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Lula: taxação de super-ricos requer reforma de instituições globais

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou nesta segunda-feira (18) que a tributação dos super-ricos, principal proposta da presidência brasileira no G20, também depende da reformulação das instituições globais.

“É urgente rever regras e políticas financeiras que afetam desproporcionalmente os países em desenvolvimento. O serviço da dívida externa de países africanos é maior que os recursos de que eles dispõem para financiar sua infraestrutura, saúde e educação”, declarou ao abrir a segunda sessão da Cúpula de Líderes do G20, que discute a reforma da governança global.

Lula citou estimativas do Ministério da Fazenda, segundo as quais uma taxação de 2% sobre o patrimônio de indivíduos super-ricos poderia gerar US$ 250 bilhões por ano para serem investidos no combate à desigualdade e ao financiamento da transição ecológica.

O presidente brasileiro lembrou que a história do G20 está ligada às crises econômicas globais das últimas décadas. Lula criticou a gestão da crise de 2008, que, nas palavras dele, ajudou o setor privado e foi insuficiente para corrigir os excessos de desregulação dos mercados e a apologia ao Estado mínimo. Para o presidente, a não resolução das desigualdades globais contribui para o fortalecimento do ódio político no planeta.

“Em um momento, escolheu-se ajudar bancos em vez de ajudar pessoas. Optou-se por socorrer o setor privado em vez de fortalecer o Estado. Decidiu-se priorizar economias centrais em vez de ajudar países em desenvolvimento. O mundo voltou a crescer, mas a riqueza gerada não chegou aos mais necessitados. Não é surpresa que a desigualdade fomente o ódio, extremismo e violência, nem que a democracia esteja sob ameaça”, avaliou o presidente.

Inteligência artificial

O presidente encerrou o discurso pedindo que a reforma das instituições globais reduza os riscos da inteligência artificial e citou um trecho de um poema de Carlos Drummond de Andrade. “Em 1940, o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade escreveu um poema chamado Congresso Internacional do Medo, que traduzia o sentimento prevalente em meio à 2ª Guerra Mundial. Para evitar que o título desse poema volte a descrever a governança global, não podemos deixar que o medo de dialogar triunfe”, concluiu Lula.

Prevista para começar às 14h30, a sessão que discutiu a reforma da governança global iniciou-se por volta das 16h10. Apenas o discurso de Lula foi transmitido. Neste momento, os presidentes e primeiros-ministros do G20 e o ministro das Relações Exteriores da Rússia, que substitui o presidente Vladimir Putin, discutem a proposta da presidência brasileira no grupo.

Lula tem reuniões bilaterais com 11 líderes globais neste domingo

Na véspera da abertura da Cúpula de Líderes do G20 (grupo das 19 maiores economias do planeta, mais União Europeia e União Africana), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva terá um dia intenso, com reuniões bilaterais com 11 chefes de Estado e de Governo neste domingo (17). Os encontros ocorrerão do Forte de Copacabana, mesmo lugar em que o presidente se encontrou neste sábado (16) com o secretário-geral da ONU, António Guterres.

Após participar da sessão de abertura do Urban 20, grupo de cidades dos países membros do G20, Lula inicia a maratona de encontros bilaterais às 10h30, com o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa. A África do Sul será o próximo país a presidir o G20, recebendo o comando do grupo na terça-feira (19).

Em seguida, às 11h20, Lula se reunirá com o primeiro-ministro da Malásia, Anwar Ibrahim. Às 12h10, o presidente se encontrará com a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni. Essa será a terceira reunião entre os dois. Em junho do ano passado, o presidente se encontrou com a primeira-ministra em visita à Itália. Em junho deste ano, Lula se reuniu novamente com Meloni na reunião do G7 (grupo das sete maiores economias do planeta), realizada no país europeu.

Após uma pausa para o almoço, Lula se encontrará com o príncipe herdeiro de Abu Dhabi, Sheikh Khaled bin Mohamed bin Zayed Al Nahyan, às 14h15. Às 15h, terá reunião com a presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

A série de encontros bilaterais continua às 15h, com o presidente do Vietnã, Pham Minh Chinh, e às 16h40, com o presidente de Angola, João Manuel Gonçalves Lourenço.

Às 17h30, Lula se reunirá com o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan. Os dois devem conversar sobre o pedido da Turquia de integrar o Brics, bloco de economias emergentes fundado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Segundo o governo turco, o Brics ofereceu recentemente à Turquia status de país sócio. Às 18h20, o presidente brasileiro se encontrará com o presidente egípcio, Abdel Fattah El-Sisi.

A maratona de encontros bilaterais termina às 19h30, com uma reunião com o presidente francês, Emmanuel Macron. Às 20h20, Lula encerrará o dia com um encontro com o presidente da Bolívia, Luis Arce.

Haddad

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, participará da maioria das reuniões. Ele acompanhará Lula nos encontros com os presidentes da África do Sul e da França, com o príncipe herdeiro de Abu Dhabi, com a presidenta da Comissão Europeia e com os primeiros-ministros da Malásia e da Itália.

Haddad terá uma reunião bilateral às 17h40 com o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, no Hotel Fairmont, que hospeda boa parte das comitivas oficiais da reunião do G20. Esse encontro não terá a participação de Lula.

G20 Social coloca sociedade civil no centro dos debates globais

O G20 Social deu oportunidade à sociedade civil organizada de incluir nas discussões questões necessárias para toda a população, como direito à alimentação, à terra e à transição energética, afirmou, neste sábado (16), a titular da Secretaria de Mulheres Trabalhadoras Rurais da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag) e coordenadora-geral da Marcha das Margaridas, Mazé Morais.

“Este espaço nos deu oportunidade de trazer essas discussões ao centro do debate, o que é louvável. Temos a expectativa de que a marca da participação deixada pelo G20 Social se reflita e se consolide, que continue nas outras cúpulas de chefes do G20, crie um ambiente propício à construção de uma agenda estratégica para o futuro e tenha um horizonte com o bem viver”, disse Mazé, no encerramento do G20 Social, no Boulevard Olímpico, região portuária do Rio.

A expectativa de Mazé é que, a partir do G20 Social, haja avanços com compromissos e práticas efetivas para a transformação do sistema agroalimentar para uma perspectiva agroecológica que promova o diálogo com a natureza, com a biodiversidade, mas que leve à transição energética justa, que não envenene a terra, o bem mais precioso, e as águas. “Que não destruam os nossos biomas, que não violentem, nem matem as pessoas, que respeitem os seres vivos e os bens comuns. Que se protejam nosso territórios e nossos corpos e que se nutram com nossos saberes populares e ancestrais.”

