deixa de se justificar”, completou.

Sobre o termo “racismo reverso”, conceito criticado por organizações do movimento negro, Gonet disse que escreveu sobre “discriminação reversa” e que, quando falou sobre o tema, o conceito era comum à época.

“Discriminação reversa hoje pode soar estranho para os nossos dias, mas, no final da década de 90, início dos anos 2000, que é quando o artigo foi escrito, essa era uma expressão corrente”, justificou. 

No artigo Ação Afirmativa e Direito Constitucional, escrito em 2002, Gonet afirma que “formas de promoção de grupos desfavorecidos, se propiciam vantagens não extensíveis a todos os integrantes da sociedade, não criam dano direto a terceiros, não provocando o alarido que costuma ecoar  das medidas chamadas de discriminação inversa (ou reversa)”. 

Direitos LGBT+

O senador Fabiano Contarato provocou Gonet sobre sua posição em relação aos direitos dos casais homoafetivos e a criminalização da homofobia. “Qual a posição do senhor, enquanto guardião da Constituição Federal, sobre a adoção por casais homoafetivos?”, questionou Contarato. 

Paulo Gonet disse não ser contra a criminalização da homofobia e que vai sempre defender aquilo que a jurisprudência ou o legislador tiver definido. “O que eu posso dizer, com absoluta convicção, é que, se vossas excelências, no Parlamento, decidirem tipificar essa conduta como crime, eu acho que está perfeitamente dentro das atribuições constitucionais do nosso Legislativo”, completou. 

Em relação ao casamento gay, Gonet disse que “nós já estamos num momento em que essas situações já estão regradas, tanto pela lei quanto pela jurisprudência, e, com relação a isso, eu não teria nenhum interesse de agir de modo contrário”. 

Não satisfeito com a resposta, Contarato voltou a perguntar se ele é favorável ou contrário ao casamento homoafetivo, uma vez que existe um projeto na Câmara dos Deputados querendo proibir o casamento de pessoas do mesmo sexo. 

O subprocurador Gonet disse que, como jurista, tem que admitir a união estável uma vez que o Supremo decidiu que esse direito é compatível com a Constituição.  Como opinião pessoal, o indicado à PGR destacou “que seria tremendamente injusto que duas pessoas que vivem em conjunto, que vivem juntas, que vivem como se fosse uma unidade familiar não tivessem nenhum reconhecimento desse fato”. 

Após 75 anos da Declaração de Direitos, torturas e guerra persistem

“Nossa declaração apresenta-se como o protesto mais vigoroso e necessário da humanidade contra as atrocidades e opressões das quais milhões de seres humanos foram vítimas ao longo dos séculos, principalmente durante as duas últimas grandes guerras.”

Esse foi o discurso do jurista René Cassin em Paris, no dia em que foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948. Cassin é um dos principais autores do texto. Ele lutou na Primeira Guerra Mundial e testemunhou o Holocausto da segunda. A barbárie catalisou a necessidade do compromisso firmado há 75 anos.

Mas, apesar das promessas, as atrocidades persistiram: Vietnã, em 1968; genocídio de Ruanda, em 1994, bombardeios a Gaza, na Palestina, em 2023. E o Brasil, durante a ditadura militar, também permitiu atrocidades.

No dia 20 de novembro de 1970, em São Paulo, o estudante secundarista Emilio Ivo Ulrich, que lutava contra a ditadura militar, foi preso e levado para o recém-criado Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).

Emilio Ulrich foi preso e levado para o DOI-Codi – TV Brasil

“A partir daquele centro ali, as pessoas já estavam peladas. Já estavam sendo torturadas. Pelo simples ato de atravessar o pátio e esperar. Aqui e aqui em cima funcionavam então as salas de tortura”, relembra Emílio Ulrich, que, mais de 50 anos depois, voltou ao DOI-Codi para esta entrevista.

O prédio de três pavimentos com grades no lugar de portas e um pátio que hoje serve de estacionamento foi um dos maiores centros de tortura da ditadura militar. Emílio superou a dor física, mas ainda carrega as marcas da desumanização.

“Uma noite, que eu já tinha passado muito tempo no pau de arara, tinha passado para a cadeira do dragão, palmatória, choque elétrico e eu não consegui parar de pé. Então eu fiquei de quatro pé. Eles colocaram a coleira no meu pescoço e com a cordinha eles me puxaram até o chuveiro. Enquanto eu era arrastado, me chutavam a bunda, faziam gozação, brincavam: ‘Dá um osso que ele levanta!’. Um instrumento de tortura que realmente acabou comigo foi esse. Porque eu fui transformado em um cachorro!”, relata.

