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Programa educativo promove integração entre línguas indígenas

O entendimento recíproco entre os povos indígenas e os formuladores e aplicadores das legislações brasileiras é o principal objetivo do Programa Língua Indígena Viva no Direito desenvolvido pela Advocacia-Geral da União (AGU) com os Ministérios dos Povos Indígenas e da Justiça e Segurança Pública. A iniciativa lançada em cerimônia em Brasília, na última quinta-feira (18), com a participação presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve seus princípios e objetivos publicados nesta segunda-feira (22), no Diário Oficial da União.

Entre as medidas previstas pela política pública a tradução da legislação brasileira, dos termos e conceitos jurídicos para as línguas indígenas, assim como a capacitação de legisladores e profissionais do Direito em conhecimentos relacionados a diversidade cultura e social desses povos. Os membros das comunidades também serão capacitados para maior acesso às legislações nacionais e internacionais, assim como às políticas públicas.

Segundo divulgação feita pela AGU, por meio de nota, o texto da Constituição Federal será o primeiro a ser traduzido nas línguas Guarani-Kaiowá, Tikuna e Kaingang, por serem as mais faladas no país. E para garantir a integridade cultural, o processo terá a participação de líderes e membros dos povos indígenas, que ajudarão a construir textos onde serão considerados a interação com os sistemas legais indígenas.

Os novos conteúdos serão divulgados entre as comunidades, advogados, órgãos dos Três Poderes, colegiados, universidades e organizações da sociedade civil que atuam em políticas públicas e em iniciativas que tratam dos direitos dos povos indígenas.

 

Conflitos no campo foram recorde em 2023, mas área em disputa diminuiu

Em 2023, o Brasil registrou número recorde de 2.203 conflitos no campo, que afetou a vida de 950.847 pessoas. Embora ambos os números tenham registrado alta, na comparação com o ano anterior, a área em disputa foi reduzida em 26,8%, sendo agora de cerca de 59,4 mil hectares. Os dados são da última edição do relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT), divulgada nesta segunda-feira (22) em Brasília.

As regiões do país que concentraram mais conflitos foram o Norte e o Nordeste, com 810 e 665 ocorrências, respectivamente. Na sequência, vêm o Centro-Oeste (353), o Sudeste (207) e o Sul (168).

Em 2022, foram notificados 2.050 conflitos no campo, em todo o país. Ao todo, 923.556 pessoas foram impactadas pelos embates travados naquele ano.

Conforme a CPT, a terra esteve mais uma vez no centro da maior parte dos conflitos no campo. Somente em 2023, foram 1.724 disputas por terra, correspondentes a 78,2% do total registrado, que inclui também conflitos por água (225 ocorrências) e trabalho escravo contemporâneo na zona rural (251 ocorrências), equivalentes a 10,2% e 11,3%. No ano passado, verificou-se crescimento de 7,6% nas ocorrências relativas à terra, que interferiram no universo de 187.307 famílias. 

No total, destaca o relatório, 1.588 dos conflitos por terra foram ligados à violência contra a ocupação e a posse e/ou contra a pessoa. No primeiro tipo de violência, observa-se que a quantidade dos casos de invasão subiu de 2022 para 2023, passando de 349 para 359. De acordo com a comissão, no ano passado, 74.858 famílias foram afetadas por esse tipo de agressão.

A pistolagem foi o segundo tipo de violência contra a ocupação e a posse, com maior nível de registros em 2023. Foram contabilizados 264 casos, 45% a mais do que o total de 2022 e o maior número registrado pela CPT dentro do recorte da coletividade das famílias atingidas, que chegaram a 36.200. A entidade ressalta que as principais vítimas, nesse caso, foram os trabalhadores sem terra (130 ocorrências), posseiros (49), indígenas (47) e quilombolas (19).

Outros números do relatório que preocupam são os que tratam dos conflitos em torno do acesso à água. Como principais agentes da violência nesses casos são mencionados fazendeiros, governos estaduais, empresários, hidrelétricas e mineradoras. Na outra ponta, figuram como vítimas indígenas (24,4%), pescadores (21,8%), ribeirinhos (13,3%), quilombolas (12,4%) e assentados (8,4%).

Entre os agentes causadores da violência nos conflitos por terra são citados fazendeiros (31,2%), empresários (19,7%), governo federal (11,2%), grileiros (9%) e governos estaduais (8,3%). Para os especialistas da CPT, apesar de ter havido “pequena diminuição na violência” e maior abertura do governo federal aos movimentos sociais, permaneceu a estagnação quanto à reforma agrária e à demarcação de terras indígenas. No relatório, a crítica feita às gestões estaduais é quanto às forças de repressão, por meio da polícia, e ao alinhamento com políticas que violam outros direitos básicos, como a liberação de pulverização aérea de agrotóxicos. 

Povos originários

A Comissão Pastoral da Terra lembra no relatório o que a aprovação da tese do marco temporal no Congresso Nacional representou no contexto da violência no campo. A tese jurídica sustenta que os povos originários só têm direito aos territórios que ocupavam ou reivindicavam até a promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. O Projeto de Lei nº 2.903/2023 estava sob relatoria do senador Marcos Rogério (PL-RO) e foi aprovado pelo plenário da Casa em setembro de 2023, com 43 votos a favor e 21 contrários. O texto seguiu para sanção e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva optou por vetar trechos. Os vetos, porém, foram revistos na Câmara dos Deputados e a votação foi finalizada com 321 votos pela derrubada e 137 pela manutenção. No Senado, somou 53 votos pela rejeição e 19 pela manutenção.

O capítulo do relatório da CPT que aborda a violência contra a pessoa mostra a fragilização dos indígenas. Nele estão detalhadas agressões cometidas contra indivíduos, complementando dados referentes à realidade imposta a famílias. Em 2023, foram relacionadas 554 ocorrências dessa natureza, que envolveram 1.467 pessoas. Em 2022, a comissão tomou conhecimento de 561 ocorrências abrangendo 1.075 pessoas,. De um ano para o outro foi constatada queda de 1,2% no número de ocorrências e aumento de 36,4% no de vítimas.

Os indígenas estão no topo da lista de pessoas vítimas da violência assim categorizada (25,5%). Além disso, foram 14 das 31 pessoas assassinadas em 2023, número 34% menor que o do ano anterior, que teve 47 execuções.

Ruralistas

“A partir do momento em que o Estado brasileiro deixa de ser um agente mediador de conflitos, que é o que está acontecendo desde 2016 ou até um pouco antes, deixa um vácuo, um espaço para grupos que se articulam, como o Invasão Zero, que é, na verdade, uma rearticulação da UDR [União Democrática Ruralista], dos anos 1980 e 1990, e que assume, por conta própria, a retirada de indígenas de territórios de retomada, a expansão de áreas por meio de ação de grilagem, áreas já consolidadas, já ocupadas por comunidades tradicionais. E outros grupos estão surgindo”, afirma, em entrevista à Agência Brasil, o coordenador nacional da CPT, Ronilson Costa.

Para ele, o agronegócio existente no país é “arcaico” e, apesar do discurso disseminado de que o setor contribui fortemente para a geração de empregos, na realidade provoca muito mais desequilíbrio. “Desequilíbrio ambiental, mas também social, porque gera pobreza e violência no campo”, acrescenta. 

Um dos problemas, segundo o coordenador da CPT, é o poderio da extrema-direita na esfera estadual. “Hoje, o agronegócio constitui outro poder dentro da República, pela força que tem de marcar presença no Congresso, mas também em grande parte dos governos estaduais. É muito complicado quando a gente percebe que as secretarias de Segurança Pública ou de Meio Ambiente, na maioria desses estados, atuam de forma conjunta para proteger ou promover a expansão do agronegócio. E é óbvio que os territórios das comunidades tradicionais e dos povos originários constituem desafio enorme, porque têm uma legislação, inclusive internacional, que está de olho nesses avanços. Se não tivessem, imagine como seria”, diz.

Costa afirma ainda que o período atual, no que diz respeito às vantagens que têm grupos como o Invasão Zero, se distingue de décadas anteriores por diversos fatores. Um deles é o fácil acesso a armas de fogo. “Há inúmeros setores de apoio, que vão desde as milícias com CNPJ, empresas de segurança privada, alinhadas a ex-agentes de segurança. Eles têm atuado com setores do narcotráfico, com forças de seguranças do próprio Estado. São inúmeros casos em que a polícia chega sem uma ordem judicial para despejo, sem ordem de busca e apreensão e age com pistoleiros da fazenda. O serviço de proteção do Estado atua de forma conjunta e em prol de grileiro”, observa, lembrando que, muitas vezes, terras públicas são tomadas por grileiros.

Para o representante da CPT, a saída é que o governo federal retome um pacote de políticas para o campo. “O que não significa aquilo que foi realizado no governo FHC [Fernando Henrique Cardoso], Lula 1 e 2, que correspondia a distribuir terra. É distribuir terra, demarcar territórios, titular territórios quilombolas, mas com o acompanhamento de políticas que, de fato, garantam vida digna para as pessoas que vivem nesses territórios. Porque [senão] conquistam a terra e depois vão continuar a fazer luta para conquistar outros direitos que, quando chegam, é de forma fragmentada, insuficiente, parcelada e não é bem isso. Não adianta estar em uma terra conquistada ao longo de anos de luta e, de repente, não ter uma estrada que dê acesso, uma ponte, ou sem incentivos para produzir. Ficam os chamados abandonados da reforma agrária. Certamente, na primeira oportunidade que vier, essas terras voltarão a ser concentradas nas mãos daqueles que conseguem, com mais facilidade, capital para promover a produção”, argumenta.