A representante da Contag defendeu ainda o direito à alimentação, que, segundo ela, é negado sobretudo, às mulheres e aos negros. “Para garantir esse direito, será necessário investir em mudanças estruturais  capazes de romper com modelos produtivos nocivos e a sua lógica destruidora que contribui para a crise climática que o mundo vem vivendo”, afirmou.

Para Mazé, não é pela via dos mecanismos de mercado que se enfrentará a crise climática. “Não é possível enfrentar o dilema sem democratizar o acesso à terra, às sementes, à água e à energia, sem que se fortaleçam as práticas produtivas, a cultura e os modos de vida da agricultura familiar camponesa, da agricultura praticada pelos povos indígenas e pelos povos de comunidades tradicionais, sem que se reconheçam os solos do campo e da floresta como parte importante da solução, tanto para a mitigação e adaptação, como o enfrentamento aos impactos climáticos.”

G20 Social deve ser exemplo para o futuro, diz presidente do Comitê Econômico Europeu – Tomaz Silva/Agência Brasil

O presidente do Comitê Econômico e Social Europeu e representante da sociedade civil internacional, Oliver Röpke, defendeu a mudança imediata da governança global, que, como explicou, não representa os desafios atuais. “A força global do século 21 está enfrentando uma crise, estamos em uma encruzilhada. Os sistemas de governança não servem mais para lidar com os desafios do nosso tempo, que são enormes. Estamos falando da mudança climática, transição digital, estabilidade geopolítica e do aumento das desigualdades. Mais da metade dos trabalhadores no mundo ainda não têm o conteúdo específico de proteção social e trabalhista. Estamos vendo índices de direitos globais e violações dos direitos sociais e trabalhistas, que estão definhando.”

De acordo com Röpke, o G20 Social precisa ser um exemplo para o futuro, com combate às desigualdades globais e luta por uma melhor situação mundial. “Estamos vendo agora uma estrutura global de governança que deixa muitas vozes em silêncio, com poucos mecanismos para garantir a participação democrática da sociedade civil, que permanece sub-representada. Para lidar com todos os desafios, precisamos de uma reforma fundamental na governança global. A hora para o multilateralismo é agora. Não é momento de isolamento. Temos que fortalecer as organizações multilaterais, as Nações Unidas e as organizações internacionais de trabalho”, indicou.

Röpke destacou, no entanto, que a governança tem que refletir o trabalho de hoje e mostrar a diversidade do que vem sendo feito. “Não pode ser feito de cima para baixo, estreitando os interesses nacionais. Precisamos trazer a sociedade civil para o cerne dos processos de tomada de decisão. A sociedade civil representa as necessidades e aspirações de organizações de base para sindicatos, que muitas vezes são deixados de lado”, disse ele, ao destacar a cúpula do G20 Social “é um exemplo de como fazer as coisas corretamente”.

O presidente do Comitê Econômico e Social Europeu elogiou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva por estabelecer no Brasil um conselho de desenvolvimento sustentável e defendeu uma ação conjunta com o órgão que repesenta. “O nosso comitê vem buscando sempre mais inclusão, mais governança, e temos reiteradamente nos esforçado pela promoção do crescimento inclusivo e demais salvaguardas dos direitos sociais. A cooperação global significa ter escuta e aprender uns com os outros”, observou,

Como coordenador do G20 Social, o secretário-geral da Presidência da República, ministro Márcio Macêdo, agradeceu a todos os que contribuíram para a realização do encontro, que reuniu cerca de 47 mil pessoas. “Isso aqui foi um momento muito significativo e só foi possível por causa da sensibilidade e da determinação política do presidente Lula. Só um presidente com a característica do Lula é capaz de colocar na agenda da discussão mundial, no centro, os movimentos sociais e o povo. Só foi possível a gente estar aqui porque tem um movimento organizado do nosso país com cultura, com força, com determinação e com compromisso com nossa pátria e nosso povo”, afirmou o ministro.

Emocionado, Macêdo enfatizou que os trabalhos do G20 Social foram concluídos de forma bem-sucedida e concluiu: “Vamos entregar o documento com as impressões digitais do povo do G20 aos chefes de Estado. Está declarado o encerramento dos nossos trabalhos.”

G20: Negociadores de alto nível estendem debate sobre questões globais

A reunião final dos sherpas do G20 foi estendida em mais um dia no Rio de Janeiro, e continua neste sábado (16). Os sherpas são os negociadores de alto nível de cada país no grupo e trabalham para costurar os consensos que produzem o documento final do encontro.

O encontro era previsto para ocorrer entre 12 e 15 de novembro, mas os representantes dos países-membros precisaram de mais um dia para fechar os acordos sobre as questões globais que serão tratadas pelos chefes de seus Estados.

O sherpa indicado pelo governo brasileiro é o embaixador Mauricio Lyrio, secretário de Assuntos Econômicos e Financeiros do Ministério das Relações Exteriores (MRE). Como o país está na presidência do grupo, Lyrio é o coordenador das discussões. 

Este encontro final é essencial para consolidar os compromissos e pontos-chave da agenda que será apresentada aos chefes de Estado, nos dias 18 e 19 de novembro, no Museu de Arte Moderna (MAM), também na capital fluminense.

Nesta fase, os sherpas revisam e ajustam documentos fundamentais que abordarão desafios globais e regionais, com destaque para mudanças do clima, desenvolvimento sustentável e recuperação econômica pós-pandemia.

O Brasil tem defendido uma recuperação econômica inclusiva, com foco em diminuir desigualdades, especialmente nos países em desenvolvimento.

 

G20 Favelas: segurança e saúde são demandas globais das periferias

Após debates em mais de 3 mil conferências com representantes de favelas, de comunidades e de periferias em municípios e estados do Brasil, além de outros 48 países, a Central Única das Favelas (Cufa) preparou um documento com as demandas desses territórios que será apresentado às lideranças globais do G20 – grupo que reúne as principais economias do mundo, além da União Europeia e União Africana.

O trabalho é fruto da criação do G20 Favelas pela Cufa, com a participação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e da London School Economics.

O fundador da Cufa, Celso Athayde, conta que durante os encontros algumas diferenças de demandas ficaram evidentes: enquanto em algumas comunidades constatou-se a necessidade de implantar, por exemplo, linhas de trabalho em presídios – por causa do número de parentes e filhos dependentes de apenados nas comunidades –, em outras o maior problema era a falta de água potável.

Em entrevista à Agência Brasil, Celso Athayde – que também é presidente do Conselho da Cufa e CEO do Favela Holding (conjunto de empresas que sustenta a Cufa) – explica que apesar da diversidade, foi possível observar questões comuns que atingem essas populações.

