Skip to content

Caso Samarco: e-mail revelado em Londres indica que BHP avaliou riscos

Um e-mail que consta do processo judicial que tramita no Reino Unido sobre o rompimento da barragem da mineradora Samarco vem sendo usado pela defesa dos atingidos para reforçar argumentos.

No episódio, ocorrido em novembro de 2015 na cidade de Mariana, em Minas Gerais, uma avalanche de rejeitos foi liberada no meio-ambiente, causando 19 mortes e gerando impactos para populações de dezenas de cidades ao longo da bacia do Rio Doce. Os atingidos acionam as cortes britânicas visando responsabilizar a BHP Billiton. A mineradora anglo-australiana com sede em Londres é acionista da Samarco, junto com a Vale.

O teor do e-mail foi revelado nessa quinta-feira (18) em audiência no Tribunal de Tecnologia e Construção, na capital inglesa. Ele foi enviado um dia após a tragédia por Marcus Randolph, ex-chefe de divisão da BHP e ex-integrante do conselho de administração da Samarco. Os destinatários eram outros dois executivos da mineradora anglo-australiana: o diretor executivo Andrew Mackenzie e o diretor de minério de ferro Jimmy Wilson.

“Fico muito triste ao ler sobre o rompimento da barragem de rejeitos da Samarco. Há cerca de 3 a 4 anos, a pedido da BHP, o conselho da Samarco fez um relatório independente sobre a segurança da barragem. Seus resultados foram apresentados no conselho da Samarco”, inicia o e-mail.

Responsabilidade

O conselho de administração da Samarco mencionado é composto por representantes da BHP Billiton e da Vale. Ele tem caráter deliberativo e é responsável por tomar decisões estratégicas para os negócios. Randolph, que era diretor de ferrosos e carvão da BHP entre 2007 e 2013, foi um dos integrantes indicados pela mineradora anglo-australiana. Quando ocorreu a tragédia, no entanto, ele já não atuava mais no conselho.

Randolph destaca no e-mail sua atuação e se coloca à disposição para colaborar. “Nós nos empenhamos muito na segurança da barragem. Depois de uma visita ao local, enviei uma nota à Samarco que continha comentários extensos sobre o risco da barragem. Se eu puder ajudar de alguma forma, entre em contato comigo. Enviei várias cartas à diretoria solicitando revisões da barragem e me lembro muito bem dos acontecimentos. Acredito que também havia alguns documentos no registro de riscos da BHP e nossos nossos comitês tiveram discussões sobre o risco”, acrescenta o texto.

No processo que tramita no Reino Unido, cerca de 700 mil atingidos são representados pelo escritório Pogust Goodhead e cobram indenização por danos morais e materiais. São listadas perdas de propriedades e de renda, aumento de despesas, impactos psicológicos, impactos decorrentes de deslocamento e falta de acesso à água e energia elétrica, entre outros prejuízos.

No caso de indígenas e quilombolas que também figuram na ação, são mencionados os efeitos para as práticas culturais e os impactos decorrentes da relação com o meio ambiente.

Há ainda reivindicações de 46 municípios, além empresas e instituições religiosas. As audiências que avaliarão as responsabilidades pela tragédia estão marcadas para outubro deste ano.

O e-mail chegou ao processo através de um instrumento previsto no direito processual inglês, pelo qual o escritório Pogust Goodhead foi autorizado a acessar alguns documentos internos da BHP Billiton. Em meio a eles, encontrou a correspondência de Randolph. Os advogados dos atingidos sustentam que o achado reforça o entendimento de que a BHP Billiton foi alertada dos riscos de colapso da barragem e afasta alegações de que a mineradora não se envolvia na operação diária da mina da Samarco. Eles pleiteiam agora acesso aos documentos citados no e-mail.

Procurada pela Agência Brasil, a BHP Billiton destacou, em nota, que a audiência foi procedimental e não discutiu o mérito do caso. “Discussões sobre produção de provas e documentos são usuais na atual fase do processo inglês e não se confundem com a apreciação de alegações acerca da responsabilidade da BHP, que serão objeto das audiências designadas para outubro de 2024 com duração de 14 semanas”, registra o texto.

Tramitação

O processo começou a tramitar no Reino Unido em 2018. Desde o início, a BHP Billiton alegou haver duplicação de julgamentos e defendeu que a reparação dos danos deveria se dar unicamente sob a supervisão dos tribunais brasileiros. A ação chegou a ser suspensa na etapa inicial, quando ainda se discutia se o caso poderia ser analisado no país.

Em 2020, sem entrar no mérito da questão, o juiz inglês Mark Turner acatou os argumentos da BHP Billiton e considerou que havia abuso, entre outras coisas, porque poderia haver sentenças inconciliáveis com julgamentos simultâneos no Brasil e no Reino Unido. A defesa dos atingidos, no entanto, conseguiu reverter essa decisão em instâncias superiores.