Governo

O governo federal anunciou, na semana passada, a compra das primeiras vinte propriedades para reforma agrária pelo programa Terra da Gente. Pelo menos dez estados devem ser contemplados no primeiro momento. Cerca de R$ 300 milhões devem ser investidos na aquisição das primeiras áreas.

O programa Terra da Gente sistematiza alternativas legais de obtenção de terras, além das formas tradicionais, como a desapropriação de áreas improdutivas e a regularização de terras públicas.

Entre as novidades, está a adjudicação (transferência de propriedade) de terras oriundas de grandes devedores da União e a possibilidade de negociação com bancos, empresas públicas e governos estaduais para a transferência de imóveis rurais também em troca do abatimento de dívidas ou permutas (encontro de contas).

O ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, espera que o processo de seleção das famílias que serão assentadas aconteça até junho. Segundo ele, a ideia é agilizar a reforma agrária também por meios não conflituosos.

O governo pretende lançar um programa para atender os produtores que estão sem crédito por inadimplência – uma espécie de Desenrola Brasil do campo. A medida deve sair junto com o novo Plano Safra da Agricultura Familiar, com anúncio previsto para junho.

A Agência Brasil procurou o Ministério dos Povos Indígenas, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) sobre as críticas feitas no relatório, pela CPT, mas não teve retorno até a publicação desta matéria.

Mobilização indígena em Brasília vai pressionar contra marco temporal

Começa nesta segunda-feira (22), em Brasília, o Acampamento Terra Livre (ATL), que neste ano chega em sua 20ª edição. A principal mobilização indígena do país deve reunir milhares de participantes, representando as centenas de etnias indígenas existentes no Brasil. A expectativa da Articulação Nacional dos Povos Indígenas (Apib), que organiza o encontro, é que este seja o ATL mais participativo da história, superando os mais de 6 mil indígenas do ano passado.

Com o lema “Nosso marco é ancestral, sempre estivemos aqui”, a edição de 2024 terá como prioridade justamente a luta contra o marco temporal, tese segundo a qual os povos indígenas somente teriam direito à demarcação de terras que estavam ocupadas por eles na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. 

Essa tese já havia sido declarada inconstitucional em julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro do ano passado, mas foi inserida na legislação por meio de um projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional que, em seguida, foi vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas acabou mantido pelos congressistas em uma derrubada de veto. Agora, a expectativa é que o STF reafirme a inconstitucionalidade da medida.

O ATL vai de 22 a 26 de abril, com atividades concentradas no Eixo Cultural Ibero-americano. A extensa programação prevê debates, apresentação de relatórios, marchas à Praça dos Três Poderes e atividades políticas no Congresso Nacional, como sessão solene, audiências públicas e reuniões. Apresentações culturais e exposição de artesanato e arte indígena de todos os biomas brasileiros também estão previstos.

O evento também começa dias após o presidente Lula ter assinado a demarcação de duas novas terras indígenas. A retomada das demarcações começou no ano passado, justamente na edição anterior do ATL, quando seis decretos de demarcação foram assinados. De lá pra cá, o governo federal contabilizou 10 demarcações. A expectativa do movimento indígena, no entanto, era que o governo federal tivesse concluído ao menos 14 demarcações de áreas, fruto de processos em fase final.  

Violência e saúde mental

Além do combate à lei que criou o marco temporal e a pressão por mais demarcações, o Acampamento Terra Livre deve denunciar uma nova escalada de violência contra indígenas. De acordo com a Apib, citando levantamento feito pelo Coletivo Proteja, seis lideranças indígenas foram assassinadas no país após a edição da lei que instituiu o marco temporal, entre dezembro do ano passado, quando a legislação entrou em vigor, e o início deste ano.  

“No mesmo período, também foram mapeados 13 conflitos em territórios localizados em sete estados. Um dos assassinatos foi o da pajé Nega Pataxó, povo Hã-Hã-Hãe, durante ação criminosa da Polícia Militar do Estado da Bahia com o grupo ‘Invasão Zero’. A liderança foi assinada na retomada do território Caramuru-Paraguaçu, município de Potiraguá”, aponta a entidade indígena.

Outro tema que será abordado no ATL é o suicídio entre indígenas. Segundo a Apib, um estudo feito por pesquisadores da Escola de Medicina de Harvard (EUA) e do do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Cidacs/Fiocruz) apontou que a população indígena lidera os índices de sucídio e autolesões no Brasil, mas tem menos hospitalizações.

“Conforme o estudo, isso revela a precariedade no atendimento médico e no suporte à saúde mental para as famílias indígenas. A pesquisa foi feita com dados entre 2011 e 2022 e publicada na revista The Lancet. Com isso, as lideranças demonstram preocupação com a saúde mental dos indígenas, principalmente aqueles que enfrentam invasões em seus territórios e lutam pelos seus direitos”, diz a Apib.

Cidade sitiada: brasileiro e haitiano contam rotina em Porto Príncipe

Com dezenas de conhecidos assassinados ou sequestrados em Porto Príncipe, o brasileiro Werner Garbens, de 37 anos, e há 12 anos no Haiti, relatou à Agência Brasil como é viver na cidade, controlada quase que completamente por gangues fortemente armadas.

“São dezenas de pessoas que conheço que, ou foram vítimas fatais, ou foram sequestradas. Só de pessoas de um circuito de conhecidos mais próximo, conheço umas dez que foram sequestradas. De amigos mesmo, tenho três que foram sequestradas”, revelou. O sequestro é umas das principais atividades dos grupos criminosos da região.

O haitiano Bruno Saint-Hubert, também de 37 anos, advogado e pequeno agricultor, vive no centro da capital com a mulher e o filho de 3 anos. Ele milita no movimento de pequenos agricultores haitianos Tèt Kole Ti Peyizan Ayisyen que, em português, significa A Cabeça do Pequeno Camponês Haitiano.e também fala sobre a vida na capital.

Porto Príncipe (Haiti) – Mobilização de camponeses em Porto Príncipe, cidade sitiada pelas gangues.- Fotos Arquivo Pessoal

“As gangues aterrorizam a população, roubam algumas coisas, dinheiro, telefone, laptop, e também estupram mulheres e meninas. A população vive com grande medo. As populações não saem. As escolas, as universidades estão fechadas. A vida do capital é muito difícil”, contou Bruno.

O haitiano Bruno Saint-Hubert aprendeu a falar português quando veio ao Brasil, em 2013, fazer um curso de agroecologia com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Paraná. Bruno já perdeu amigos e familiares para a violência, diz que é preciso estocar comida para não precisar sair de casa e relata que, em muitos pontos da cidade, as gangues andam exibindo suas armas.

“A liberdade de circular em Porto Príncipe está quase perdida. Posso dizer que a cidade interna tem gangues. É uma capital quase paralisada”, comentou. Desde o agravamento da crise das últimas semanas, que levou à renúncia do então primeiro-ministro Ariel Henry, o aeroporto e o porto da cidade estão fechados.

Sitiada, a população civil de Porto Príncipe aguarda enquanto o novo Conselho Presidencial de Transição, criado há pouco mais de uma semana, dá os primeiros passos para tentar reorganizar o país e convocar eleições, agora prometidas para 2025. O país está há sete anos sem realizar eleições.

O haitiano

Bruno Sant-Hubert atua na formação política da organização que reúne 80 mil camponeses haitianos. Diz que muitos companheiros e familiares já sugeriram a imigração do país, mas que está decidido a continuar no Haiti.

Porto Príncipe (Haiti) – O haitiano Bruno Saint-Huber fala sobre a vida na capital haitiana, cidade sitiada por gangues – Foto Arquivo Pessoal.

“Tenho que ficar no Haiti para fazer militância, para lutar, para ajudar o país a sair dessa situação difícil. Porque se todo mundo migrar, quem vai resolver esse problema?”, questionou, acrescentando que espera ajudar na organização dos camponeses “para maior consciência de classe e para defender a categoria de trabalhadores”.

Sant-Hubert acredita que, para o Haiti sair dessa situação, é preciso que a comunidade internacional pare de interferir no país. “Porque o problema do Haiti, na verdade, é a comunidade internacional que, em cada momento, interfere. Tem que parar de interferir”, afirma.

“Sobre a questão militar, nós precisamos do apoio técnico para a polícia. Mas não precisa de intervenção militar. Porque o Haiti já tomou várias intervenções militares. Isso não muda nada”, lamentou.

Bruno acrescentou que a população civil quer combater as gangues, mas diz que falta vontade política das autoridades para combatê-las. Ele ainda comentou sobre as brigadas de autodefesa presentes em algumas comunidades. São grupos armados que, diferentemente das gangues, atuam na defesa das comunidades.

“Há alguns bairros que têm grupos de autodefesa para fazer resistência contra as gangues. E as gangues, quando sabem que têm grupos de autodefesa, não podem ir”, completou.

O brasileiro

O brasileiro Werner Garbers é professor, pesquisador, jornalista e diretor do Centro Cultural Brasil-Haiti, ligado à embaixada do Brasil no país caribenho. Ele foi ao país porque esse era seu principal tema de pesquisa. “Percebi que para estudar o Haiti precisava viver aqui”, disse.

Nascido em São Paulo, Garbers relatou que a violência é generalizada na cidade e que,  há uns 15 dias, houve um massacre de jovens a 300 metros da sua casa. “Eram vários jovens e eu sabia que eles pediam dinheiro na rua”.