“A gente fez as conferências [3.007, no total] das favelas nas cidades, depois nos estados, a nacional e a internacional, para trazer aquilo que é mais presente na vida de todos e não apenas o que é mais importante pontualmente. Pelo que eu vi, acho que questões relacionadas à segurança e à saúde são as demandas globais mais expressivas; além da desigualdade, porque em um espaço físico desigual, a desigualdade acaba se desdobrando em fome e desemprego, e faz com que a agenda global precise olhar para isso”.

Letícia Gabriella é coordenadora-geral do G20 Favelas – Letícia Gabriella/G20 Favelas

“Dentro desse processo a gente teve um encontro com as semelhanças. Têm algumas coisas que as favelas passam no Brasil e as favelas do mundo também têm a mesma conexão. Por exemplo, a questão da violência e da discriminação e a questão do combate à fome foram duas pautas que a gente entendeu que são muito parecidas dentro dessa relação do Brasil e fora do Brasil também”, completou a coordenadora-geral do G20 Favelas, Leticia Gabriella da Cruz Silva, à reportagem.

O coordenador-geral do G20 Favelas, Gabriel Oliveira, informou que mais de 50% das pessoas que participaram das conferências afirmaram que é fundamental discutir o combate à pobreza, à fome e às desigualdades sociais. Para ele, este foi o tema que gerou maior interesse das pessoas e mais contribuições e possibilidades de soluções.

“Ainda é um tema central e isso é emblemático. A gente está no ano de 2024, no século 21 e enquanto se debate se a inteligência artificial vai ou não beneficiar o mundo, a gente ainda tem pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e extrema insegurança alimentar, pessoas que ainda não conseguem ter o mínimo básico de saneamento público, acesso à água potável, à moradia com equipamento de qualidade, com alvenaria correta para situações de extremo frio, extremo calor, todas essas alterações climáticas que a gente tem visto cada vez mais frequentes no mundo”, disse Oliveira à Agência Brasil, lembrando que erradicar a fome e a pobreza no mundo é o primeiro Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) da ONU e até agora tem apenas16% das metas cumpridas.

G20 Favelas

O G20 Favelas é uma das instâncias que compõem o G20 Social, iniciativa proposta pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para ouvir a sociedade civil na definição de políticas públicas entre integrantes do grupo.

O anúncio do presidente brasileiros ocorreu em setembro de 2023, na 18ª Cúpula de Chefes de Governo e Estado do G20, em Nova Delhi, na Índia, quando o Brasil assumiu a presidência do bloco. O Brasil faz parte do G20 desde a sua criação em 1999.

“A gente atuou dentro de 49 países discutindo sobre temas calcados na parte de sustentabilidade, direitos humanos, combate às desigualdades e à fome e também apontando os desafios globais das favelas”, disse a coordenadora, completando que a Cufa atua há mais de 20 anos nesses territórios, defendendo o empoderamento e a potência dessas comunidades no centro desse debate global.

“A CUFA tem esse trabalho de mais de 20 anos nas cidades brasileiras e temos capilaridade em todos os estados do Brasil. A gente fez uma formação com as lideranças estaduais para que elas pudessem realizar as conferências. O pontapé inicial foi no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, quando a gente lançou o processo”, conta Letícia Gabriella.

“O nosso desafio foi fazer um movimento contrário ao do G20: levar as conferências até as favelas, porque infelizmente há falta de acesso e de informação. As pessoas que moram em territórios de favela e de periferia dificilmente sabem o que significa uma conferência e a importância de uma conferência. A gente foi a esses territórios explicar a importância do G20 e fazer os debates.”

Avançados

Gabriel Oliveira: segurança e combate à fome são demandas das periferias – Gabriel Oliveira/Arquivo pessoal

Para Gabriel Oliveira, como as realidades das periferias dos países que compõe o G20 são muito distintas, qualquer comparação sobre o atendimento das demandas dessas comunidades seria um equívoco

“A gente foi para a França e Suécia, países considerados desenvolvidos e eles também têm as mesmas questões de moradias e saneamento básico. Lógico que a proporção não chega a ser igual, mas ainda assim são verificadas situações, especialmente, depois de migrações principalmente de regiões da Ásia e do Norte da África para o norte da Europa”, explica o coordenador-geral do G20 Favelas.

“É difícil parametrizar quem está mais avançado nessas demandas. Acho que a agenda demonstrou que todos os continentes precisam de algum tipo de atenção em tudo que foi debatido e discutido nas nossas conferências. Aí o nosso ponto central não é tanto quem está à frente, mas como a gente democratiza as formas de combate e a informação e estratégia de solução desses problemas.”

Para Gabriel Oliveira, mesmo nos países ditos “de primeiro mundo”, o desequilíbrio social exige o desenvolvimento de projetos sociais para atender essas comunidades que vivem em territórios periféricos, especialmente nos últimos 20 anos, quando houve um processo de migração por conta da fome, da violência, da perseguição política, de crises globais e guerras: “esses problemas começam a acontecer com maior intensidade”.

Continuidade

O coordenador-geral considera um avanço a proposta brasileira de criação do G20 Social, mas ressalta, a importância de que esse projeto tenha continuidade.

“Não adianta o Brasil fazer o G20 Social e abrir a participação da sociedade civil e na próxima cúpula na África do Sul não existir mais a possibilidade da sociedade civil se inserir”, disse Gabriel Oliveira, acrescentando que essa participação social enriquece o debate, com novos pontos de vista e de atenção.

Communiqué

O documento final elaborado pela Cufa, pela Unesco e London School Economics, recebeu o nome de Communiqué e será apresentado nesta quinta-feira (14), às 10h, no Boulevard Olímpico, região portuária do Rio. Nos próximos dias 18 e 19 será entregue aos líderes do G20 pelo presidente Lula.

Relembre a história das negociações globais sobre mudanças climáticas

A partir desta segunda-feira (11), as atenções globais estarão voltadas para a cidade de Baku, capital do Azerbaijão, que sediará a próxima rodada de negociações na 29ª edição da Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP29). Ao longo de 11 dias, líderes mundiais debaterão como viabilizar a transição a uma economia global de baixa emissão de gases do efeito estufa e resiliente às mudanças do clima.

O debate é antigo, e os problemas observados hoje, como o aumento da variabilidade climática e suas consequências na vida das pessoas, tornaram o assunto uma urgência. O que já era previsto em projeções científicas há mais de três décadas virou realidade muitos anos antes do esperado.

“Isso está acontecendo em todo o mundo. Então, não é algo raro que vai acontecer a cada 100 anos, não é um fenômeno extremo raríssimo. As mudanças climáticas – devido ao aquecimento global causado por gases do efeito estufa que lançamos na atmosfera – são a razão para que eventos extremos estejam se tornando mais frequentes e batendo recordes”, alertou o climatologista brasileiro Carlos Nobre, após a catástrofe no Rio Grande do Sul, nos primeiros meses de 2024.