Com o avanço do processo, a BHP Billton decidiu mover uma ação para reivindicar que a Vale também fosse incluída. A mineradora anglo-australiana passou a sustentar que, em caso de condenação, sua sócia deveria arcar com pelo menos 50% do valor fixado. A Vale também buscou questionar a competência das cortes britânicas para analisar o caso, mas o pedido da BHP Billiton foi acatado e ela passou a ser considerada ré.

O processo ainda deve se arrastar. Mesmo que a responsabilidade das mineradoras seja reconhecida em outubro deste ano, o cronograma do tribunal inglês indica que a análise dos pedidos de indenização individual poderá ocorrer apenas no fim de 2026.

Reparação no Brasil

No Brasil, o processo reparatório gira em torno do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) – firmado entre as três mineradoras, a União e os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo. Com base nele, foi criada a Fundação Renova. Ela assumiu a gestão de mais de 40 programas, cabendo às mineradoras o custeio de todas as medidas.

Porém, passados mais de oito anos, a atuação da entidade é alvo de diversos questionamentos judiciais por parte dos atingidos, do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e do Ministério Público Federal (MPF). Há discussões envolvendo desde a demora para a conclusão das obras de reconstrução dos distritos arrasados na tragédia até os valores indenizatórios. Uma tentativa de repactuação do processo reparatório, capaz de apontar solução para mais de 85 mil processos sobre a tragédia, está em andamento desde 2022. Até o momento, não houve sucesso.

Diante desse cenário, em janeiro desse ano, a Justiça Federal condenou a Samarco, a Vale e a BHP a pagar R$ 47,6 bilhões para reparar os danos morais coletivos causados pelo rompimento da barragem. As mineradoras recorrem da decisão.

Samarco, Vale e BHP devem reparar dano moral coletivo com R$ 47,6 bi

A Justiça Federal condenou a mineradora Samarco e suas acionistas Vale e BHP a pagar R$ 47,6 bilhões para reparar os danos morais coletivos causados pelo rompimento da barragem ocorrido em novembro de 2015. Conforme a decisão, publicada nesta quinta-feira (25), o montante deverá utilizado exclusivamente nas áreas impactadas. Ainda cabe recurso.

O rompimento da barragem da mineradora Samarco, localizada na zona rural de Mariana (MG), liberou no ambiente uma avalanche de 39 milhões de metros cúbicos de rejeitos. Dezenove pessoas morreram. A lama devastou comunidades ao longo da bacia do Rio Doce, chegando até a foz no Espírito Santo.

Para reparar os danos causados na tragédia, um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) foi firmado em 2016 entre o governo federal, os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, a Samarco e as acionistas Vale e BHP Billiton. Com base nele, foi criada a Fundação Renova, entidade responsável pela gestão de mais de 40 programas. Todas as medidas previstas devem ser custeadas pelas três mineradoras.

Passados mais de oito anos, existem negociações em andamento para repactuar o processo reparatório. O objetivo é selar um novo acordo que solucione mais de 80 mil processos judiciais acumulados. Há questionamentos sobre a falta de autonomia da Fundação Renova perante as mineradoras, os atrasos na reconstrução das comunidades destruídas, os valores indenizatórios, o não reconhecimentos de parcela dos atingidos, entre outros tópicos.

Por discordar dos termos do TTAC, o MPF moveu, também em 2016, uma ação civil pública. Nela, todos os prejuízos foram estimados em R$ 155 bilhões. Embora participe das negociações que visam a repactuação do processo reparatório, a dificuldade em alcançar um consenso de valores junto à mineradora levou o MPF a pedir ao juiz a antecipação parcial da análise do mérito da sua ação.

A expectativa era obter uma condenação das mineradoras referente às indenizações por dano moral coletivo, por dano social e por danos individuais homogêneos. O pleito foi apresentando também em conjunto com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), o Ministério Público do Espírito Santo (MPES), a Defensoria Pública da União (DPU), a Defensoria Pública de Minas Gerais e a Defensoria Pública do Espírito Santo.

Foi em resposta a esse pedido que o juiz federal Vinícius Cobucci condenou as mineradoras. Ele avaliou que houve, na tragédia, “ofensa sistêmica a direitos fundamentais da coletividade, o que inclui, evidentemente, a fruição do bem ambiental”. Dessa forma, considerou que o processo está maduro para fixar indenização por danos morais coletivos.

“O estado de coisas anterior ao desastre não retornará. As perspectivas de desenvolvimento das comunidades e seus integrantes que então existiam à época do rompimento não mais subsistem. Além do sofrimento individual de cada vítima o ideal de coletividade, enquanto elemento que une as pessoas das comunidades atingidas e o ambiente em que viviam, foi impactado negativamente”, acrescentou.