Porto Príncipe (Haiti) – O brasileiro Werner Garbens conta rotina na capital haitiana – Fotos Arquivo Pessoal

O brasileiro vive em Petion-Ville, cidade na região metropolitana de Porto Príncipe, que fica a cerca de 15 minutos de carro do centro da capital. Ele disse que o local já foi considerado “de elite”, mas que hoje se popularizou. Segundo Werner, o local em que mora tem gangues, mas não é das mais perigosas.

Ainda assim, ele participa de seis grupos de aplicativo de mensagem só de segurança. “Algumas vezes, passo mais de dez dias sem sair de casa aqui em Petion-Ville. Até para comprar comida ali no mercado pode ser perigoso, são 500 metros daqui”, disse, acrescentando que está há mais de dois meses e meio sem ir ao centro de Porto Príncipe.

O brasileiro lembrou que antes não era assim e que a situação vem piorando gradativamente desde 2018. “Eram gangues localizadas em três regiões, uma coisa muito simples. Hoje não, está muito pior. Hoje, perto daquilo é um pandemônio”, destacou.

“O centro da cidade nesses dias está terrível. O coração da cidade, que sempre frequentei sem grandes receios, tem prédios públicos fundamentais do país, tudo abandonado, sem ninguém, ruas vazias”, completou.

O Centro Cultural Brasil-Haiti, que Werner coordena, promove eventos culturais para a comunidade local. Ele disse que, mesmo com as dificuldades, fez 35 eventos no ano passado, reunindo, ao todo, cerca de 4,5 mil pessoas.

“O Centro Cultural Brasil do Haiti é uma das cinco instituições na área da cultura mais agitadas da capital. Isso faz com que várias pessoas busquem o nosso espaço. Tem curso de danças brasileiras e haitianas. Então, as pessoas vêm até por uma questão de saúde mental. A gente tematiza depressão, ansiedade, luto e medo”, detalhou.

O Brasil no Haiti

Tanto o brasileiro, quanto o haitiano reconhecem que o Brasil goza de prestígio entre a população local, principalmente devido ao futebol que, desde Pelé, encanta o povo haitiano.

Porto Príncipe (Haiti) Brasileiro e haitiano contam rotina em Porto Príncipe, cidade sitiada por gangues – Foto Arquivo Pessoal

Por outro lado, eles afirmam que o país perdeu parte do prestígio que tinha após liderar a Minustah, a última intervenção militar internacional feita no Haiti sob o controle da Organização das Nações Unidas (ONU). A missão durou 13 anos, acabando em 2017.

Bruno Sant-Hubert destacou que a missão deixou muitas lembranças ruins, principalmente por causa da epidemia de cólera que vitimou milhares de pessoas e pelos supostos abusos cometidos pelos militares. As denúncias vão desde massacres contra civis desarmados até estupros.

“Lembro-me de muitas coisas ruins que a Minustah fez durante a intervenção. Morrem cerca de 15 mil pessoas de cólera. E também estupraram meninas e meninos. Deixaram muitos, muitos, muitos filhos sem pai”, afirmou.

A ONU não reconhece que a cólera foi trazida pela missão, mas acredita que teria sido causada por uma “confluência de circunstâncias”.

Apesar das lembranças ruins, Bruno diz que o povo haitiano “ama o povo brasileiro, muito por causa do futebol. E também no Haiti há muitas pessoas que gostam do presidente Lula”. Porém, o pequeno agricultor acredita que Lula tem uma dívida “moral e histórica” com o Haiti pelos resultados ruins da Minustah.

“Acho também que Lula não deve deixar esse mandato sem pagar essa dúvida moral e histórica com o Haiti. Por isso, o presidente deve forçar as Nações Unidas a assumir a responsabilidade sobre a questão da cólera”, acrescentou. 

Nessa semana, em visita à Colômbia, o presidente Lula conversou sobre o Haiti com o presidente colombiano, Gustavo Petro. Eles discutiram como os dois países poderiam ajudar a nação caribenha. 

Para o brasileiro Werner Garbers, o povo haitiano enxerga no Brasil o país de negros que deu certo e, desde Pelé, tem grande admiração pelo futebol da seleção. Ele cita também o Jogo da Paz, de 2004, quando a seleção brasileira jogou contra o Haiti, em Porto Príncipe, como outro marco da relação entre os países.

Garbers acredita que a imagem do Brasil foi desgastada pela Minustah, mas não completamente. Diz que além de o país promover parcerias no Haiti que aliviam sua imagem, o povo haitiano entende que quem mandava na missão eram os Estados Unidos.  

“Tudo isso fez o Brasil se manter mais ou menos em um espaço de não total desprestígio e também de não total responsabilização pelo que aconteceu. O Brasil não é considerado o principal responsável, isso não”, disse. “É diferente, por exemplo, dos Estados Unidos, que nem podem colocar a cara aqui”.

Fome

Além da violência, a fome é outra face da crise haitiana. O Haiti vive “uma das crises alimentares mais graves do mundo” com quase metade da população (4,3 milhões de 11,7 milhões de habitantes) vivendo em situação de “fome aguda”, segundo o Programa Mundial de Alimentos (PMA).

Pessoas caminham em rua de Porto Príncipe – Foto REUTERS/Ralph Tedy Erol

Werner Garbers afirmou que a fome é muito presente nas ruas. “Talvez [a fome] seja a parte da experiência aqui mais triste mesmo, especialmente nos últimos anos”, destacou. “Vejo que o aluno está com fome, com dificuldade, está cambaleando, isso pode ser visto no rosto da pessoa”.

O brasileiro acrescentou que o custo de vida está muito elevado na capital até para ele, que tem emprego fixo e ainda faz trabalhos por fora. Diz ainda que é muito abordado, nas ruas, e nas redes, por pessoas pedindo ajuda.

“São muitos pedidos. E aumentou gradualmente e está crescendo. Saio na rua e é muita gente pedindo”, lamentou.

O haitiano Bruno Sant-Hubert, que cultivava a terra no Norte do país antes de se mudar para Porto Príncipe, argumentou que as gangues têm impedido a entrada de alimentos.

“Os produtos locais não podem entrar na capital. Porque as gangues bloqueiam muitas estradas. Os produtos que conseguem entrar, são bem poucos. E por isso é um pouco caro”, afirmou.

Quem preserva biomas defende direitos humanos, diz relatora da ONU

O que marca o Brasil é uma “impunidade endêmica”. E, apesar de serem “criminalizados” e “destruídos por autoridades”, defensores de direitos humanos são quem preserva biomas no país e também quem cobra a atuação da Justiça em casos de violência do Estado e oferece uma alternativa de “dignidade, solidariedade e respeito a todos”.

Essas foram algumas das colocações feitas hoje (19), por Mary Lawlor, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a situação das pessoas defensoras de direitos humanos, apresentadas em coletiva de imprensa. A porta-voz da ONU chegou ao Brasil em 8 de abril de 2024 e se encontrou com autoridades do governo brasileiro, da Esplanada dos Ministérios, e nomes do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública da União e do Conselho Nacional de Justiça. O ponto central de sua agenda, porém, como é de praxe em visitas oficiais de representantes da entidade, são as reuniões com líderes que articulam reações às violações de direitos socioambientais e, como consequência disso, ficam em evidência e sofrem perseguições.

Mary Lawlor também esteve na Bahia, no Pará, em São Paulo e no Mato Grosso, estados que identificou como sendo “particularmente graves”, em relação aos perigos que se impõem diante daqueles que lutam em defesa dos direitos humanos e de biomas. A especialista da ONU disse que, por todo o país, há pessoas que protegem a vida, a terra e a natureza sob cerco ou mesmo sendo mortas e que acabam tendo que enfrentar um sistema que reforça injustiças.

O cenário, acrescentou ela, é de desigualdades e abandono por parte das instituições que deveriam protegê-las. Ao ler seus apontamentos, Mary Lawlor explicou que muitas lideranças têm medo de retaliação após denunciarem os casos de violações que chegam ao seu conhecimento e que muitas delas, além de serem criminalizadas pelo papel que exercem, lidam, com frequência, “com ameaças de morte na porta de casa”.

Povos originários

“Líderes indígenas repetidamente disseram que tiveram que deixar seus territórios, com medo de serem mortos”, ressaltou ela, em sua fala aos jornalistas, afirmando, em alusão ao Dia dos Povos Indígenas, comemorado hoje, que os povos originários “devem ser celebrados e protegidos”, e citando o caso de uma guarani kaiowá que teve que deixar tudo para trás, depois de um familiar ser executado e ela receber um aviso de que seria a próxima a ser assassinada.

Para a porta-voz da ONU, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve ser questionado quanto à discussão em torno do marco temporal, tese jurídica que restringia o direito às terras indígenas aos seus respectivos povos originários àqueles que as ocupassem em outubro de 1988, na promulgação da Constituição Federal. No entendimento de Mary Lawlor, a corte deveria ter se empenhado mais em assegurar o direito aos indígenas, acelerando a derrubada da tese.

Política nacional de proteção a defensores

Um dos ministros com quem esteve foi Silvio Almeida, da pasta de Direitos Humanos e da Cidadania, que teria explicitado a ela as ações já implementadas ou em vias de aplicação, no âmbito do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), que, em 2024, completa 20 anos, sob a batuta do ministério. No que concerne a esse aspecto, a crítica foi em relação ao orçamento e à falta de efetividade.