Quase 36 anos antes, em novembro de 1988, a Organização Mundial de Meteorologia e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente já haviam percebido a necessidade de monitorar os efeitos da ação humana no planeta e entender o que era preciso mudar e adaptar. Foi criado o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), que recebeu o apoio de 195 países interessados em conhecer as avaliações científicas sobre a mudança do clima fornecidas pelo órgão.

Dois anos depois, os relatórios gerados pelo IPCC levaram os países que integram a Organização das Nações Unidas a avançar com a criação do Comitê Intergovernamental de Negociação (INC, na sigla em inglês), durante a Assembleia Geral de dezembro de 1990. Seguidas reuniões do grupo discutiram compromissos, metas e calendários para reduções de emissões, mecanismos financeiros e as responsabilidades “comuns, mas diferenciadas” dos países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Tudo foi reunido em um tratado internacional, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC, na sigla em ingês), finalizada na sede das Nações Unidas, em Nova York, em maio de 1992 e apresentada aos países para adesão, durante a Eco92, no Rio de Janeiro.

Os debates concluíram que os efeitos das ações humanas sobre o planeta precisavam de um aprofundamento em outros campos, além do clima, que resultaram em mais dois acordos multilaterais: a Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica e a Convenção de Combate à Desertificação.

Dois anos depois, a convenção do clima passou a vigorar com a adesão de 196 países. As negociações multilaterais sobre o tratado começaram a ter um encontro anual, onde as partes do acordo decidem as políticas e rumos do enfrentamento às mudanças climáticas. Surge a Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas.

A primeira reunião ocorreu em Berlim, na Alemanha, em 1995, onde líderes mundiais concluíram que os compromissos assumidos anteriormente pelas partes eram insuficientes. Iniciavam-se ali as negociações para o desenho de um novo protocolo que garantisse a redução das emissões globais de gases do efeito estufa.

O resultado das discussões veio somente dois anos depois, em dezembro de 1997, com o Protocolo de Quioto. A abertura para as assinaturas ocorreu somente no ano seguinte, e poucos países foram aderindo. O Brasil ratificou somente em 2002, e o protocolo só passou a vigorar em 2005, após a adesão de 55% das partes da convenção do clima.

Ao longo dos anos, novos instrumentos foram complementando a convenção, como próprio Acordo de Paris, resultante da COP21, em 2015, considerado um dos mais relevantes avanços em relação à convenção do clima. O ano de 2020 foi o único em que as partes não se reuniram, por causa da pandemia de covid-19. A COP30 será realizada no Brasil, em Belém, em novembro de 2025.

Confira os locais onde ocorreram todas as COPs da convenção do clima e alguns dos principais acordos resultantes.

1ª – Berlim, Alemanha (1995) – Mandato de Berlim

2ª – Genebra, Suíça (1996)

3ª – Quioto, Japão (1997) – Protocolo de Quioto

4ª – Buenos Aires, Argentina (1998)

5ª – Bonn, Alemanha (1999)

6ª – Haia, Holanda (2000) – Objetivos de Desenvolvimento do Milênio

7ª – Marraquexe, Marrocos (2001) – Acordos de Marraquexe

8ª – Deli, Índia (2002)

9ª – Milão, Itália (2003) – Mecanismo de Desenvolvimento Limpo

10ª – Buenos Aires, Argentina (2004) – Inventário Nacional de Emissões de Gases de Efeito Estufa

11ª – Montreal, Canadá (2005)

12ª – Nairóbi, Quênia (2006)

13ª – Bali, Indonésia (2007)

14ª – Posnânia, Polônia (2008)

15ª – Copenhague, Dinamarca (2009) – Acordo de Copenhague

16ª – Cancún, México (2010)

17ª – Durban, África do Sul (2011) – Fundo Verde para o Clima

18ª – Doha, Catar (2012) – Convenção de Doha

19ª – Varsóvia, Polônia (2013)

20ª – Lima, Peru (2014)

21ª – Paris, França (2015) – Acordo Paris

22ª – Marraquexe, Marrocos (2016)

23ª – Bonn, Alemanha (2017) – Powering Past Coal Alliance e Plano de Ação de Gênero

24ª – Katowice, Polônia (2018)

25ª – Madri, Espanha (2019)

26ª – Glasgow, Escócia (2021) – Livro de Regras do Acordo Paris e Mercado de Carbono (Artigo 6)

27ª – Sharm El Sheikh, Egito (2022)

28ª – Dubai, Emirados Árabes (2023) – Balanço Global de Carbono

29ª – Baku, Azerbaijão (2024)

30ª – Belém, Brasil (2025)

Haddad: desenvolvimento sustentável é um dos maiores desafios globais

 

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou nesta quarta-feira (24) que o Brasil se une aos demais países signatários do Quadro Global de Financiamento Climático, endossado durante a COP 28, nos Emirados Árabes Unidos, destacando que esse instrumento se conecta com alguns dos principais compromissos da presidência brasileira do G20 ao contribuir para tornar o financiamento climático mais disponível e acessível para todos.

“Estou confiante que através da nossa sabedoria coletiva, determinação e colaboração, podemos traçar um curso em direção a um futuro mais sustentável e próspero”, disse Haddad, ao participar do evento “Emirados Árabes Unidos COP28-G20 Brasil Finance Track, no Rio de Janeiro.

Haddad elencou as prioridades sobre finanças sustentáveis na presidência do G20. Agradeceu o compromisso dos países árabes em enfrentar a crise climática, que considera um dos desafios mais urgentes da atualidade, “ao mesmo tempo em que reforçam a luta para reduzir as desigualdades e manter o desenvolvimento sustentável de nossas economias”.

O ministro destacou que os países se reuniam em um momento crítico, marcado por tragédias ambientais como as recentes inundações que devastaram o estado brasileiro do Rio Grande do Sul, que provam a urgência de agir contra a mudança do clima. Defendeu que a necessidade de um esforço global coordenado “nunca foi tão evidente”.

“Sabemos que mais de um terço da economia global estão expostos a riscos físicos relacionados às mudanças climáticas. Até 2050, caso o aquecimento global não seja mantido bem abaixo de 2 graus Celsius, cerca de 4,4% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial poderão ser perdidos anualmente na ausência de medidas de adaptação. As decisões que tomarmos e as ações que realizarmos em fóruns como o G20 e a COP ressoarão globalmente e definirão o legado que deixaremos para as futuras gerações”, indicou o ministro.