O MPF e as demais instituições de Justiça signatárias do pedido divulgaram uma nota coletiva considerando que a decisão garante a reparação de direitos humanos violados. “Já foi suficientemente comprovada nos autos a lesão à coletividade causada pelo desastre”, registra o texto.

Procuradas pela Agência Brasil, a Samarco informou que não faria comentários e a BHP Billiton disse que não foi intimada sobre a decisão. Em nota, a Vale também afirmou não ter sido notificada, mas observou que cabe recurso e afirmou que se manifestará no processo. A mineradora também disse estar comprometida em apoiar a reparação integral e que mantém os aportes feitos à Fundação Renova, em cumprimento às disposições do TTAC.

“Até dezembro de 2023, foram destinados R$ 34,7 bilhões às ações de reparação e compensação a cargo da Renova. Desse valor, R$ 14,4 bilhões foram para o pagamento de indenizações individuais e R$ 2,7 bilhões em Auxílios Financeiros Emergenciais, totalizando R$ 17,1 bilhões que beneficiaram pelo menos 438 mil pessoas”, acrescenta o texto divulgado pela Vale.

Sentença

Na sentença, Cobucci refutou argumentos das mineradoras que alegaram que a questão já estava sendo equacionada no âmbito do TTAC. Segundo o magistrado, os programas do acordo respondem em parte a reparação material. Ele observou que as mineradoras fizeram constar no TTAC que elas não admitem qualquer responsabilidade pela tragédia.

Como o dano moral coletivo pressupõe o reconhecimento expresso do nexo causal, ele só deve ser indenizado em caso de admissão de responsabilidade ou de condenação judicial. Dessa forma, esse dano sequer existiria para o TTAC.

Para calcular o valor da condenação, Cobucci usou precedentes judiciais do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que equipararam a indenização pelo dano moral coletivo à indenização pelo dano material. Assim, ele considerou dados divulgados pelas próprias mineradoras nos autos do processo: teriam sido destinados R$ 31,7 bilhões para programas de reparação e compensação e cerca de R$ 16 bilhões para indenizações individuais, somando o montante de R$ 47,6 bilhões.

O montante deverá ser destinado ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD), instituído por lei e regulamentado pelo Decreto 1306/1994. Ele é administrado por um conselho gestor que conta com a presença de representantes do executivo e da sociedade civil. O MPF também tem um assento. Os recursos não poderão ser destinados para projetos fora dos municípios atingidos.

O juiz pontuou que a condenação também tem o propósito atuar como garantia de não repetição e lembrou a tragédia ocorrida em Brumadinho (MG). No episódio, que completa exatos cinco anos nesta quinta-feira (25), o rompimento de uma barragem da Vale custou a vida de 270 pessoas e impactos nas comunidades da bacia do Rio Paraopeba. “A ausência de resposta jurídica adequada, no momento oportuno, possivelmente contribuiu para o rompimento da barragem em Brumadinho em 2019”, escreveu.

Demais danos

Os demais pedidos apresentados pelo MPF e pelas demais instituições de Justiça não foram acolhidos. Cobucci considerou que o dano social não é uma categoria autônoma e está inserido dentro do dano moral coletivo.

Sobre o pedido de indenização dos danos individuais homogêneos, o juiz considerou que se o pleito fosse atendido conduziria a uma condenação extremamente genérica. Segundo ele, o MPF não indicou categorias de grupos atingidos e também deveria apresentar provas que atestam a relação entre a tragédia e o dano de cada uma dessas categorias.

Além disso, caberia também indicar parâmetros e procedimentos para posterior identificação das vítimas e fixação de um método para o cálculo indenizatório. O magistrado sinalizou, no entanto, que a questão pode ser reanalisada em um novo pedido que atenda aos requisitos mínimos.

Críticas

Ao analisar a questão, Cobucci também apresentou críticas à conduta das mineradoras e da Fundação Renova no processo reparatório. Ele observou que as despesas administrativas da entidade, da ordem de R$ 31,2 bilhões, equiparam-se aos R$ 31,7 bilhões gastos em programas de reparação e compensação. “Este dinheiro não se converteu em ações em favor dos atingidos e há gastos muito questionáveis como os milhões de reais gastos em publicidade que, na verdade, aparentava contornos de uma campanha de marketing”, escreveu.

O juiz também observou que a Fundação Renova promoveu acordos sem levar em conta preceitos de direito público. Ele cita o exemplo do sistema indenizatório simplificado, chamado de Novel, pelo qual foram pagas parte das indenizações. Esse sistema foi posteriormente considerado nulo em decisão judicial.

“Houve a privatização do direito da coletividade ao permitir que uma comissão apócrifa de atingidos pudesse atuar em nome de todos, sem a participação necessária do MP. Acordos foram levados à homologação, sem a prévia manifestação dos atores envolvidos no TTAC e sem a observância de seus ritos, técnica bastante utilizada pela Renova”, apontou.