“Raramente as políticas que estão sendo desenvolvidas pelo governo federal foram levantadas comigo pelos defensores dos direitos humanos. A principal exceção a isso foi o trabalho realizado no âmbito do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania através do Grupo de Trabalho (GT) Sales Pimenta. O estabelecimento do Grupo de Trabalho é positivo e necessário. No entanto, ouvi repetidamente preocupações de defensores de direitos humanos sobre sua falta de progresso e a falta de investimento por parte do governo federal. O GT precisa ter um orçamento adequado para que consiga desenvolver aquilo que foi encarregado de fazer e deve contar com a participação genuína de todos os ministérios relevantes, bem como dos próprios defensores dos direitos humanos que estão em risco. Em suma, precisa ser politicamente priorizado e devidamente financiado”, resumiu Mary.

Sanções ao empresariado que viola direitos

Um dos aspectos abordados no relatório que produziu foi a cota de responsabilidade pela qual devem responder o empresariado, em seus diversos segmentos, e o governo brasileiro, no que diz respeito à manutenção da atmosfera de “violências extremas”. Nesse sentido, seu argumento é de que o governo federal precisa barrar companhias que devastam os territórios e cometem violações de direitos vários.

“As pessoas defensoras de direitos humanos não estão contra o desenvolvimento, mas não pode haver desenvolvimento sustentável sem respeito pelos direitos humanos e pelo meio ambiente. Os direitos que dizem respeito à conduta de empresas não se tornarão a norma sem uma regulamentação efetiva por parte do governo, inclusive em respeito a OIT 169 [Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais]. Como tal, faço um forte apelo ao governo federal e aos governos estaduais”, afirmou.

A Agência Brasil procurou os ministérios da Justiça e Segurança Pública e dos Direitos Humanos e da Cidadania para comentar os apontamentos e recomendações feitos no relatório e aguarda retorno. A reportagem também pediu posicionamento ao STF e, caso seja enviado, esta matéria será atualizada.

Ensino a distância estimula inclusão indígena, mas qualidade é desafio

Aos 21 anos, a indígena Macuxi, Roberta de Lima, acredita que fez uma boa escolha quando ingressou no curso a distância de tecnologia em empreendedorismo. Ela conta que iniciou os estudos no meio da pandemia de covid-19, quando as universidades paralisaram suas atividades presenciais. Mas esse não foi o único motivo que impactou em sua escolha. Não há universidades nos arredores de sua comunidade, no interior de Roraima.

“Não tinha condições de vir para a capital”, explica ela, justificando sua decisão de se matricular na UniCesumar, instituição vinculada à mantenedora Vitru Educação. A situação mudou e hoje, se aproximando da conclusão do curso, ela vive em Boa Vista. Roberta conta que o ensino superior lhe abriu portas e atualmente faz estágio no polo de ensino a distância da própria UniCesumar, o que lhe garante renda.

O polo de ensino a distância nada mais é do que um centro de apoio, devidamente credenciado pelo Ministério da Educação (MEC), onde é oferecido suporte aos estudantes desse cursos. Ali podem ocorrer algumas aulas, ocorridas de forma pontual, e também atividades avaliativas, cuja aplicação presencial é obrigatória. Além disso, no polo, é realizado atendimento técnico e pedagógico. Segundo Roberta, o estágio é o primeiro passo e ela sonha com um emprego de carteira assinada. Futuramente quer abrir o próprio negócio.

“Antes de estudar, eu já tinha meu próprio negócio, que era o artesanato. Também trabalhava em agricultura. Pra mim, entrar no curso foi muito bom. Abriu a minha mente e também melhorou a questão financeira, consegui o estágio. O ensino a distância é um meio de levar mais conhecimento para a minha comunidade, para o meu povo. E para os outros povos também. Acho que falta mais infraestrutura para atender a comunidade. Mais computadores, mais livros e mais cursos, na verdade, porque muitos deles ainda não chegaram aqui”, cobra ela.

A demanda por mais cursos é atestada pelos números. De acordo com dados do Censo da Educação Superior 2022, divulgado no ano passado pelo MEC, o crescimento da modalidade a distância no Brasil é impressionante, o que vem garantindo também aumento do número de estudantes de graduação no país. Simultaneamente, essa expansão tem gerado preocupações acerca da qualidade do ensino. Em uma década, o número de cursos saltou mais de 700% chegando a 9.186. O total de estudantes ingressantes por ano saiu de 1.113.850 em 2012 para 4.330.934 em 2022. É um salto de 288%. Considerando os dados de 2022, 95,7% das novas matrículas ocorreram em cursos ministrados por instituições privadas.

A quantidade de matrículas no ensino superior realizada por alunos autodeclarados indígenas também disparou ao longo da última década. Um levantamento do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior do Brasil (Semesp), realizado esmiuçando os microdados do Censo da Educação Superior 2021, indicou que houve uma evolução de 374% ao longo de uma década, entre 2011 e 2021. O avanço, no entanto, foi impulsionado sobretudo pelas matrículas em cursos presenciais. Ainda assim, nesse período, entre o contingente dos indígenas que concluíram o curso e pegaram o diploma, 19,8% foram na modalidade a distância.

É possível que esse percentual ainda cresça bastante nos próximos anos com as novas possibilidades da tecnologia moderna. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que o uso da internet no Brasil alcançou em 2022 com recorde de 87,2% das pessoas com 10 anos ou mais. A ampliação do acesso ao mundo online é pré-requisito para a expansão dos cursos da modalidade a distância, que vem registrando seu crescimento mais robusto justamente nos últimos anos.

Em 2018, uma pesquisa divulgada pela Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes), entidade que representa grande parte do ensino superior particular do país, mostrava que o número de novas matrículas em cursos ministrados na modalidade a distância crescia em uma velocidade mais acelerada do que nos cursos presenciais. Em 2022, os dados do MEC mostram que houve 3,1 milhões de alunos ingressantes na graduação a distancia, quase o dobro dos 1,6 milhão que deram entrada na modalidade presencial.

Mas embora o acesso ao ambiente online venha sendo possível a partir de lugares cada vez mais remotos, ainda há significativas assimetrias regionais. Na região Norte, por exemplo, apenas 58,6% dos domicílios na área rural fazia utilização de internet. É nessa região que se concentram 44,48% da população indígena do país segundo o Censo Demográfico 2022.

  Ensino a distância nas comunidades – Marcelo Camargo/Agência Brasil

“O ensino a distância tem a capacidade de chegar mais nas comunidades, mas tem que ter uma infraestrutura mínima local que muitas aldeias não têm. Mesmo no estado de São Paulo, que tem mais recursos, às vezes elas não têm computadores e acesso à internet. O ensino a distância é uma democratização importante. Mas há desafios não apenas relacionados à qualidade do ensino. A metodologia é uma questão: é bastante desafiador realizar um acompanhamento mais próximo do aluno. Tem a questão de como esses estudantes podem se apropriar da tecnologia e do material didático. Isso é bem importante para povos que falam outras línguas”, diz Talita Lazarin, pesquisadora do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo (CEstA-USP).

Embora a Constituição de 1988 tenha fixado a educação como um direito de todos e um dever do Estado, foram as ações afirmativas das últimas duas décadas que viabilizaram um maior acesso dos indígenas à educação superior. Isso inclui, por exemplo, as cotas, as políticas de assistência estudantil e a criação de licenciaturas específicas para a educação indígena. Elas ajudaram a driblar barreiras sociais e culturais que dificultavam o acesso às instituições tradicionais de ensino.

Nos últimos anos, o ensino a distância passou a ser um nova ferramenta de aceleração dessa inclusão. De acordo com Talita Lazarin, ela vem se mostrando eficaz não apenas para contornar barreiras sociais e culturais, mas também geográficas. Nestes cursos, os estudantes não precisam deixar suas comunidades, que muitas vezes se localizam em áreas de difícil acesso, e ainda podem conciliar os estudos com suas atividades comunitárias.

Em 2021, o levantamento do Semesp mostrava que 0,5% do total de alunos do ensino superior haviam se autodeclarado indígenas. Considerando os dados demográficos, esse percentual se torna significativo. Conforme o Censo 2022, cujos resultados foram divulgados pelo IBGE no ano passado, os indígenas residentes no Brasil representam 0,83% da população total do país. De toda forma, a diferença desses percentuais mostra que há espaço para o crescimento no número de matrículas.

Qualidade

Desde o ano passado, o MEC tem informado que estuda reavaliar o marco regulatório do ensino a distância no Brasil. A decisão foi anunciada após os resultados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) 2022, que é aplicado em diferentes países sob a coordenação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Os resultados do Brasil indicaram um alto percentual de alunos sem conhecimentos básicos em matemática e ciências.

A maior atenção se voltou para os cursos de licenciatura, nos quais os universitários se formam para atuar como professor no Ensino Fundamental ou Ensino Médio. O desempenho no Pisa gerou preocupação porque uma boa formação destes futuros professores é considerada essencial para melhorar a qualidade da aprendizagem das crianças e jovens da educação básica.

Um dado do Censo da Educação Superior 2022, divulgado no ano passado pelo MEC, também é apontado como justificativa para uma maior atenção ao assunto. A modalidade de ensino a distância absorveu 81% de todos os alunos ingressantes em cursos de licenciatura em 2022. Nas instituições privadas, esse percentual chega a 93,7%.