Financiamento

Iniciando as discussões no evento dos Emirados Árabes, o ministro destacou o tema central da reunião, que objetiva mobilizar financiamento massivo para os desafios climáticos e do desenvolvimento sustentável. “Isso não é apenas oportuno, mas também crucial para alinhar nossos sistemas econômicos com a sustentabilidade ambiental e a equidade social”, ressaltou. Destacou que, no Brasil, foram dados passos significativos para integrar a sustentabilidade na agenda econômica, por meio do plano de transformação ecológica.

“Essa ambiciosa iniciativa visa a transação da nossa economia para um futuro de baixo carbono, inclusivo e resiliente. O plano é uma concretização do nosso compromisso com o Acordo de Paris e com os objetivos de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU). O plano de transformação ecológica abrange uma série de políticas e investimentos destinados a descarbonizar a nossa indústria, promover a agricultura sustentável, proteger a nossa valiosa biodiversidade, fomentar a inovação verde. Ao fazer isso, pretendemos criar oportunidades econômicas, gerar empregos sustentáveis, garantir o bem-estar dos nossos cidadãos, enquanto protegemos o nosso patrimônio natural”, disse Fernando Haddad.

O ministro reconheceu, no entanto, que os esforços nacionais não são suficientes, tendo em vista que a mudança climática é um desafio global e requer uma resposta na mesma proporção. “É com esse espírito de colaboração que nos reunimos hoje para explorar como podemos, coletivamente, fomentar soluções inovadoras para o financiamento sustentável”.

Instituições financeiras

Segundo Haddad, é preciso desbloquear todo o potencial do capital público e privado para impulsionar a transição justa para uma economia global resiliente. Nesse sentido, afirmou que um dos pilares na solução desse desafio é o fortalecimento das instituições financeiras de desenvolvimento, que desempenham papel importante na mobilização de recursos, fornecimento de assistência técnica, mitigação de riscos e investimentos sustentáveis. Defendeu que, ao fortalecer suas capacidades, essas instituições se tornarão mais preparadas para apoiar os países em desenvolvimento em suas ambições climáticas.

Engajar o setor privado é igualmente essencial, defendeu o ministro. Haddad indicou a necessidade de se criar ambiente favorável que incentive investimentos privado em tecnologias verdes e infraestrutura sustentável. Isso inclui desenvolver instrumentos financeiros inovadores, como títulos verdes, e um tipo de financiamento misto em que possa entrar capital privado em larga escala.

Assegurou que, nesse sentido, o roteiro de reformas dos bancos multilaterais de desenvolvimento e a agenda de facilitação de acesso aos fundos multilaterais ambientais e climáticos, que constituem prioridade da presidência brasileira do G20, “poderão ser catalíticos na transformação da arquitetura financeira, aumentando a disponibilidade de capital concessional para transição energética, de forma alinhada com o quadro de finanças globais climáticas lançado na COP 28”.

Plataformas

O ministro da Fazenda disse também que novas plataformas de investimentos lideradas pelos países, que sejam flexíveis e conectadas com os agentes financeiros relevantes, podem ser vetores efetivos de mobilização de capital para o desenvolvimento sustentável. “Se forem pensadas em conjunto com novos mecanismos de mitigação do risco cambial, a exemplo do Eco Invest Brasil, lançado recentemente, ampliarão sua capacidade de atração de capital privado internacional para financiar projetos sustentáveis”.

O Eco Invest Brasil é uma iniciativa do governo brasileiro desenvolvida para, de forma complementar às reformas em curso, dar estabilidade e previsibilidade ao quadro macroeconômico do país, criar condições estruturais para atração de investimentos privados externos necessários à transformação ecológica nacional, buscando adotar conceitos inovadores e boas práticas financeiras, com inclusão de critérios climáticos e ambientais, sociais e de governança.

Para Haddad, o acesso a financiamento climático continua sendo um desafio significativo para muitos países em desenvolvimento., em particular aqueles mais vulneráveis a impactos de mudança do clima. “Apoiar esses países no fortalecimento de suas capacidades de planejar e implementar projetos climáticos eficazes possibilita e direciona o financiamento para onde é mais necessário”, sublinhou.

Fluxo global

Dados recentes da Agência Internacional de Energia (AIE) indicam que o fluxo global do financiamento climático se dirige, predominantemente, para os países desenvolvidos, que recebem 44% dos recursos, e para a China (39%). Economias emergentes e países menos desenvolvidos recebem, respectivamente, 14% e 2% do total de recursos. Quando se olha apenas os investimentos em energias renováveis, as economias emergentes recebem 15% do total de investimentos nessa área, embora comportam dois terços da população mundial.

São importantes também, conforme assegurou o ministro, a transparência e a responsabilidade. “Mecanismos robustos para rastrear os fluxos de financiamento climático e medir seus impactos não apenas constroem confiança, como elevam a eficiência e eficácia na aplicação de recursos. Na medida em que mergulhamos nessas discussões, lembramos que nossos esforços não significam apenas para mitigar os riscos climáticos, mas também aproveitar as oportunidades que uma economia verde oferece. Buscamos os benefícios de um processo transformador onde o desenvolvimento socioeconômico e a sustentabilidade ambiental caminham juntos, tornando a transição energética uma fonte de convergência econômica”.

PNUD vê indicadores globais positivos para desenvolvimento sustentável

Embora apenas 17% dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) devem ser alcançados até 2030, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) vem desenvolvendo relatórios que elencam sinais de mudanças positivas no mundo. Batizado de Signals Spotlight, eles trazem algumas doses de otimismo ao mesmo tempo em que se reconhece que o cenário atual é preocupante.

Vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU), o Pnud publicou a primeira edição do relatório no ano passado. Nesta segunda-feira (22), a segunda edição foi lançada no Rio de Janeiro, como parte da programação paralela da Reunião Ministerial de Desenvolvimento do G20.

Entre os sinais positivos, menciona-se o reconhecimento crescente da necessidade de alternativas aos modelos econômicos atuais e a criação de órgãos públicos voltados para o futuro, superando o imediatismo dos ciclos eleitorais. O relatório também observa que direitos da natureza começam a ser reconhecidos em constituições, leis e até conselhos corporativos.

Além disso, são apontados avanços promissores na inteligência artificial, na cooperação multilateral para exploração do espaço e no fornecimento de energia elétrica limpa. Foram também identificados indicadores de que há um maior engajamento político e envolvimento na democracia.

“A esperança num futuro melhor impulsionou historicamente o desenvolvimento e o progresso das humanidades. Se não houvesse esperança, não estaríamos onde estamos agora”, disse o representante do Pnud, Marcos Athias Neto. O lançamento do relatório no Rio de Janeiro reforça o papel do G20 como um foro global de diálogo e coordenação sobre temas econômicos, sociais, de desenvolvimento e de cooperação internacional. O grupo reúne as 19 maiores economias do mundo, bem como a União Europeia e mais recentemente a União Africana.

