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Cimi: políticas públicas ainda não frearam violência contra indígenas

A mudança de governo, no âmbito federal, não foi suficiente para frear a violência e o desrespeito aos direitos indígenas. A conclusão é do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que lançou, na tarde desta segunda-feira (22), o relatório anual Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2023.

“O conselho lança esse relatório com profundo pesar”, afirma o presidente do Cimi e arcebispo de Manaus (AM), Leonardo Steiner, na apresentação do documento.

“A cada ano, depois de organizarmos e analisarmos os dados e as informações que nos são enviadas pelas equipes de missionárias e missionários, bem como as obtidas junto aos órgãos públicos e à imprensa, vemos que as descrições de fatos e as cenas de violência se repetem e nos impactam profundamente.”

Segundo o conselho, o primeiro ano da atual gestão federal (2023) foi marcado pela retomada das ações fiscalizatórias e maior repressão às invasões em alguns territórios, como o dos yanomami, no Norte do país, mas a demarcação de novas áreas da União destinadas ao usufruto exclusivo indígenas e também as ações de proteção e assistência às comunidades permaneceram insuficientes.

“O ano de 2023 iniciou com grandes expectativas em relação à política indigenista do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não apenas porque a nova gestão sucedeu um governo abertamente anti-indígena [a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro], mas também porque o tema assumiu centralidade nos discursos e anúncios feitos pelo novo mandatário desde a campanha eleitoral”, destaca o conselho.

O relatório cita a criação do inédito Ministério dos Povos Indígenas (MPI), à nomeação de representantes de diferentes etnias para postos importantes, como o próprio MPI, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), e a declaração de Emergência Nacional de Saúde na Terra Indígena Yanomami, com a subsequente operação de retirada – ou desintrusão – de não-indígenas, sobretudo garimpeiros, da reserva.

Após seis anos de paralisação dos processos demarcatórios, o governo federal homologou, no ano passado, oito novas terras indígenas. De acordo com a Funai, a União também destinou mais de R$ 200 milhões para ações de proteção e demarcação territorial. E cerca de R$ 5,3 milhões foram destinados ao pagamento de indenizações por benfeitorias a ocupantes de boa-fé retirados de terras indígenas.

Marco temporal

No relatório, o Cimi reconhece que, em 2023, houve uma melhora na execução da política indigenista em comparação aos anos anteriores, mas ainda insuficiente.

“Após anos de abandono e omissão ativa de governos anteriores frente à presença ilegal de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami, a declaração de Emergência Nacional de Saúde e o início de uma grande operação de desintrusão no território apontaram na direção de uma mudança efetiva em relação à política indigenista. Sem demora, contudo, a realidade política se impôs. O Congresso Nacional atuou para esvaziar o MPI e atacar os direitos indígenas, especialmente por meio da aprovação da Lei 14.701/2023”, destacou o conselho.

Aprovada em setembro do ano passado, a Lei nº 14.701 estabelece o chamado marco temporal. Pela tese, os indígenas só têm direito aos territórios originários que ocupavam ou já reivindicavam até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

O Supremo Tribunal Federal (STF) tinha apontado a inconstitucionalidade da tese apenas uma semana antes de os deputados federais e senadores aprovarem a lei. O que motivou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a vetar este ponto da lei, em outubro.

Em dezembro, o Congresso derrubou o veto de Lula, mantendo o marco temporal. A queda de braço entre Executivo e Legislativo foi judicializada por setores favoráveis e contrários à lei. Em abril, o ministro Gilmar Mendes, do STF, determinou a instauração de um processo de conciliação, suspendendo o julgamento de qualquer ação que trate do tema.

A previsão é de que a comissão criada para tentar estabelecer um acordo entre as partes comece a funcionar no próximo dia 5 de agosto.

Para o Cimi, as disputas em torno dos direitos indígenas, travadas no âmbito dos três Poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo), se refletem em um “cenário de continuidade das violências e violações contra os povos originários e seus territórios”.

“Do total de 1.381 terras e demandas territoriais indígenas existentes no Brasil, a maioria (62%) segue com pendências administrativas para sua regularização […] São 850 terras indígenas com pendências. Destas, 563 ainda não tiveram nenhuma providência do Estado para sua demarcação”, aponta o conselho.

O relatório destaca que os “avanços” na constituição ou reestruturação, pela Funai, dos grupos técnicos responsáveis por identificar e delimitar os territórios indígenas indicam “a disposição do órgão em dar andamento à primeira etapa na regularização de demandas represadas há anos”.

Encaminhamentos

Segundo a Funai, em 2023, os processos relativos a 25 terras indígenas foram encaminhados a fim de permitir a publicação das chamadas portarias declaratórias, uma declaração estatal sobre os limites da área já identificada e delimitada por antropólogos como território tradicional indígena. Além disso, foram constituídos 37 grupos técnicos para verificar a situação de outras áreas reivindicadas.

“[Contudo] a indefinição sobre o marco temporal torna impossível uma previsão acerca do cumprimento dos prazos estabelecidos, na medida em que o governo hesita e utiliza a Lei 14.701/2023 como justificativa para não avançar nos procedimentos demarcatórios”, acrescenta o conselho.