Diante do cenário, o MEC sinaliza que irá proibir a oferta de licenciatura 100% a distância e deve estabelecer um mínimo obrigatório de atividades presenciais. A expectativa é que ocorra assim uma melhora na qualidade dos cursos. A medida parece estar alinhada o que se observa em resultados do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), por meio do qual uma prova escrita é aplicada aos alunos para avaliação dos cursos de ensino superior brasileiros. Os dados costumam indicar um desempenho melhor dos estudantes de cursos presenciais e de semipresenciais em comparação com os de cursos 100% a distância.

Celly Saba, professora e coordenadora do curso de Ciências Biológicas a distância oferecido pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), acredita que as universidades públicas não devem sofrer com as mudanças. Ela dá o exemplo do Rio de Janeiro. No estado, as diferentes universidades públicas – como a Uerj, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), entre outras – se uniram para desenvolver uma plataforma de ensino a distância. Foi assim criado o Centro de Educação Superior a Distância do Rio de Janeiro (Cederj), por meio do qual os cursos são administrados.

“Nossas licenciaturas já possuem atividades práticas obrigatórias que o aluno tem que fazer na escola. A gente cumpre a legislação que exige um estágio supervisionado na escola. Sabemos que algumas universidade não cumprem, mas não é o nosso caso”, afirma. Ainda assim, ela faz ponderações.”No geral, estou vendo a postura do MEC com bons olhos. É preciso fixar regras porque quando a gente fala de licenciatura, estamos falando de formação de educadores. Mas eu entendo que de uma maneira geral para o Brasil, algumas regras podem ser puxadas. Principalmente se a gente entende que tem aluno que é trabalhador e que mora longe da região metropolitana, o que gera dificuldade maior de acesso. Talvez fosse o caso de pegar um pouquinho mais leve na questão da carga horária presencial”, avalia.

Celly destaca que o fato de ser ministrado a distância não pode significar que haverá menor exigência. “Nós observamos um fenômeno muito parecido com o que ocorre nos nossos cursos presenciais. A evasão geralmente acontece logo no início do curso, até o segundo período. Porque há um mito de que ensino à distância é fácil. E não é bem assim. Quando eles percebem que não vão conseguir se adaptar, eles desistem. Porque tem que estudar, tem que ter toda uma disciplina, cumprir um cronograma”.

Ela também levanta dados que desafiam a ideia de que o mercado de trabalho menospreza esses cursos e não valoriza os concluintes. “O que a gente observa é que os alunos da educação a distancia levam um pouquinho mais de tempo para concluir. Mas posso dizer que 90% dos concluintes na Uerj vão para o mercado de trabalho rapidamente e a maioria deles vai para aquela área do curso que ele fez. É uma grande satisfação que a gente”, diz ela.

Mantenedora da UniCesumar e da Uniasselvi, a Vitru Educação encomendou à consultoria Nomads um estudo sobre a inserção no mercado de trabalho de seus alunos e ex-alunos da modalidade de ensino a distância. Os resultados indicam que 15,5% obtiveram seu primeiro emprego na área em que estavam cursando e outros 16% relataram que os estudos lhe proporcionaram uma promoção ou um mudança no cargo que possuíam antes. Houve ainda outros 17,5% que afirmaram ter obtido aumento salarial.

A discussão mobiliza diversos pesquisadores. Mas apesar das preocupações com a qualidade, há geralmente um reconhecimento de que a modalidade a distância será fundamental para ajudar o país a alcançar metas do Plano Nacional de Educação (PNE). Uma delas estabelece que 33% dos jovens de 18 a 24 anos estejam na educação superior. No último balanço divulgado, de 2022, esse percentual era de 25,3%.

Perfil

O levantamento da Abmes realizado em 2018 agregou dados que indicam diferenças no perfil dos estudantes de graduação conforme a modalidade de ensino. Os jovens respondiam majoritariamente pelas matrículas de educação presencial: 53% tinham até 30 anos. Já no ensino a distância, 67% tinham mais de 30 anos. Além disso, nessa modalidade, havia um maior percentual de alunos que trabalhavam, que estudaram em escolas públicas e que situavam-se nas classes C e D.

Na época em que esses dados foram divulgados, o então vice-presidente da ABMES, Celso Niskier, avaliou que a expansão do ensino a distância promovia uma inclusão educacional de pessoas mais velhas que já estavam no mercado de trabalho. “Esse público precisa da flexibilidade da educação a distância para completar o curso superior”, disse Niskier, que hoje preside a ABMES.

No caso específico dos indígenas, faltam estudos mais detalhados. Não há pesquisas que se dedicaram a traçar um perfil desses ingressantes em cursos de ensino a distância. Celly Saba revela uma dificuldade na Uerj. “O que acontece é que nós não temos esses alunos identificados. Se entraram pela reserva de vagas, consta que é cotista. E a cota é para negros, oriundos de escolas públicas, povos indígenas e quilombolas. Então os indígenas ficam nesse meio”, diz.

De acordo com Talita Lazarin, há elementos na cultura indígena que também podem explicar a boa aceitação do ensino a distância por parte deste público. “Ele permite que as pessoas continuem vivendo nas suas comunidades enquanto estão estudando. Porque umas das grandes questões para estudantes indígenas é ter que morar fora. Para vários povos, é muito difícil passar muito tempo longe da família e da comunidade. Por outro lado, irá demandar dele uma maior independência. O ensino a distância exige que a pessoa faça um planejamento de estudo, tenha uma disciplina”, diz a pesquisadora do CEstA-USP.

Lazarin também observa que, mesmo após formados, eles geralmente querem seguir vivendo na aldeia, como profissionais atuando, por exemplo, na escola ou no posto de saúde comunitário. Nos polos de Feijó e Tarauacá, no Acre, as universidades vinculadas à Vitru Educação atendem cerca de 200 estudantes indígenas oriundos de sete aldeias. O gestor acadêmico Geisson de Souza, que atua no suporte a esses alunos, faz constatação similar.

“Eles não querem se transformar em pessoas brancas. Eles querem assimilar a nossa cultura, assim como nós queremos aprender a deles, sem deixar de ter a própria essência. A procura maior é por Pedagogia, Gestão Pública, Enfermagem e   Biomedicina. O que a gente observa é que 99% dos nossos alunos indígenas não querem fazer uma graduação para passar em um concurso e vir para a cidade, porque tem mais oportunidade. Eles querem absorver o conhecimento, se tornar um profissional de excelência e voltar para aplicar esse conhecimento com o intuito de melhorar a vida das pessoas que cresceram com eles”, explicou.

A experiência nas universidades vinculadas à Vitru Educação refletem os dados do levantamento do Semesp realizado em 2021. Eles indicam que os cursos a distância com mais estudantes indígenas eram pedagogia (21,3%) e administração (7,0%). “A evasão do aluno indígena é pelo menos 50% menor do que dos demais alunos. Assiduidade e pagamento também. É quase 90% a adimplência deles, o que indica que estão levando o curso a sério, estão realmente interessados”, acrescenta Geisson. Segundo ele, esses estudantes afirmam que concluir o ensino superior e compartilhar seus conhecimentos é uma forma de mostrar o compromisso com sua comunidade.

Essa é a expectativa da indígena macuxi Consolata Gregorio, de Normandia (RR). “Sou falante da língua maimu, e escolhi o curso Pedagogia porque sou professora, trabalho com crianças da educação infantil e fundamental ensinando a elas a língua materna Macuxi. Quero aprofundar mais o que eu já tenho de conhecimento”, explica.

Ministra defende maior participação indígena nas políticas públicas

O futuro dos povos originários brasileiros é um campo de disputas e possibilidades, marcado por contradições. Essa é a principal conclusão da série de entrevistas com intelectuais, lideranças e ativistas indígenas que a Agência Brasil publicou esta semana, por ocasião do Dia dos Povos Indígenas, lembrado nesta sexta-feira (19).

“Estamos em um momento de protagonismo dos povos indígenas […], mas, de fato, temos uma questão estrutural, problemas históricos, resultado do abandono, do descaso do Poder Público”, reconhece a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara.

O número de pessoas que se autodeclaram indígenas cresceu no país quase seis vezes entre 1991 e 2022, período em que representantes de diferentes etnias passaram a ocupar espaços e posições antes inacessíveis e a presença de estudantes indígenas em cursos de graduação e pós-graduação se tornou comum – graças, principalmente, à implementação de uma política nacional de cotas. No entanto, mazelas seculares, como a violência, a discriminação, as violações aos territórios tradicionais e aos direitos básicos e a precariedade da assistência à saúde e da educação indígena seguem alimentando crises humanitárias como as que vitimam os yanomami, na Amazônia, e os guarani e kaiowá, no Mato Grosso do Sul, entre outros povos.

 A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, diz que “falar do futuro dos povos indígenas é falar do futuro de toda a humanidade” – Marcelo Camargo/Arquivo/Agência Brasil

“Temos que consolidar a participação indígena nos espaços onde as políticas públicas são pensadas, decididas e executadas”, propõe Sonia, para quem o reconhecimento da importância da contribuição dada pelas 305 etnias indígenas identificadas no Brasil, bem como o respeito a seus direitos, é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e sustentável.

Nascida na Terra Indígena Arariboia, no sul-maranhense, em 1974, Sonia Bone de Sousa Silva Santos é cria dos movimentos sociais. Deixou sua comunidade, ainda jovem, para estudar. Formou-se em letras pela Universidade Estadual do Maranhão (Uema), onde também fez pós-graduação em educação especial. Atuou em diferentes organizações indígenas, tendo sido coordenadora nacional da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Filiada ao PSOL, foi candidata a vice-presidente do Brasil, em 2018, na chapa encabeçada por Guilherme Boulos.