Em dezembro do ano passado, o Brasil sucedeu a Índia na presidência. É a primeira vez que o país assumiu essa posição no atual formato do G20, estabelecido em 2008. No fim do ano, o Rio de Janeiro sediará a Cúpula do G20 e a presidência do grupo será transferida para a África do Sul. Até lá, há uma série de eventos preparatórios. Particularmente nesta semana, a capital fluminense sedia não apenas a Reunião Ministerial de Desenvolvimento do G20, mas diversos outros encontros em uma intensa programação.

Rede de coleta

O Signals Spotlight é resultado de análises de sinais de mudanças coletados por uma rede de funcionários do Pnud distribuídos em todo o mundo. São mais de 300 pessoas realizando um monitoramento contínuo para identificar tendências emergentes relacionadas ao desenvolvimento e ideias inteligentes para enfrentar desafios globais de longo prazo. O trabalho é realizado dialogando com a Agenda 2030, que fixou 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) assumidos pelos 193 estados-membros da ONU na Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável ocorrida em 2015.

Na nova edição, que está disponível para acesso online, três tópicos ganham centralidade: oportunidades para a justiça entre espécies, oportunidades para o uso da tecnologia de forma responsável e oportunidades para comunidades conectadas e resilientes. Ela também busca antecipar discussões focadas na equidade intergeracional (justiça entre gerações), que devem ganhar centralidade na Cúpula do Futuro da ONU, agendada para ocorrer em setembro.

“Com a proliferação de conflitos, a aceleração das mudanças climáticas e a polarização separando as pessoas, o Signals Spotlight observa que é fácil se convencer de que o mundo está num caminho sem volta. Mas a publicação fornece uma nova perspectiva, a qual deixa claro que o futuro não está predeterminado –  vivemos em um mundo de possibilidades”, registra nota divulgada pelo Pnud.

Crise no Haiti tem raízes na relação neocolonial com potências globais

A tragédia social, política e econômica que o Haiti vive é, em parte, consequência das relações neocoloniais que a comunidade internacional, liderada pelas potências europeias e estadunidense, forjaram com o pequeno país do Caribe que, mais uma vez, se depara com a eminência de uma nova intervenção internacional.

Essa avaliação é do haitiano e doutor em antropologia social Handerson Joseph, uma das principais referências, no Brasil, em estudos sobre o Caribe e imigrações. “A estabilidade e governabilidade política e econômica do Haiti são incompatíveis com os interesses estrangeiros”, acrescentou.

Diferentemente do colonialismo, quando o controle de uma nação por outra ocorre de forma direta, inclusive com presença militar permanente, o neocolonialismo costuma ser usado para se referir a relações de dominação mais sutis, que operam por meio de relações econômicas desiguais e influência política.

Para Joseph, as relações da elite política haitiana com interesses estrangeiros obstruem as possibilidades de melhora. “As constantes disputas pelo poder político e econômico de uma pequena oligarquia no país, que por sua vez está aliada aos interesses estrangeiros, talvez seja o maior entrave para a estabilidade do país”, destacou.

O antropólogo considera que as intervenções internacionais no Haiti aumentam a relação de dependência com a comunidade internacional. “O foco delas geralmente é na militarização e no policiamento e não na reestruturação das instituições estatais”, afirmou.

Ainda segundo o professor haitiano radicado no Brasil, a imprensa apresenta o país caribenho com uma visão “simplista” e “estigmatizadora”. Sem indicar as causas da situação atual, a mídia “pouco ajuda a compreender as táticas e as técnicas, internas e externas, de destruição sistemática de um Estado-nação assumidamente negro”.

Natural de Porto Príncipe, capital do Haiti, Handerson migrou para o exterior após concluir o ensino médio, em 2002. Ele estudou em Paris, no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, e atualmente é professor de antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

A família haitiana de Joseph vive entre o Haiti e diversos outros países, como Estados Unidos, Brasil, Canadá e França, situação comum a tantas outras famílias haitianas que migram para viver na diáspora. Handerson Joseph ainda integra o corpo docente do curso de mestrado em antropologia da Universidade do Estado do Haiti (UEH).

A maior parte de Porto Príncipe é controlada por grupos de gangues e o país experimenta uma violência sem precedentes em sua história moderna, segundo o chefe dos Direitos Humanos das Nações Unidos, Volker Turk.

Além disso, o Haiti vive “uma das crises alimentares mais graves do mundo” com quase metade da população (4,3 milhões de 11,7 milhões de habitantes) vivendo em situação de “fome aguda”, segundo o Programa Mundial de Alimentos (PMA).

Devido ao agravamento da situação de segurança, o Brasil realizou, na última quarta-feira, uma operação com helicóptero para retirar sete brasileiros do Haiti.

Para Handerson Joseph, essa situação é fruto de uma longa história de cercos internacionais que começou com a independência do país, em 1804, quando os haitianos derrotaram os impérios inglês, espanhol e francês e consolidaram a 1ª revolução de ex-escravizados vitoriosa da história da humanidade.

Confira a entrevista completa abaixo:

Agência Brasil: Como o senhor avaliou a criação do Conselho Presidencial de Transição que permitiu o anúncio de renúncia do então primeiro-ministro Ariel Henry?
Handerson Joseph: O Conselho Presidencial de transição foi criado com o objetivo de restaurar a paz, a união e organizar as eleições no país, porém não está em funcionamento pelos entraves burocráticos e jurídicos criados por representantes políticos.
Se já está difícil o início do funcionamento do Conselho, que é um grande acordo político, integrando representantes dos principais partidos do país, incluindo os da situação e os da oposição, além de membros da sociedade civil e do setor privado, imagine para chegar em projetos nacionais em prol dos interesses da população haitiana.
A meu ver, a implementação do Conselho pode contribuir momentaneamente no restabelecimento da segurança pública e na organização das eleições no país, mas não garante necessariamente a solução da crise endêmica – que tem raízes mais profundas e históricas – que exige uma reforma constitucional, das instituições estatais e do sistema educacional, a restauração da justiça e do Estado de direito, e o desenvolvimento socioeconômico.