Dependências do antigo centro de repressão da ditadura DOI-Codi – Paulo Pinto/Agência Brasil

Quem comandou a sessão de sadismo foi o coronel Carlos Brilhante Ustra, que chefiava o DOI-Codi. O militar chegou a ser homenageado pelo então deputado federal Jair Bolsonaro, ex-presidente da República, ao proferir o voto pelo impeachment de Dilma Rousseff, também torturada por Ustra. “O terror de Dilma Rousseff”, disse Bolsonaro no plenário da Câmara dos Deputados em abril de 2016.

Em um contexto de impunidade, Emílio não acredita que seja possível construir uma democracia. “Eu não posso perdoar as Forças Armadas pelos males que eles praticaram. Eles não fizeram isso só com quem foi preso. Eles fizeram mal à nação brasileira, e eles foram anistiados. Eles estão aí. Eles mantêm a estrutura de poder. É a mesma da época [do período da ditadura]. Os civis, no Brasil, são subjugados a essa estrutura militar. Esse é um país subjugado. O que eu digo é o seguinte: nós temos sopros, direções democráticas que podem ser aproveitadas, que podem acontecer. Mas isso nos dá uma noção falsa de democracia.”

Passar a limpo

Segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), 434 pessoas morreram nas dependências do centro. Emílio não sobe as escadas que levam até as salas onde foi torturado por 30 dias. “Eu não subo lá. Eu só subi a primeira vez, anos atrás, durante o trabalho da comissão da verdade. Me arrebenta. Eu não consigo.” Mas o trauma não é apenas individual.

“O trauma não é um destino. O trauma é um desafio subjetivo. Ele envolve um trabalho subjetivo, pessoal, mas também coletivo, um trabalho em que a memória reabilita as relações. Se você não pode ir a um lugar, é porque não tem dispositivos que estão te ajudando a ir a um lugar. A comparação é, de novo, brutal. Nossos vizinhos argentinos tiveram uma ditadura um pouco depois da nossa e você vai ao Parque do Prata e você encontra 30 mil nomes de pessoas que foram desaparecidas durante a ditadura militar. Onde é que estão os nossos memoriais?”, questiona o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

O professor critica ainda o fato de que o país não reviu estruturas autoritárias, como a polícia. “O Brasil foi o último país a ter uma comissão da verdade, e ela foi bloqueada na divulgação dos seus resultados. O nosso letramento policial para os direitos humanos é abaixo do sofrível. Onde estão os professores, onde estão as academias abertas, onde estão aqueles que estão promovendo uma cultura diferente, uma cultura que poderia fazer nossos policiais, que ainda são militares, PM? Isso é um atraso. O resíduo obsceno da ditadura militar”, avalia.

Maurício Monteiro é sobrevivente do Massacre do Carandiru – TV Brasil

E, sem passar a limpo a história, os erros se repetem e os direitos mais básicos ficam no papel. “Direitos humanos é uma coisa tão ampla, mas hoje eu traria como [o direito à] vida, porque acho que deveria ser o direito que todo mundo deveria ter. E nós, principalmente, pretos, pobres e periféricos. Nós não temos esse direito.”, aponta Maurício Monteiro, sobrevivente do Massacre da Casa de Detenção do Carandiru, em 1992, em São Paulo.

Direito à vida tirado de 6.429 pessoas que morreram em intervenções policiais em 2022. Uma média de 17 pessoas por dia, sendo que oito a cada dez dos mortos eram pessoas negras. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022.

Maurício Monteiro atua hoje como educador e mediador no Espaço Memória Carandiru, além de ser empresário e manter o canal Prisioneiro 84.901 no YouTube.

Ouça na Radioagência Nacional:

Brasil é um dos países mais perigosos para defensores de direitos

“Eu sofri uma tentativa de homicídio dentro deste território no começo deste ano”. O relato é do xondaro ruwixa Tiago Henrique Karai Djekupe, da Terra Indígena Jaraguá. Xondaro ruwixa significa líder  entre os guerreiros, em guarani. Na semana em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 75 anos, a Agência Brasil, em parceria com a TV Brasil e com a Rádio Nacional, publica uma série de reportagens sobre o tema. 

No Brasil, o papel de ativistas e movimentos sociais é imprescindível para que direitos e garantias fundamentais saiam do papel. Mas ser um defensor de direitos humanos no Brasil significa correr riscos. 