Quatro anos depois, tornou-se a primeira indígena eleita deputada federal por São Paulo, com mais de 156 mil votos. Licenciou-se do cargo para assumir o comando do inédito Ministério dos Povos Indígenas, criado no início da atual gestão federal. Em 2022, a prestigiada revista norte-americana Time a apontou como uma das 100 personalidades globais mais influentes do ano.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista que a ministra Sonia Guajajara concedeu à Agência Brasil.

Agência Brasil: Ministra, evidentemente, o futuro não está dado, mas, considerando o contexto, como a senhora imagina que os povos indígenas brasileiros estarão organizados política e socialmente? Qual o futuro dos povos indígenas?
Sonia Guajajara: Falar do futuro dos povos indígenas é falar do futuro de toda a humanidade. Não há, por exemplo, como pensarmos em soluções para a emergência climática global sem levarmos em conta, respeitarmos e valorizarmos os diferentes modos de vida dos povos indígenas. Por isso, quando me perguntam como ajudar aos povos indígenas, costumo responder que, hoje, nós é que estamos em condições de ajudar o restante da humanidade. Seja colaborando para pensarmos [o futuro], seja ajudando as pessoas a serem mais solidárias e a terem uma maior consciência sobre a importância de protegermos o meio ambiente e a biodiversidade.

Agência Brasil: Por isso a senhora tem dito que o propósito do ministério é construir uma sociedade capaz de reconhecer a contribuição e a importância das culturas indígenas como forma de valorizar a identidade nacional e garantir o futuro do planeta?
Sonia: Exato. Os povos indígenas deram e dão uma enorme contribuição para a [construção de uma] identidade nacional. Apesar disso, os brasileiros ainda desconhecem a realidade e a diversidade de povos, culturas e territórios indígenas existentes no país. Defendo uma tomada de consciência política, ecológica e ambiental em relação ao que representa a presença indígena. Porque as pessoas só vão respeitar tudo isso a partir do momento em que tiverem conhecimento desses aspectos. Daí a importância de os estabelecimentos de ensino, da educação básica às universidades, acolherem os estudantes indígenas, inclusive por meio de cotas, e também os nossos sábios e nossas lideranças, [estimulando a] troca de saberes e buscando compreender melhor os conhecimentos tradicionais.

Agência Brasil: Vou insistir na primeira pergunta. Indígenas como a senhora ocuparam espaços antes inacessíveis, não só institucionais, como o ministério, a presidência da Funai e assentos no Parlamento, mas em outros setores, como o assento que o filósofo, ambientalista e escritor Ailton Krenak recentemente conquistou na Academia Brasileira de Letras. Nos territórios, acampamentos e áreas retomadas, contudo, não só os problemas persistem como, em alguns casos, se agravaram, como as ameaças aos territórios já homologados. Como pensar o futuro dos povos indígenas neste contexto?
Sonia: Estamos, sim, em um momento de protagonismo indígena. Representantes ocuparam espaços e cargos estratégicos, trazendo nossas cosmovisões inclusive para dentro das instituições. Esta é uma forma de aldear o Estado e a política. Agora, de fato, temos uma questão estrutural, problemas históricos, resultado do abandono, do descaso do Poder Público. Lógico que precisaremos de ações articuladas para [responder] aos problemas causados pela falta de qualidade do ensino, saúde insuficiente e desvalorização cultural. Para isso, temos que consolidar a participação indígena nos espaços onde as políticas públicas são pensadas, decididas e executadas. Estamos trabalhando nisso. Com a criação do Ministério dos Povos Indígenas e com indígenas à frente da Funai, podendo conduzir a saúde indígena e ocupando os espaços de participação, podemos promover mais diálogo e, juntos, construirmos uma política indigenista adequada às nossas realidades.

Agência Brasil: Que outras ações são importantes além dessa consolidação da participação política indígena junto às instituições?
Sonia: A garantia territorial continua sendo a bandeira de luta prioritária dos povos indígenas no Brasil. No Censo de 2010, foram contabilizados cerca de 900 mil indígenas. Já no Censo 2022, cerca de 1,7 milhão de pessoas identificaram-se como indígenas. É uma mostra de que a população indígena vem crescendo, de que há muito mais pessoas orgulhosas de se assumirem indígenas, ao contrário do período em que elas tinham medo e negavam suas identidades. Isso tende a fortalecer a luta pela valorização da cultura indígena. Acredito que a tendência é a população indígena crescer cada vez mais. E a [homologação] dos territórios é fundamental para que isso aconteça, já que o controle dos territórios fortalece a cultura e a identidade dos povos indígenas e nos possibilita avançarmos na implementação de outras políticas públicas. Estamos trabalhando neste sentido. Estamos conscientes de que, diante da invisibilidade e desvalorização da presença indígena, precisamos avançar muito e rápido. No ano passado, homologamos oito novas terras indígenas. É quase o mesmo número de terras homologadas nos dez anos anteriores [11]. Continuamos articulando para que novas demarcações saiam ainda este ano. E também para fortalecer a Funai, para que ela possa estabelecer os grupos de trabalho responsáveis pelos estudos de identificação e delimitação territorial. Simultaneamente, temos olhado para os indígenas em contexto urbano, que precisam de políticas voltadas às suas realidades.

Agência Brasil: O que é mais desafiador do ponto de vista político: lidar com a crise humanitária que afeta os yanomami, expulsando os invasores da área indígena já homologada, ou encontrar uma solução para o conflito que envolve as comunidades guarani-kaiowá de Mato Grosso do Sul, que vivem espremidas em territórios exíguos, cercadas por aglomerados urbanos e extensas fazendas de soja?
Sonia: Acho que não há uma situação mais desafiadora que outra. São realidades diferentes que demandam a mesma urgência [do Poder Público]. Há, no país, indígenas [vivendo] em contato [com não indígenas] há 400, 500 anos. Há os de contato mais recente. Há os que vivem em contexto urbano e os que vivem isolados, entre os quais há alguns que não têm contato nem mesmo com outros grupos que habitam o mesmo território. São realidades diversas e não coloco nenhuma dessas situações como prioritárias. Temos territórios demarcados invadidos pela exploração ilegal de madeira, de minério, pela grilagem, e áreas não demarcadas, como as reivindicadas pelos guarani-kaiowá que permanecem acampados ou em [áreas] retomadas, em meio a conflitos. São desafios que precisamos enfrentar. Diante da correlação de forças entre o Poder Executivo e setores do Congresso Nacional que se colocam contra [o avanço da] pauta indígena, é, de fato, uma conjuntura política um tanto adversa. Ainda assim, temos retirado não indígenas das áreas homologadas e seguimos dialogando, implementando ações para avançarmos na regularização fundiária, inclusive em Mato Grosso do Sul.

Agência Brasil: Durante a sessão da Comissão de Anistia que resultou no pedido de desculpas do Estado brasileiro às comunidades krenak, guarani e kaiowá por violações aos direitos humanos cometidos durante a ditadura, um representante do ministério leu uma mensagem que a senhora enviou. Nela, a senhora sustenta que o Estado precisa reconhecer e reparar todas as violações que os povos indígenas sofreram como forma de evitarmos que os fatos se repitam. A que outras violações a senhora estava se referindo?
Sonia: Olha, são tantas as histórias de violações e de violência contra os povos indígenas. Há exemplos como o da Cadeia Krenak, instalada em Resplendor [MG], para onde indígenas de diferentes povos eram levados e onde eram torturados e tinham suas condições de indígenas postas à prova. Muitos povos indígenas foram forçados a deixar de vivenciar suas culturas, suas identidades. Isso não pode mais se repetir.

Agência Brasil: O Ailton Krenak diz que, se houver futuro, ele será ancestral. A senhora concorda?
Sonia: Sim. O futuro é ancestral porque passa pelo respeito aos modos de vida dos povos indígenas, respeito à relação desses povos com a natureza. Hoje, somos 5% da população mundial, mas protegemos 82% da biodiversidade planetária. Isso significa que, enquanto os direitos indígenas estiverem ameaçados, a biodiversidade estará ameaçada. E a humanidade inteira estará em risco. Portanto, é importante reconhecer os povos e a cultura indígena como parte fundamental da garantia de futuro.

Agência Brasil: Nesse aspecto, qual o papel da juventude indígena?
Sonia: É fundamental que a juventude indígena esteja comprometida com a continuidade da luta de nossos povos pela valorização de nossas identidades. Os jovens têm feito isso assumindo diferentes formas de protagonismo, inclusive na comunicação. Há jovens usando as redes sociais para mostrar que nós, indígenas, não estamos só nas aldeias, o tempo todo pintados e com cocar. Também podemos estar nas universidades, no Parlamento, ministérios, em debates globais. É, também, um papel fundamental.

Ministra diz que indígenas preservam 80% da biodiversidade do planeta

Em pronunciamento em cadeia nacional de rádio e televisão, veiculado nesta quinta-feira (18), a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, destacou a riqueza cultural das populações tradicionais e seu papel na preservação do meio ambiente.  

“Os territórios indígenas preservam 80% de toda a biodiversidade do planeta. E são as áreas onde ocorre a menor taxa de desmatamento. Sem o nosso cuidado com o meio ambiente, a crise climática se agravaria, provocando secas, inundações, ciclones e outros eventos ainda mais severos em todo o país”, afirmou a ministra.

O pronunciamento teve duração de quase cinco minutos e foi veiculado um dia antes do Dia dos Povos Indígenas, celebrado em 19 de abril.