Agência Brasil:  Como podemos explicar o motivo do Haiti, após diversos tipos de intervenções ao longo das décadas, não se estabilizar politicamente?
Handerson Joseph: Infelizmente, essa não é uma situação nova, porém os eventos recentes trazem à tona as questões históricas cada vez mais complexas, como por exemplo, as disputas pelo poder político, as incertezas e as manipulações de resultados de eleições no país, a degradação da economia nacional, as denúncias de corrupção dos governos, todos eles estão na origem do processo de desestabilização do mundo social haitiano ao longo das décadas.
As intervenções também têm um impacto grave no funcionamento das instituições haitianas. Cada uma delas foi abismando a relação de dependência política e econômica do país com a comunidade internacional, e o foco delas geralmente é na militarização e no policiamento e não na reestruturação das instituições estatais.
Foi em uma dessas intervenções na década de 1990, no governo do ex-presidente Jean Bertrand Aristide, que as Forças Armadas haitianas foram destituídas. Hoje, as forças de segurança não dão conta do caos instalado pelas gangues.
As intervenções não fizeram contribuições efetivas em prol das mudanças estruturais estatais, notadamente no fortalecimento das instituições e na formação das Forças de segurança nacional.

Agência Brasil: Como avalia a atuação da dita comunidade internacional ao longo do tempo nas sucessivas crises do Haiti? De que forma essa atuação contribuiu para o momento atual?
Handerson Joseph: A atuação da comunidade internacional ao longo do tempo no Haiti criou relações forjadas através de práticas neocoloniais e neoliberais, tendo gerado dependência econômica e política do país. Essas práticas deixaram raízes profundas nas instituições haitianas, a ponto de terem conseguido a destituição das Forças Armadas do país na década de 1990 na ocasião de uma das intervenções internacionais no país.
Esse é um dos exemplos que faz com que o Haiti e sua população não consigam sair dessa crise de violência atual. Agora, a própria comunidade internacional que durante anos contribuiu para a desestabilização econômica e sociopolítica, para o enfraquecimento das instituições estatais e para a destituição das Forças Armadas do país, é a mesma que hoje diz que “o povo haitiano deve resolver seu problema”. É praticamente jogar o país em um abismo que [a comunidade internacional] ajudou a construir.
Frente a tudo isso, percebe-se que a estabilidade e governabilidade política e econômica do Haiti é incompatível com os interesses estrangeiros.

Agência Brasil: O que tem bloqueado o caminho do país para um regime democrático estável? Há algum episódio, em especial no passado relativamente recente, que seja mais significativo para explicar a manutenção da desestabilização política do Haiti?
Handerson Joseph: A meu ver, não há um evento específico responsável pela situação atual do país, senão uma sequência de fatos sócio-históricos e políticos. As constantes disputas pelo poder político e econômico de uma pequena oligarquia no país, que por sua vez está aliado aos interesses estrangeiros, talvez seja o maior entrave para a estabilidade do país. Os interesses dessa oligarquia são incompatíveis com a luta democrática no país.
A provocação e o financiamento de conflitos entre diferentes grupos políticos e o processo de armamento de gangues fazem parte da gramática de desestabilização política e da precarização da soberania nacional haitiana, que por sua vez impede o alcance de um regime democrático no país. A destruição das instituições estatais revela uma das faces mais perversa do processo (anti)democrático do país.

Agência Brasil: O que pensa da cobertura midiática nacional e internacional a respeito dos últimos acontecimentos no Haiti? O que a imprensa deveria abordar para contribuir com o entendimento da situação haitiana?
Handerson Joseph: Os meios de comunicação têm um papel importante na divulgação e na internacionalização da situação que a sociedade haitiana vivencia, informando e expondo a escalada de violência pela qual, principalmente as camadas populares haitianas, têm sido submetidas, causando deslocamentos forçados estimados em quase 400 mil pessoas a nível local, nacional e internacional.
No entanto, algumas abordagens estigmatizadoras e reducionistas, que focam exclusivamente na extrema pobreza em que boa parte da população haitiana vive, sem explicar as causas da decadência socioeconômica – como por exemplo a primeira dívida internacional paga pelo governo haitiano Jean Pierre Boyer para a França reconhecer oficialmente a independência do país e os embargos econômicos estadunidenses – servem para ilustrar como, historicamente, desde a sua independência, o país enfrenta o sistema (neo) colonial que interfere na complexa relação intrínseca entre a destruição econômica, política e estatal do país.
Assim, a visão simplista e preconceituosa de Estado fracassado, de país sem Estado, pouco ajuda a compreender as táticas e as técnicas (internas e externas) de destruição sistemática de um Estado-nação assumidamente negro. Como diria o sociólogo haitiano Laënnec Hurbon, “as práticas coloniais constituem um habitus da comunidade internacional no Haiti desde, pelo menos, o ano da ocupação americana em 1915”.
Para Hurbon, essas práticas contribuíram diretamente na transformação do Estado em um Estado de bandidos (Etat de bandits) ou de bandido legal (bandit légal), referindo-se a alguns grupos políticos e de gangues que ampliam cada vez mais o controle dos territórios locais e nacionais, semeando a insegurança, tocando o terror na população e queimando cárceres, hospitais, farmácias, escolas, bibliotecas, delegacias policiais e prédios públicos, além de casas e pequenos comércios sem projetos nacionais em prol da população.

Agência Brasil: A revolução haitiana foi um importante marco na história da humanidade e representou uma ruptura com o colonialismo e a primeira ruptura com a escravidão nas Américas. Acredita que existe uma relação entre a vitoriosa revolução dos ex-escravizados, em 1804, e a situação atual do país?
Handerson Joseph: O Artigo 4 da Primeira Constituição do Haiti, diz o seguinte: “Todo ser humano é um ser humano, independentemente de sua cor, deve ser admitido em qualquer emprego. A lei é a mesma para todos, seja para punir, seja para proteger”. Aí estão as bases pragmáticas dos direitos do ser humano universal. Esse ideal democrático e de igualdade contrariou as lógicas e as práticas colonialistas, questionando e subvertendo a ordem colonial.
A Revolução haitiana, para além de dar origem ao Haiti, a primeira república negra do mundo, deu origem a uma nova forma de humanidade livre da escravidão. Aí está a relevância profunda da Revolução haitiana antiescravagista e anticolonial.
No entanto, o isolamento político e econômico internacional imposto ao país depois da Revolução foi uma estratégia para sua destruição, visto que isso serviria para o enfraquecimento do país e também para que outros países não seguissem o exemplo da luta anticolonial travada pelo Haiti.
Porém, após a Revolução, os embargos já mencionados desde a independência fizeram com que o país enfrentasse vários conflitos, causando instabilidades políticas e econômicas, bem como as duras repressões e recessões de parte do imperialismo euro-norteamericano que imperam no país até os dias atuais.

Bio-Manguinhos será laboratório de prontidão para emergências globais

O Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fiocruz, Bio-Manguinhos, vai se tornar um laboratório de prontidão para produção de vacinas em situações de emergência sanitária.