Levantamento das organizações Terra de Direitos e Justiça Global mostrou que, de 2019 a 2022, o Brasil registrou 1.171 casos de violência contra defensores de direitos humanos, com 169 pessoas assassinadas. Uma marca que coloca o Brasil entre os países mais perigosos do mundo para quem defende os direitos humanos.

“[Situações de] Pessoas passarem na frente da aldeia e ameaçar com arma. Apontar. Falar na região que minha cabeça estava a prêmio. Isso é o que vem trazendo essa dificuldade de eu conseguir… viver mesmo”, declara emocionado o jovem, de 29 anos, que é estudante de arquitetura e urbanismo da Escola da Cidade. 

São Paulo – Polícia militar atira bombas de gás lacrimogêneo contra manifestantes guaranis do Jaraguá – Foto Rovena Rosa/Agência Brasil (Arquivo)

Karai Djekupe é porta-voz de uma história ancestral. “Eu sou nascido neste território, Terra Indígena Jaraguá. Nosso território, que foi invadido em 1580 pelo bandeirante Afonso Sardinha, traficante de escravo angolano e conhecido como matador de Carijós. Carijós que eram como nos chamavam, o povo Mbya Guarani”, conta. A história é antiga e complexa, mas ajuda a entender o contexto em Karai Djekupé passou a correr risco de vida. 

Histórico

A Terra Indígena Jaraguá fazia parte de um aldeamento do século 17, o Barueri, informa relatório da Fundação Nacional do Índio (Funai) de 2013, assinado pelo antropólogo Spensy Pimentel. Depois de séculos de colonização, muitos indígenas morreram, e alguns adotaram a cultura dos colonizadores. Outros resistiram. Nos anos de 1960, a família de Djekupé foi expulsa de outro aldeamento guarani, no Sul do Brasil. Os avós seguiram, à força, para São Paulo, onde encontraram guaranis remanescentes do Barueri no Pico do Jaraguá. 

O Jaraguá é um pedacinho preservado da Mata Atlântica em plena cidade de São Paulo. O território foi demarcado em 1987 com apenas 1,7 hectare, a menor reserva indígena do Brasil. Em 2015, último ano do governo de Dilma Rousseff, a TI foi ampliada e passou a ter 532 hectares. Em 2016, uma portaria do então presidente Michel Temer voltou a reduzir o território, dessa vez para 3 hectares. Os indígenas recorreram à Justiça e uma liminar suspendeu a vigência da portaria. 

O texto de 2016, no entanto, nunca foi, de fato revogado, e o fantasma da redução do território segue assombrando os guaranis do Jaraguá. A reserva indígena é cercada por grandes rodovias, lugar estratégico para os serviços de logística e cobiçado pelo mercado imobiliário. Karai Djekupe aprendeu cedo que os interesses econômicos de gente poderosa alimentam a disputa.

São Paulo – Interdição da Rodovia dos Bandeirantes pelos indígenas do Jaraguá – Foto Rovena Rosa/Agência Brasil (Arquivo)

“Quando eu tinha por volta de 9 anos de idade chegou aqui a família Pereira Leite. A família de Joaquim Pereira Leite, que foi ministro do Meio Ambiente do [ex-presidente Jair] Bolsonaro. Ele veio reivindicando uma das áreas que estavam se formando na aldeia, que chama de Tekoa. A Tekoa Pyau fica encostada na Rodovia dos Bandeirantes e ele chegou falando que queria fazer ali uma transportadora, acesso para a rodovia, que a área ali era dele, era uma gleba. E ele queria que nosso xeramõi [meu avô] aceitasse um punhado de dinheiro em troca de sair da terra. Nosso xeramõi falou que não se trocava terra por papel e que a gente ia ficar ali, que aquela terra era sagrada para nós”, lembra. 

Luta por direitos

A família Pereira Leite é apenas uma das 15 que reivindicam a propriedade de partes da Terra Indígena Jaraguá. Karai Djekupe entrou para a lista de defensores de direitos humanos que são vítimas de violência no Brasil. O levantamento da Terra de Direitos e da Justiça Global mostra que corre ainda mais risco quem luta pelo direito à terra ou defende o meio ambiente, como é o caso dos guarani em São Paulo. De cada dez casos de agressões, oito foram de pessoas envolvidas em conflitos fundiários. Do total, 140 defensores e defensoras foram assassinados por defender seus territórios. 

O indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips, mortos no Vale do Javari em 2022, entram nessa estatística. Mas o levantamento ainda não inclui o assassinato de Maria Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete, liderança do Quilombo de Pitanga dos Palmares, na Bahia, assassinada em 2023 na frente dos netos, no dia 17 de agosto. Não é por acaso que indígenas e quilombolas estão entre as principais vítimas na luta por direitos. 

“Ela [a luta por direitos] está atravessada por uma dicotomia, vamos dizer assim, que persiste desde o nosso passado escravagista, que é uma dicotomia entre os alguém e os ninguém”, diz o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

São Paulo – Polícia Militar atira bombas de gás lacrimogêneo contra manifestantes guaranis do Jaraguá – Foto Rovena Rosa/Agência Brasil

Foi com lágrimas nos olhos e a voz embargada que Karai Djekupe disse o que significa ser uma pessoa alcançada pelos direitos humanos. “Acho que é o direito de viver. Não ter medo que alguém mate seu filho. Não ter medo de sair na rua e alguém te dar um tiro. Por você simplesmente querer defender a sua forma de ser. Acho que é isso. Desculpa”, disse à reportagem.

Dunker questiona esse cenário em que os direitos são garantidos parcialmente, numa lógica excludente. “Aqueles que têm lugar onde moram, têm habite-se, que constroem segundo as leis, pagam impostos, são reconhecidos pelo Estado, têm acesso à saúde e educação. E aqueles que estão no universo do, digamos assim, vida sem valor, que podem ser matadas impunemente, que são ninguém, que são quase gente. A gente força a mão ao dizer isso porque esse é um regime tácito de negação de direitos humanos.”

A reportagem tentou contato com o ex-ministro do Meio Ambiente Joaquim Pereira Leite, mas não conseguiu até a liberação desta matéria. 

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Garantir padrão de Declaração Universal dos Direitos é desafio atual

A Declaração Universal dos Direitos Humanos – carta de princípios a ser seguida no mundo inteiro para garantir vida digna a todas as pessoas – completou 75 anos nesse domingo (10). O texto foi aprovado pela Organização das Nações Unidas (ONU), criada na época e ainda abalada pelos horrores da Segunda Guerra Mundial. Anos depois, ainda é um desafio para muitos alcançarem os parâmetros estabelecidos pelo documento.  

“Se realmente existem os direitos humanos, por que não estão na prática? Por que não servem para todo mundo? Para o índio? Para os quilombolas? Cadê nossos direitos?! Onde foram parar?!”, questiona Gleide Farias, líder comunitária de Porto de Areia, favela que fica em Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo, a cidade mais rica do Brasil. “O direito está aí, que é para todos terem moradia digna neste Brasil, e é por isso que sou uma liderança.” 

Em Porto de Areia vivem cerca de mil famílias que convivem com falta de infraestrutura, saneamento, água e energia. A comunidade surgiu no início dos anos 2000, depois que as famílias perderam tudo em um incêndio em outra favela, no centro de São Paulo. A saída foi ocupar o terreno vazio entre uma antiga cava de mineração e um lixão. Lutar por direitos faz parte do cotidiano da comunidade, direitos que, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, já deveriam estar assegurados, de acordo com o compromisso firmado há 75 anos pelos países que integram as Nações Unidas, entre eles o Brasil. 

“É de primordial importância que tenhamos em mente o caráter básico desse documento. Não é um tratado. Não é um acordo internacional. Não é e não pretende ser uma declaração de lei ou obrigação legal”, declarou Eleonor Roosevelt no dia da aprovação do texto em 10 de dezembro de 1948. A ex-primeira dama dos Estados Unidos presidiu a comissão que elaborou a declaração. Coube a ela explicar o caráter do documento: não se trata de uma lei, mas de um compromisso. 

Eleanor Roosevelt durante as discussões da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em julho de 1947. Foto: Kari Berggrav/United Nations Photo

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada por 50 dos 58 países que integravam as Nações Unidas naquele momento. Oito se abstiveram e ninguém votou contra. 

Direitos

A declaração conta com 30 artigos. O primeiro garante que todos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. O segundo explica que esses direitos não distinguem raça, cor, sexo, idioma, religião ou opinião política. Depois garante que todos têm direito à vida, à liberdade e à segurança, e que ninguém pode ser escravizado e nem ser submetido a tortura. Ninguém pode ser detido, preso ou desterrado arbitrariamente. E todos têm direito a julgamentos justos nos tribunais.