“É o momento de celebrarmos a riqueza cultural dos 305 povos indígenas que vivem neste nosso Brasil, que fazem parte do grande mosaico de tradições e histórias de resistência do nosso país. Vivemos em florestas, alguns de nós em áreas isoladas, mas estamos também nas cidades”, observou Guajajara, também mencionando como os indígenas estão inseridos no contexto da sociedade brasileira.

“Somos médicos, educadores, advogados, cientistas sociais, prefeitos, vereadores, deputados. Habitamos todos os biomas: Amazônia, Cerrado, Pantanal, Mata Atlântica, Pampa e Caatinga”, pontuou.

No pronunciamento, a ministra dos Povos Indígenas falou das ações do governo federal para enfrentar, por exemplo, a crise do povo yanomami, em Roraima, e o combate a atividades criminosas na maior terra indígena do país.

“Atuamos de forma enérgica contra os criminosos que destruíram suas florestas, contaminaram os rios com mercúrio, mataram os peixes e levaram doenças e fome aos nossos parentes”. Sônia Guajajara ainda destacou o fato de o país ter, pela primeira vez, uma pasta exclusiva e dedicada aos povos originários, além de indígenas na chefia de postos-chave, como da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde.

A ministra ressaltou também a realização da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de Belém, em 2025, que terá, segundo ela, “a maior e melhor participação indígena na história dos acordos ambientais”.

Sônia Guajajara ainda apontou a retomada da política de demarcação de terras indígenas, que havia sido abandonada pelo governo anterior.

Na véspera do Dia dos Povos Indígenas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva participou da reunião de reabertura do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) e assinou decreto de demarcação de mais duas terras indígenas. Em evento na sede do Ministério da Justiça e Segurança Pública, nesta quinta-feira (18), foram homologadas as terras indígenas Aldeia Velha, na Bahia, e Cacique Fontoura, em Mato Grosso.

Número de denúncias de violência contra idosos cresce em 2024

O vídeo de uma mulher tentando sacar um empréstimo no nome de um idoso morto que ela trazia em uma cadeira de rodas circulou nas redes sociais e na imprensa e causou indignação até mesmo no exterior. Presa, Érika de Souza Vieira Nunes alega que estava tentando buscar o dinheiro para que o tio comprasse uma TV e reformasse a casa, mas a polícia trata o caso como tentativa de fraude porque Paulo Roberto Braga, de 68 anos, já estava morto no momento em que a sobrinha pedia para que ele assinasse. 

Independentemente do desfecho do caso, as suspeitas chamam a atenção para a vulnerabilidade de idosos, e especialistas ouvidos pela Agência Brasil descrevem que o cenário no país é de aumento da exploração e agressão a essa população.

Só nos três primeiros meses de 2024 já foram registradas 42.995 denúncias de violações contra pessoas de 60 anos de idade ou mais na Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH). Número bem maior do que os do mesmo período de 2023, com 33.546 registros, e de 2022, com 19.764. Entre os abusos mais comuns este ano, destaques para negligência (17,51%), exposição de risco à saúde (14,68%), tortura psíquica (12,89%), maus tratos (12,20%) e violência patrimonial (5,72%).

E o que leva familiares a agredir ou a explorar os idosos? Cada caso tem particularidades, mas há fatores mais comuns como exaustão do cuidador, falta de preparo, desconhecimento da lei e condições socioeconômicas precárias. É o que explica Sandra Rabello, coordenadora de projetos de extensão do Núcleo de Envelhecimento Humano da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), e presidente do Departamento de Gerontologia da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG).

“As famílias podem cometer esses crimes por falta de conhecimento e de preparo ao cuidar de pessoas fragilizadas. A falta de informação, de divulgação sobre a legislação, traz dificuldades nesse cuidado. As condições de vida, como o desemprego, também favorecem as pessoas a cometerem determinados crimes, como empréstimos consignados, extorsão, pressão sobre os idosos, violência psicológica. Outra questão é a exaustão sobre o cuidado de idosos, fragilizados ou com síndrome demencial. Isso pode prejudicar muito os relacionamentos dentro das famílias”, explica Sandra Rabello.

Para a especialista, é preciso olhar para além dos aspectos e responsabilidades individuais de cada crime. “E entender que há dimensões coletivas na violência contra os idosos, que começam com exclusão e invisibilidade. Falta um olhar mais atento da sociedade e ações mais concretas de órgãos públicos para fiscalizar o cuidado dos idosos”.

“Os idosos tendem a proteger filhos, netos que, às vezes, são dependentes químicos ou estão desempregados. A identificação de abusos pode surgir através da convivência de um profissional com a pessoa idosa, que vai observar os sinais e fazer uma intervenção. Nos casos de exploração, o profissional deve estimular a pessoa idosa a fazer a denúncia ao Ministério Público”, disse Sandra Rabello.

Entendimento semelhante tem Fatima Henriette de Miranda e Silva, presidente da Comissão de Atendimento à Pessoa Idosa da Ordem dos Advogados do Brasil-RJ.

“Para prevenir essas violências, entendo ser necessário investir em educação e conscientização sobre os direitos dos idosos, promover o diálogo e o apoio dentro das famílias, proporcionar serviços de assistência social e psicológica para os idosos em situação de vulnerabilidade”, defende Fatima. “Importante ter campanhas, políticas públicas, com participação de governantes, familiares e toda a sociedade”.

Quando a violência acontece, aqueles que a presenciaram devem buscar os canais apropriados de denúncia. Em muitos casos, uma intervenção inicial é capaz de evitar problemas maiores, disse a advogada.

“Vítimas, familiares ou qualquer pessoa que testemunhe casos de abusos, denuncie imediatamente às autoridades competentes, como delegacias especializadas em proteção do idoso, o Ministério Público ou o Disque 100. Também estão sendo recebidas queixas nas delegacias de bairro”, recomenda Fatima.

O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania reforça que o Disque 100 funciona 24 horas por dia, nos 7 dias da semana e registra denúncias de violações, dissemina informações e orienta a sociedade sobre a política de direitos humanos. O canal pode ser acionado por meio de ligação gratuita, discando 100 em qualquer aparelho telefônico. Pela internet, as denúncias podem ser feitas no site da Ouvidoria, pelo WhatsApp (61) 99611-0100) ou Telegram. O serviço também dispõe de atendimento na Língua Brasileira de Sinais (Libras), no site da Ouvidoria.

Povos indígenas pedem prioridade em proteção, diz presidente da Funai

O Brasil tem cerca de 1,7 milhão de indígenas autodeclarados de 305 etnias, o que representa 0,83% do total de habitantes do país, de acordo com dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Em referência ao Dia dos Povos Indígenas, na próxima sexta-feira (19), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) promove o chamado Abril Indígena 2024 durante todo o mês, com atividades que vão desde exposições, feiras, a ações de cidadania e inclusão dos povos tradicionais, valorização das culturas e ancestralidade e também marca a resistência e a luta deste segmento da população brasileira. Nesta semana de celebração da data, a presidente da entidade, Joenia Wapichana, concedeu entrevista aos veículos da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

Ela apontou que desde o início do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2023, a fundação, criada há 56 anos, voltou a cumprir a missão institucional de defender os povos indígenas, após o que ela classifica como desmonte das políticas indigenistas, de proteção ambiental e de assistência a este grupo populacional.

Para Joenia, os desafios dos povos indígenas são, também, os da Funai, que tenta consolidar, principalmente, as demarcações e a proteção e gestão das terras indígenas; defesa de direitos, fortalecimento das comunidades para que possam desenvolver projetos de sustentabilidade e de bem-viver; a garantia de seus modos de vida tradicional, cultura e língua; promoção da segurança física; e proteção de povos isolados e de recente contato.

“A proteção para que os povos indígenas continuem a existir com as suas próprias identidades, e que não sofram violência porque são indígenas, é a grande demanda dos povos indígenas. Creio que continua sendo a número um. E que os direitos alcançados na nossa Constituição não sejam rasgados, nem retrocedidos”, prioriza.

Yanomami

A presidente da Funai, Joenia Wapichana, celebrou que, a partir desta semana, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), com apoio da Funai, iniciou a distribuição de cestas de alimentos aos yanomami, após o encerramento da operação militar pelo Exército, que fazia essas entregas desde o ano passado. As novas entregas vão garantir a segurança alimentar dessa etnia.

“A gente não quer ver ninguém morrendo de fome, quem tem fome tem urgência, e da mesma forma, nós estamos começando a discutir projetos de agricultura, de sustentabilidade, de segurança alimentar, porque a gente sabe que não vai ser só cesta de alimentos. Nós queremos retornar a dignidade do povo yanomami.”

A partir da contratação, por um ano, de uma empresa privada, será feita a distribuição de quase nove mil cestas de alimentos por mês. Ao todo, ao longo do ano, serão cerca de 20 mil horas de voo divididas em várias aeronaves para a entrega das cestas na Terra Indígena Yanomami (TIY), em Roraima, até o povo retome as roças comunitárias sem risco de contaminação.

Mulheres e crianças yanomami em Surucucu, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

A presidente esclareceu que as lideranças indígenas estão sendo consultadas para debater quais alimentos devem ser fornecidos. “A gente teve uma discussão recente, em Roraima, para conversar com os próprios yanomami e ye’kwana para falar sobre a composição dessas cestas básicas. Tudo para deixar de forma transparente todas essas operações, fazer o levantamento e estabelecer uma rotina de entrega [de alimentos] às comunidades. As coisas estão andando”.