O documento reforça que a homologação de oito terras indígenas ao longo do ano passado ficou “aquém das expectativas”, ainda que o resultado seja superior ao dos quatro anos anteriores, quando nenhum novo território foi homologado.

Governo

Consultados, os ministérios dos Povos Indígenas e da Saúde informaram não ter tido acesso prévio ao relatório divulgado esta tarde e que se manifestarão após analisar o documento.

Em nota, o Ministério da Justiça e Segurança Pública informou que a Força Nacional de Segurança Pública tem atuado em terras indígenas, sob demanda, para auxiliar outros órgãos a manter a ordem pública e garantir a segurança e integridade patrimonial e das pessoas.

Ainda segundo a pasta, só no primeiro semestre deste ano, agentes da tropa federativa participaram de operações em 21 áreas indígenas de nove unidades federativas, incluindo ações de combate ao garimpo ilegal, remoção de não-indígenas, proteção dos recursos naturais, policiamento ostensivo e fiscalização ambiental.

Além das operações, a Força Nacional também trabalha na desintrusão das terras Yanomami, Karipuna, Arariboia, Kayapó, Munduruku, Uru-Eu-Wau-Wau e Trincheira Bacajá, esta última, já concluída e, atualmente, em fase de monitoramento da região e elaboração de um plano de sustentabilidade do território.

A nota do Ministério informa ainda que as desocupações correm no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, expedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em novembro de 2023. A Suprema Corte homologou os planos operacionais de retirada de invasores dos sete territórios, destacando a necessidade de planejamentos semelhantes e adaptados à realidade de cada comunidade.

“Além disso a Secretaria de Acesso à Justiça (Saju) mantém diálogo constante com comunidades indígenas e com organizações como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), recebendo e articulando as demandas das populações dentro do MJSP e com outros órgãos do Governo Federal a fim de garantir a efetivação dos direitos dos povos indígenas”, concluiu a pasta.

Cimi registra ataques a povos indígenas em três estados

Os conflitos entre produtores rurais e grupos indígenas continuam no Mato Grosso do Sul e Paraná. De acordo com publicação feita neste sábado (20) pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), com base em informações da Comissão Guarani Yvyrupa,  foram registrados cerco a indígenas guarani kaiowá em retomadas de área no Mato Grosso do Sul, com risco iminente de despejo ilegal e forçado, e incêndio criminoso contra o tekoha Tata Rendy, dos ava guarani, no oeste do Paraná. O Cimi registou ainda neste sábado ataques a indígenas no Rio Grande do Sul. 

De acordo com o Cimi, no Mato Grosso do Sul, as cinco retomadas da região de Douradina circunscritas à Terra Indígena Lagoa Rica Panambi continuam sendo acossadas por capangas armados desde a manhã deste sábado. Em campo aberto, quase uma dezena de caminhonetes se posicionaram com homens nas caçambas, que rapidamente se espalharam em um perímetro ofensivo ao grupo guarani kaiowá. A Força Nacional de Segurança está no local.

Em Caarapó (MS), na manhã deste sábado, duas áreas retomadas na Terra Indígena Dourados Amambai Peguá I passaram a ser sobrevoadas por drones e cercadas por caminhonetes.

No oeste do Paraná, na tekoha – termo usado para definir território – Tata Rendy, dos ava guarani, também houve cerco e incêndios. Para indígenas e indigenistas, tratam-se de ataques em bloco dentro de contextos similares.

Além desses conflitos, o Cimi, órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), registrou ainda ataques ao povo kaingang da Retomada Fág Nor, em Pontão, localizado próximo ao município de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Os indígenas voltaram a ser atacados na madrugada deste sábado (20). Homens encapuzados desceram de veículos e atiraram contra os indígenas e incendiaram uma maloca. Em uma semana, é o terceiro ataque sofrido depois que as famílias decidiram retornar para uma área próxima ao território tradicional.

Governo federal 

Os conflitos se estendem por cerca de uma semana. No último dia 16, representantes do governo federal deixaram Brasília e desembarcaram em Mato Grosso do Sul. O objetivo das equipes dos ministérios dos Povos Indígenas (MPI) e dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) é “mediar conflitos fundiários” que culminaram em uma série de ataques contra indígenas que ocuparam áreas rurais reivindicadas como territórios tradicionais.

No dia 17, o Ministério da Justiça e Segurança Pública autorizou o emprego de agentes da Força Nacional em ações estatais para preservar a ordem e a integridade em aldeias indígenas do Cone Sul do Mato Grosso do Sul e nas regiões fronteiriças do estado.

Segundo o Cimi, apesar das comitivas do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), e das tentativas de negociação com proprietários rurais e políticos locais para a interrupção das hostilidades, não houve ainda a presença de um aparato mais sólido do Estado em busca de soluções reais – e até mesmo a ida às regiões de autoridades públicas com peso político. O órgão critica a atuação da Força Nacional.

Ocorre que nos três casos, ava guarani, guarani kaiowá e kaingang, houve incêndio criminoso nas áreas ocupadas pelos indígenas. Os agressores atearam fogo em malocas e nas matas do entorno. Outro ponto em comum é que nos três casos os ataques ocorreram horas após a saída de representantes do Ministério dos Povos Indígenas das áreas e com a presença de agrupamentos da Força Nacional deslocados pelo governo federal às regiões.