O texto também diz que as pessoas têm direito à propriedade e que os espaços privados não podem ser violados. Garante ainda que todos têm direito a uma nacionalidade, a circular livremente e eleger seus representantes e que, em caso de perseguição, de buscar asilo. Prevê ainda que as pessoas têm direito a se casar, desde que na idade adequada. Que o direito à liberdade de pensamento e religião é garantido, assim como à livre opinião e livre associação.

A declaração destaca que cada pessoa tem direito à segurança social, à cultura e às artes, à educação, ao trabalho livre e ao descanso, e a condições de vida adequadas com casa e comida que garantam a saúde e o bem estar. E determina como obrigação o respeito aos direitos dos outros seres humanos. 

Para todas e todos

“É uma declaração de princípios básicos de direitos humanos e liberdades que deve servir como padrão para todos os povos de todas as nações”, completou Eleonor Roosevelt. Mas nem todos conseguem ter acesso a esse padrão. 

“A gente mora numa comunidade. Cadê o direito à água? Cadê o direito à luz? Cadê o direito dos meus filhos, dos filhos dos meu vizinho de ter uma escola boa? Cadê? Onde foram parar esses direitos?”. As questões de Gleide mostram os desafios que não só o Brasil, mas o mundo todo, precisa enfrentar para fazer valer o documento.

Isso não significa, no entanto, que só porque nem tudo o que foi escrito virou realidade, a declaração não seja importante. Pelo contrário. “Eu acho que a gente tem que entender, em primeiro lugar, que direito não é algo em essência. Direito é uma conquista coletiva ou é um processo coletivo de reconhecimento. Às vezes, a gente pensa que o direito é algo que está dado, que é facilmente reconhecido e não é”, diz o historiador e ativista Marcos Tolentino, pesquisador de direitos humanos, gay e HIV positivo. 

Historiador Marcos Tolentino fala sobre 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos – Foto TV Brasil

Tolentino destaca que, entre a teoria e a prática, é preciso que existam pessoas como a Gleide. “Quais os processos que estão envolvidos na afirmação de um direito, no reconhecimento, em uma demanda por direito? Que é fruto de processos culturais, sociais, mas, principalmente, de processos de articulação de setores da sociedade civil. O Estado não acorda um dia e fala assim: tem um direito aqui que a gente acha que está faltando. Você precisa de toda uma articulação social, é sempre esse processo de articulação social, de possibilidade também de articulação política.”

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Desigualdade de acesso aos direitos humanos começa no nascimento

A Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 75 anos neste domingo (10) e destaca as crianças como detentoras do direito a “cuidados e assistência especiais”, como expresso no próprio texto, em seu Artigo 25. Porém, já ao nascer, elas são alvo de desigualdades que influenciarão em toda a trajetória de suas vidas.

A diretora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisa sobre a Infância (Ciespi) da PUC-Rio, Irene Rizzini, destaca que a declaração afirma que todas as pessoas devem ter capacidade de gozar dos direitos previstos no texto, como diz o Artigo 2, “sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. Entretanto, isso não ocorre nem mesmo nas primeiras horas de vida.

“Ao nascer, a criança precisa ser muito bem cuidada, porque ela nasce com muitos potenciais. Mas para atingir esses potenciais, precisa comer bem, precisa de afeto, de cuidados, ela precisa se sentir protegida, se sentir segura, né? O dinheiro é importante para assegurar que ela tenha uma casa, que nessa casa ela tenha alimentação para o corpo desenvolver, para o cérebro desenvolver”, diz Rizzini.

De acordo com Rizzini, que também é professora do Departamento de Serviço Social da PUC, há uma impressão de que apenas os mais necessitados precisam ter os direitos expressos, quando, segundo a diretora, a responsabilidade é compartilhada por toda a sociedade.

 Foto Rovena Rosa/Agência Brasil

“Há uma distorção muito grande sobre isso no próprio entendimento dos direitos. É como se só aqueles que são mais pobres e que têm seus direitos mais claramente violados precisassem desses direitos. Não é isso que a Declaração Universal diz. A nossa desigualdade mostra a nossa ignorância em relação à possibilidade de compartilhar e viver em sociedade”, explica.

Crianças

Quanto à infância, especificamente, a professora relembra que a primeira Declaração dos Direitos da Criança é de 1924, e que os estatutos das agências especializadas colocam que “a humanidade deve à criança o melhor de seus esforços”. Enquanto no Brasil, a legislação ainda criminalizava as crianças pobres, com o Código de Menores de 1927.