Em fevereiro, o presidente Lula instituiu a Casa de Governo, em Boa Vista, capital de Roraima, para centralizar as ações do governo federal no território, que abriga a maior população indígena do país. Cerca de 27,15 mil pessoas vivem em 384 aldeias espalhadas em 9,5 milhões de hectares, localizados, entre os estados do Amazonas e de Roraima, na fronteira com a Venezuela.

A Casa de Governo chegou cerca de um ano depois de o governo federal declarar, em janeiro de 2023, emergência em saúde pública na terra yanomami. Desde então, órgãos federais tentam enfrentar a crise, fazer a desintrusão de invasores, e pôr fim às atividades de garimpo ilegal, que destroem o meio ambiente e contaminam os rios da região.

No ano passado, o Ministério da Saúde registrou 363 mortes de indígenas yanomami, causadas, sobretudo, por desnutrição e malária. Os óbitos foram 6% maior do que os registrados em 2022, 343 mortes nesta etnia. Joenia Wapichana explicou que o Poder Público tem atuado para reverter a situação e notificou que estes números estão sendo investigados para descobrir se houve subnotificação dos óbitos no governo anterior.

Demarcação de terras

Para a presidente da Fundação, entre os principais desafios da pasta está a demarcação de terras indígenas. Este direito constitucional visa garantir a autonomia e a proteção dos direitos dos povos indígenas, bem como sua participação na gestão e preservação desses territórios.

Joenia garante que, em 2023, a Funai voltou a tratar a demarcação de territórios indígenas como prioridade.

“No ano passado, criamos uma série de grupos [técnicos de identificação e delimitação] para constituir novas terras indígenas que resultaram em três delimitações: uma no Acre, no Pará e outra em Minas Gerais. Encaminhamos uma série de processos que não são de competência da Funai ao Ministério da Justiça. A ideia é, justamente, que não fiquem engavetados e se dê andamento às análises e contestações das áreas que foram publicadas ano passado,” disse.

Dados da Funai, de novembro de 2023, indicam 736 terras indígenas registradas no país. Juntas, as áreas representam aproximadamente 13,75% do território brasileiro, estando localizadas em todos os biomas, sobretudo na Amazônia Legal. Deste total, 132 terras indígenas estão em fase de estudos no processo de demarcação.

O órgão indigenista analisa ainda cerca de 490 reivindicações de povos indígenas.

Violência

Joenia afirma que, nessa segunda-feira (15), foi criado um grupo de trabalho para discutir os conflitos fundiários que envolvem os povos indígenas e aprimorar e padronizar um fluxo de atuação do órgão indigenista em casos de violência contra essa população, e que vai discutir a questão indígena em alguns estados.

“Para aprimorar o nosso relacionamento com outros órgãos, em conflitos, a gente precisa se alinhar [internamente] também e entender como serão nossas respostas, quando há reivindicações de indígenas relacionadas à Funai para dar respostas rápidas também,” afirmou.

Em janeiro deste ano, uma indígena pataxó hã-hã-hãe foi assassinada no município de Potiraguá, no extremo sul da Bahia, após conflito entre indígenas, policiais militares e fazendeiros.

Joenia disse que a Funai tem acompanhado as diferentes situações diretamente e por meio das coordenações regionais. Depois, os casos foram encaminhados para investigação nos órgãos competentes e pelo Ministério da Justiça para combater a impunidade e estabelecer segurança às vítimas e familiares, com apoio do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).

“A disputa pela terra e a demora na demarcação dos territórios indígenas geram uma vulnerabilidade muito alta. Por isso, a gente prioriza que a demarcação e a proteção sejam consideradas como estratégias para conter a violência”, destacou a presidente da Funai.

O relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2022, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), apontou 158 registros de conflitos por direitos territoriais; e 309 casos de invasões, exploração ilegal de recursos (como madeira e minérios) e danos ao patrimônio, que atingiram 218 terras indígenas, em 25 estados.

De acordo com o mesmo estudo, em 2022, houve 416 casos de violência contra indígenas em 2022, sendo assassinatos (180); homicídios culposos (17); lesões corporais dolosas (17); tentativas de assassinato (28); ameaças de morte (27); ameaças várias (60); violência sexual (20); racismo e discriminação étnico-cultural (38) e abusos de poder (29).

Legislativo

Natural de Boa Vista (RO), Joenia Wapichana foi a primeira mulher indígena eleita deputada federal e exerceu o cargo de 2019 a 2022. Nas eleições de 2022, apenas cinco indígenas foram eleitos para a Câmara dos Deputados, entre eles a atual ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara. Joenia não se reelegeu e, em 2023, assumiu o cargo de presidente da Funai. Ela é a primeira mulher indígena advogada no Brasil e mestra em Direito Internacional pela Universidade do Arizona (EUA). 

Ela avaliou o posicionamento do Congresso Nacional em questões relativas aos povos indígenas.

Entre elas, em outubro passado, o Legislativo aprovou a Lei 14.701/2023, sobre o marco temporal das terras indígenas e, em dezembro, derrubou os vetos do presidente Lula à tese que estabelece que os povos indígenas somente teriam direito à demarcação de terras do Brasil que estavam ocupadas por eles na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. Entidades envolvidas com a luta indígenas classificam o texto como uma negativa do direito de existir destes povos originários.

 Lideranças indígenas fazem passeata contra marco temporal na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

Outra questão aprovada pelos congressistas, em maio de 2023, com impacto nas competências do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), foi a medida provisória (MP) sobre a estrutura ministerial do governo Lula. Pelo texto, o MPI deixou de homologar as terras de povos originários e a função foi devolvida ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.

 “Acredito que um dia o nosso país possa ter um Congresso Nacional que possa ver as minorias, reconhecer a importância dos povos originários desse país, que possa, inclusive, respeitar o que aprovaram, naquela Casa, a nossa Constituição Federal. É o mínimo que se espera. Eu sei que às vezes a gente fala que é um sonho, mas é o sonho que a gente compartilha com todos os povos indígenas, que não querem mais do que seus direitos respeitados e implementados,” destacou.

“A vida dos povos indígenas nunca foi fácil, nunca. Isso é histórico. Os povos indígenas têm uma história de resistência no Brasil, desde o primeiro momento em que chegaram os não indígenas. O Brasil sabe somente dessa história do colonialismo. Não sabe a parte que, durante esse tempo todo na história, se romperam muitas barreiras, como as barreiras da sua própria voz de poder falar por si só.”

Mulheres indígenas

Além de uma presidente mulher, a atual diretoria do órgão federal responsável pela política indigenista brasileira é formada por mulheres. Em relação às indígenas, Joenia afirma que a Funai atua para que elas sejam respeitadas, apoia a não discriminação a elas e reforça o papel dessas mulheres e meninas na promoção do bem viver, sempre considerando a diversidade e a especificidade de cada povo.

“Não quero ver as mulheres vítimas de violência, tanto física, moral, social. As mulheres têm um potencial muito grande nas suas lideranças indígenas, para ocupar qualquer espaço que elas queiram como eu ocupei e estou ocupando,” destacou.

“[Quero] que as mulheres indígenas se sintam fortalecidas pela sua luta, pela sua história. Cada uma de nós tem uma história e contribuiu, sim, com o direito dos povos indígenas. Elas sofrem muitas vezes, duas ou três vezes, uma violência por serem mulheres. Mas que estejam convictas, que elas exercem o papel fundamental dentro da nossa sociedade, tanto como indígena também, como não indígena brasileira.”

As mulheres indígenas também estão entre os brigadistas contratados pelo Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) para atividades de prevenção e combate a incêndios florestais. Do total de contratados em 2023, foram 80 mulheres, sendo 24 indígenas.

Cidadania, autonomia e protagonismo

Joenia destacou que à frente da Funai quer promover também o desenvolvimento sustentável com projetos para garantir a autonomia e protagonismo dos povos. Com esse entendimento, a Funai criou o Selo Indígenas do Brasil, em janeiro deste ano, que atesta que um produto (agrícola, artesanal ou extrativista) foi cultivado ou coletado por um indígena, em uma terra originária.

O objetivo é valorizar e identificar a cultura dos povos originários. O selo informa os nomes da etnia do produtor, seja pessoa física ou jurídica, e identifica a terra indígena onde foi produzido. A iniciativa da Funai, que agrega valor à cadeia produtiva, é conjunta com os ministérios dos Povos Indígenas (MPI) e do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).

No Concurso Público Nacional Unificado para preencher vagas na Funai, serão oferecidas 502 vagas, entre cargos de níveis médio e superior. Deste total, 30% (150) serão destinados a pessoas indígenas. O objetivo da fundação é ter uma política mais inclusiva e representativa e evitar desistência das vagas por não indígenas.

No Abril Indígena 2024, a Funai tem realizado ainda ações em alguns territórios de acesso à documentação civil para indígenas garantirem direitos sociais e de cidadania, como qualquer outro cidadão brasileiro.

Números

O Censo 2022 do IBGE retrata que do total de indígenas autodeclarados (1,7 milhão, de 305 etnias), mais da metade deles — 51,25% ou 867,9 mil indígenas — vive na Amazônia Legal.

Os indígenas estão presentes em 86,7% dos municípios. Os dois estados com maior número de pessoas indígenas, Amazonas (490,9 mil) e Bahia (229,1 mil), concentravam 42,51% do total dessa população. No território brasileiro, são falados 274 idiomas pelos povos brasileiros. Antes da colonização portuguesa, estima-se que este número chegou a 1.200 línguas, responsáveis pela transmissão oral de saberes ancestrais.