A partir da associação a uma rede formada pela Organização das Nações Unidas (ONU), o laboratório brasileiro será acionado para fornecer vacinas para outros países, especialmente na América Latina, em caso de epidemia ou pandemia. Os termos de cooperação devem ser assinados em breve, de acordo com o diretor de Bio Manguinhos Maurício Zuma:

“O ano de 2023 foi o mais marcante dos últimos anos, porque nós temos sido muito procurados, não só nacionalmente, mas internacionalmente, com a visibilidade que nós temos hoje. Para dar apoio internacional, para cumprir essa lacuna que tem de falta de vacinas no mundo”, explica.

O Instituto é o principal produtor de vacinas do Programa Nacional de Imunizações (PNI), e já fornece imunizantes para mais de 70 países em cooperação com a Organização Panamericana de Saúde (Opas) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

“Obviamente que a nossa prioridade é sempre interna. Mas a gente deve se comprometer também a liberar doses para o exterior, o que a gente já faz. Mas eles querem contar com o nosso compromisso, e que a gente esteja preparado para poder dar essa resposta”, complementa Zuma.

Teconologia MRNA

Mas essa não é a única grande expectativa do Instituto para 2024. Ainda no primeiro semestre deve começar a fase de testes clínicos da vacina contra a covid-19 em plataforma de RNA mensageiro, revela Zuma: “como é uma tecnologia nossa, a gente não pode encomendar esses testes clínicos fora. Nós estamos esperando chegar o último equipamento da parte de downstream, que a gente chama, para poder produzir o lote clínico e aí já dar entrada no pedido dos estudos clínicos”

Essa é a mesma plataforma utilizada na vacina da Pfizer e consiste na produção de uma cópia sintética de parte do código genético do agente infeccioso. Quando essa molécula sintética é injetada no organismo, ativa o sistema imunológico, mesmo sem possuir nenhum fragmento real do causador da doença. Sua principal vantagem é a facilidade de adaptação da plataforma básica para combater agentes diferentes.

Os testes em animais já foram feitos e tiveram excelentes resultados, segundo Zuma. Ele acredita que o domínio dessa tecnologia seja uma alavanca para o futuro:

“É a nossa vacina base (a vacina para a covid-19). Com essa vacina a gente vai já trabalhando em outras iniciativas, na mesma plataforma. A de vírus sincicial respiratório é uma delas. Eu acho que com a primeira vacina avançando bem, a gente vai poder acelerar vários outros projetos nessa plataforma. Esse projeto conversa com a questão da gente ser um laboratório de prontidão regional. (…) Você escolhendo a sequência genética do vírus, rapidamente você consegue fazer um protótipo e fazer o estudo clínico dele. Então é muito rápido”

Há também outras duas vacinas de destaque em desenvolvimento no Instituto, mas ainda no estágio de prova de conceito, quando os pesquisadores verificam, a partir de testes em animais, se o imunizante produz resposta imunológica no organismo.

Uma delas é para combater o zika vírus, e a outra é uma opção contra a febre amarela feita com vírus inativado, ou seja, morto. Atualmente, a vacina disponível contra a febre amarela – feita com o vírus enfraquecido – não é aplicada de maneira geral nos idosos, porque eles têm mais risco de desenvolver efeitos adversos. Essa nova vacina pode solucionar essa limitação.

Estrutura

E para garantir que o Instituto dê conta de produzir esses novos imunizantes e atender à possível demanda internacional, algumas adaptações e uma grande ampliação estão em andamento.

Em 2028, a Fiocruz deve inaugurar o Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde, que está sendo construído em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Agora que a iniciativa recebeu um novo aporte de R$  2 bilhões do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), as obras devem avançar com mais rapidez.

Quando a nova unidade estiver em funcionamento, Bio-Manguinhos vai conseguir dobrar a quantidade de processamento e produzir até 1 bilhão de doses de vacinas por dia, caso seja necessário. Zuma enfatiza que o projeto está sendo pensado para que Bio-Manguinhos ocupe a vanguarda da indústria farmacêutica.

Mas antes disso, as plantas do Instituto estão sendo adaptadas para otimizar a produção atual. “Nós vamos utilizar uma área nossa que foi desmobilizada para fazer uma construção modular para vacinas virais. Por exemplo, a vacina Rotavírus, hoje a gente não produz o IFA [Ingrediente Farmacêutico Ativo – substância que produz a reação imunológica] porque a gente não tem lugar para produzir. Lá ele vai poder ser produzido e a gente vai poder concluir essa transferência de tecnologia. No caso de vacinas como rubéola, também vai aumentar muito a nossa capacidade. E abrindo espaço ali para rubéola, a gente abre espaço na nossa outra planta para aumentar a capacidade de sarampo e de caxumba”, conta Zuma.

E tudo isso também se relaciona com o aumento da relevância internacional do Instituto. Ainda no primeiro trimestre, Bio-Manguinhos deve ser certificado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para exportar a vacina dupla viral, que protege contra o sarampo e caxumba, e já está em negociação com a Opas e o Unicef, para entregar essas vacinas em países africanos.

“Além disso, essa planta também deverá ter uma nova produção da vacina atual de febre amarela de forma mais automatizada. Ou seja, a gente vai ter mais capacidade para essa vacina que tem um grande apelo internacional também. Então nós estamos nos comprometendo para o exterior com mais vacina de febre amarela e com vacina dupla viral”, complementa o diretor do instituto.

E caso haja alguma epidemia ou pandemia antes que a nova fábrica de Santa Cruz esteja pronta, uma nova linha de envase inaugurada recentemente pode produzir até 1 milhão de doses por dia, em situações de emergência.

Terapias avançadas

Zuma não quis dar mais detalhes, mas revelou também que o instituto está finalizando acordos para a produção de terapias avançadas, com tecnologia de vetor viral, semelhante à utilizada para o desenvolvimento de vacinas. Essas terapias são produtos biológicos criados a partir de célula e tecidos humanos processados, e até modificados geneticamente, para tratar doenças graves, ou resistentes a medicamentos tradicionais.

“E isso vai ser importantíssimo para o governo. Porque, primeiro que algumas empresas grandes farmacêuticas já propiciam o tratamento nessa plataforma a custos altíssimos, de US$ 500 mil para um tratamento assim. E isso sendo judicializado obriga o governo a bancar esses valores. Nós pretendemos com a nossa entrada reduzir isso a cerca de 10% do valor que hoje tá aí no mercado e a introdução desse tratamento no SUS. Mesmo que não seja como primeira linha, pelo custo, mas, caso outros tratamentos falhem, ele possa ser utilizado a um custo mais acessível”, finaliza Zuma.