“Três anos depois da Declaração Universal de Direitos da Criança, o Brasil ainda estava no minorismo, né? A criança enquanto menor abandonado e delinquente. Nós precisamos sair dos anos de ditadura militar, voltar toda a discussão de uma nova Constituição, com uma militância muito forte em relação à população infantil e adolescente. Principalmente porque nós tínhamos ainda grandes orfanatos lotados de crianças que não eram órfãs, eram apenas pobres e vistas como menores. Essa virada só foi acontecer, marcadamente, com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente”.

Rizzini destaca que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de julho de 1990, só foi aprovado após a Declaração dos Direitos da Criança, proclamado pela ONU em 1989, e da Constituição Federal de 1988, que previa a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, em seu Artigo 227, além de incluir a responsabilidade da família, da sociedade e do Estado pelo bem-estar deles.

“Esse é o grande salto do ECA e dos anos 80, de dizer ‘não vamos culpabilizar a família’. Se essa família não está conseguindo prover tudo que aquela criança precisa, ela também precisa ser cuidada, ela precisa ter trabalho, ter uma moradia digna. Ela não pode ficar todos os dias preocupada se a casa vai cair, se amanhã não tem comida na mesa. Esse tipo de coisa é responsabilidade do Estado”.

Ela destaca o avanço legislativo do Brasil com a aprovação, em 2016, do Marco Legal da Primeira Infância, que determina atenção especial aos primeiros anos de vida.

“É uma coisa muito nova, em que o Brasil começa a dizer que as crianças, quando são pequenininhas, se elas não tiveram um bom começo de vida, se elas não se alimentarem, não puderem ter acesso à saúde, à educação, vai ficar mais difícil para elas. Isso é política pública pensando também no futuro do país. Nós estamos falando em transferência de rendam, em redistribuição de renda que precisa ser feita nesse país”, explica.

Defensora pública do estado do Rio de Janeiro Andréa Sepúlveda – Tânia Rego

Porém, mesmo com tantas declarações e leis determinando o acesso aos direitos mínimos para cada pessoa viver dignamente, nem todos conseguem acessar questões básicas como alimentação e água potável. Para a defensora pública Andréa Sepúlveda, os direitos no papel são importantes para que se possa exigir, até mesmo na Justiça, que eles sejam cumpridos.

“Eu falo que os direitos são como superpoderes, porque eles são instrumentos. Se eles fossem totalmente implementados, a gente teria a sociedade ideal. Mas a gente vive em sociedade onde tudo se relaciona a poder, então quanto mais poder um determinado grupo tem na sociedade, mais os direitos daquelas pessoas são assegurados. As pessoas que estão vivendo na pobreza, que não têm o poder político ou econômico, não conseguem virar essa chave. Por isso é muito importante que a gente tenha movimentos sociais, que a gente tenha educação para a política, para os direitos, para que as pessoas saibam que elas podem lutar pelos seus direitos”, defende.

Conferência

Irene Rizzini destaca a participação dos jovens e crianças na elaboração das políticas públicas. Em abril, será realizada em Brasília a 12ª Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, organizada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

“Em todo o município tem um conselho, e tem uma conferência livre, onde as crianças podem inclusive organizar sua conferência. Depois tem as conferências municipais que vão discutir o que as crianças acham que é importante incluir. E aí são eleitos delegados, os representantes de cada estado que vão estar em Brasília. Vai estar lotado, são centenas de crianças e adolescentes que participam com adultos, é uma coisa muito linda, que dá muita esperança pra gente, apesar dos imensos desafios desse país”, disse.

Podcast

Para marcar os 75 anos da Declaração dos Direitos Humanos, a Radiogência Nacional lançou neste domingo o podcast Crianças Sabidas. Neste primeiro episódio da produção, que vai trazer o formato jornalístico voltado para o público infantil, o tema é a declaração.

Com produção e roteiro da jornalista da Agência Brasil Akemi Nitahara, que é autora da série de livros infantis Naomi e Anita, o podcast explica de uma forma lúdica e com linguagem acessível para as crianças o que são os direitos humanos e os artigos da declaração. A menina Maria Eduarda, de 8 anos de idade, neta da jornalista da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) Beatriz Arcoverde, participa da locução do podcast.

O trabalho vem consolidar o formato de podcast no jornalismo da EBC, inovando com a linguagem destinada ao público infantil. Crianças Sabidas está disponível na página da Radioagência Nacional, nos tocadores de áudio e com interpretação em Libras no Youtube.